Menu Content/Inhalt
Home arrow Entrevistas arrow Noemi Kellermann: "Ouvi essa música e ela me pegou"
Noemi Kellermann: "Ouvi essa música e ela me pegou" Imprimir E-mail

fotoO Sarau Eletrônico publica entrevista concedida pela professora de Música e Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Blumenau, Noemi Kellermann. Neste seu depoimento, Noemi Kellermann aborda aspectos da sua história pessoal e profissional, da história musical e cultural de Blumenau e da trajetória do ensino superior de Artes no Vale do Itajaí.

“Ouvi essa música e ela me pegou”

fotoNoemi da Silva Kellermann nasceu na cidade de General Câmara, região Metropolitana de Porto Alegre, em 1939. Em 1971, integrando a equipe do maestro Oscar Zander, mudou-se para Blumenau a fim de lecionar na recém criada Escola Superior de Música do Teatro Carlos Gomes. Em 1974 foi a Áustria estudar a  Pedagogia de Carl Orff no Orff Institut da Hochschule für Musik und Darstellung Mozarteum de Salzburg. Lecionou no curso superior de Artes da Universidade Regional de Blumenau desde a sua fundação, em 1973. Durante muitos anos chefiou a Divisão de Promoções Culturais desta mesma Universidade. Atualmente preside o Conselho Municipal de Cultura de Blumenau e é Diretora Pedagógica da Escola de Música do Teatro Carlos Gomes.
Nesta entrevista concedida em Fevereiro de 2009 ao Sarau Eletrônico, Noemi Kellermann aborda aspectos da sua história pessoal e profissional, da história musical e cultural de Blumenau e da trajetória do ensino superior de Artes no Vale do Itajaí.

(Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Gabriel Severo Venco Teixeira da Cunha)

Sabemos que a senhora nasceu em General Câmara, no interior do Rio Grande do Sul. Assim, gostaríamos de saber da sua infância e dos motivos que a levaram para Porto Alegre.

Nasci nesta cidade pequena e bastante próxima de Porto Alegre que tinha um nome muito mais original e bonito do que General Câmara. Chamava-se Margem do Taquari, rio que banha a região. Acredito que a cidade  passou a se chamar General Câmara depois que recebeu um arsenal de guerra, que passou a ser uma das coisas mais importantes da cidade no que diz respeito à oferta de emprego. Câmara era uma família muito importante da região, dona de muitos campos. E a finalidade do arsenal de guerra era construir e consertar armas. Você pode imaginar que no auge da guerra, em 1939 – ano em que nasci – , este arsenal estava também no auge da sua produção de armamentos para o Exército brasileiro. Nasci então nesta cidade, e meu pai, Valdemiro Gomes da Silva, veio das regiões mais pobres de Pernambuco, das proximidades de Olinda, filho de pessoas de lá, que primeiramente trabalharam na lavoura de cana e depois foram para as fábricas de tecido. Para sair daquela situação de miséria e de muitos filhos, alistou-se no Exército muito jovem e foi para o Rio de Janeiro. Devido a esta permanência no Exército, foi com um pelotão fundar um quartel, um agrupamento militar, junto a este arsenal de guerra. Conheceu então minha mãe, que morava ao lado do quartel e se chamava Alaíde Oliveira . E se a história do meu pai me era contada com muito humor, já a história da minha mãe era a história de uma filha de um casal já velho que teve onze filhos, todos mortos, em que só ela restou. Meu avô era filho de índio com branco e bem mais velho que a esposa. Minha avó, pura africana. Então nasci no Rio Grande do Sul, minha mãe é gaúcha, mas tenho muita mistura: da Bahia, porque meu avô era de Salvador, e do meu pai, que era de Olinda. Nasci de Alaíde, gaúcha mas filha de baiano, e de Valdemiro, filho de pernambucano – na verdade, de pernambucano com paraibana. Minha avó por parte de pai era branca, com todo aspecto de portuguesa, e meu avô, também por parte de pai, era uma espécie de cafuzo, não sei bem que mistura era aquela, mas ele não era mulato ou negro.

Vocês são em quantos irmãos?

Fomos três irmãos. Sou a do meio, tenho uma irmã mais moça e tive um irmão mais velho, que já faleceu.

De onde vem a influência musical na tua vida?

Na  memória as vivências musicais que tenho são algumas. A mais antiga, e que esteve na minha vida durante muito tempo, era a da minha mãe e do meu avô materno cantando em casa. Os avós paternos já tinham falecido, e nós morávamos com nossos avós maternos, já muito velhos. Uma das memórias que tenho é a do meu avô sentado na porta da cozinha, ou no pátio da casa, cantando. Ele cantava de tudo o que tu puderes imaginar, desde os hinos da Igreja Assembléia de Deus até aquelas canções bem safadas, bem despudoradas, do repertório de um bando de soldados. Antigamente havia o costume de se colocar as crianças nessas escolas da Marinha, e ele foi para um destes internatos , depois foi para o Exército e lutou naquelas revoluções do Rio Grande do Sul. A vida dele foi muito de caserna, de revoluções, de matar pessoas e tudo mais. Essas histórias ele nos contava, e tinha aquelas músicas muito indecentes mesmo. Ele cantava tudo aquilo e nós, como crianças, não entendíamos muito bem, mas depois, adultos, começamos a prestar mais atenção nas letras. Ele cantava aquilo naturalmente, mas também cantava hinos na Igreja Assembléia de Deus e na Igreja Batista, por onde também passou. Foi católico, depois frequentou a Igreja Batista e, nos últimos anos, foi para a Assembléia de Deus. Mais tarde, e pela primeira vez, meu pai trouxe um rádio. Você pode imaginar que coisa maravilhosa foi para mim, para os meus irmãos e para toda a minha família aquele rádio dentro de casa. Quando fiquei maior, e isso é uma coisa importante, meu pai saiu do Exército e, como civil, entrou como operário no arsenal de guerra. Como o salário era muito pouco, minha mãe lavava roupa para completá-lo, e meu pai passava filmes no único cinema existente na cidade . Além de passar filmes para complementar o salário, ele, já desde o Exército, tocava banjo e cantava. Então as músicas que eu tinha eram as do meu avô, as mais variadas, as do meu pai, que tocava banjo e violão em um grupo que se apresentava em bailes e ensaiava lá em casa, dos hinos que cantávamos na escola dominical e também dos filmes que víamos no cinema. Meu pai começou passando os filmes, ele era operador de máquina, e depois ele passou a ser sócio do cinema. Então nós tínhamos cinema de graça! Isso tudo em General Câmara, onde vivi até os 16 anos. Além disso, foi para a cidade a Igreja Metodista. A essa altura minha família  já era batista e tinha passado pelas influências católicas, mas minha avó tinha uma amiga muito antiga, desde Jaguarão – uma cidade lá do Rio Grande do Sul – , que era mãe-de-santo. Minha avó era católica, mas frequentava a amiga! Então as músicas que foram formando os primeiros repertórios de minha vida foram essas, e depois quando veio para a cidade a igreja Metodista eu tive mais música. Porque as igrejas protestantes cantam muito. Eles tinham um pequeno órgão, desses de fole e pedais, para acompanhar os hinos, e eu tenho até hoje a lembrança da minha mãe cantando aqueles hinos. Minha mãe era muito afinada, tinha um timbre de voz muito bonito. Tive como guia esse timbre de voz. Depois, como professora de música, soube que esta vivência musical dentro de casa é a primeira iniciação musical. Resgatando ainda a história de frequentar o cinema, naquela época não se via apenas filmes de Hollywood. Assistia-se a filmes franceses, italianos ,muitos filmes mexicanos e, pela primeira vez, vi , em um filme , um pianista tocando o Concerto nº 1 de Tchaikovsky. Este concerto é até hoje uma música do coração. Acho que posso resumir assim essa minha fase de infância, com todas estas influências musicais que me foram permeando a memória sonora, digamos assim, e afetiva também. Conclusão é que os meus irmãos cantam afinado, têm boa memória para música e cantam muito bem. Meu irmão cantava muito bem e minha irmã também, porque tivemos essa vivência musical. Uma coisa que eu gostaria de resgatar, e que até hoje me intriga, é que naquela época, quando começamos a ouvir rádio, durante a Semana Santa e Finados as rádios somente tocavam música erudita. Não havia   outra música! Podias sintonizar qualquer emissora e não ouvirias qualquer outra música que não fosse esta. Naturalmente meus pais não estavam querendo ouvir aquela música porque não era do meio deles, e eu não tinha nenhuma referência em relação à música erudita. Mas desde criança era aquilo que me tocava o coração: música erudita! Tanto é que me emocionou ver o Concerto nº 1 de Tchaikovsky no cinema!. Ouvir aquela música que era completamente diferente daquilo que eu ouvira até então, era como  abrir os horizontes misteriosos de coisas que eu não conhecia mas que me calavam fundo. A minha família brincava: “ah, essas são as músicas de defunto da Noemi, deixa ela ouvir.” Eles tinham condescendência para com o fato de eu ouvir aquelas músicas. Eles não gostavam, mas eu gostava! Sempre tive um repertório interno bem mais amplo do que apenas música erudita, mas naquela época isso me tocou muito, sem nenhuma interferência de outra pessoa. Simplesmente ouvi essa música e ela me pegou, me encantou....

Aos 16 anos a senhora vai a Porto Alegre para cursar o Magistério no Colégio Americano, e depois música com o professor Oscar Zander da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como se deu a ida a Porto Alegre? E a experiência com o maestro Oscar Zander?

Em General Câmara só havia estudo até o ginásio, então a opção era ir a Porto Alegre. Tanto meu pai, quanto minha mãe, valorizavam muito o estudo. Minha mãe era uma pessoa simples, fez todo o primário completo, mas lia muito – meu pai já não. Por exemplo, mamãe leu toda coleção Alexandre Dumas. E ela não só lia, como também contava o que lia. Nos nossos almoços a conversa era também essa: sobre o que ela lia. O almoço era uma hora em que se falava muito, as crianças não ficavam quietas, podíamos conversar com nossos pais sobre todos os assuntos e, entre eles, as leituras da minha mãe. Ela nos incentivou a ler. Não havia biblioteca na cidade, mas havia um livreiro, um revisteiro, um italiano que aparecia todas as sextas-feiras com uma pasta cheia de livros e que tinha de tudo, desde os livros clássicos até romances para senhoritas. Ele tinha também a Revista Biliken, uma revista argentina para crianças que trazia quadrinhos, contos e histórias. Aprendi a ler espanhol ali. Ele tinha também a Tico Tico. Tínhamos ainda a revista Bem-te-vi, da Igreja Metodista, e revistas de quadrinhos . Havia uns livrinhos de história muito pequenos, bonitos, que tinham apenas uma gravura muito linda, desenhos muito bem elaborados de pintores clássicos. Era só aquele desenho, e o resto era prosa sem qualquer outra figura. Minha mãe guardava um dinheiro que ganhava lavando roupa para, toda sexta-feira, comprar um livro para ela, um livro de histórias para nós e uma revista de quadrinhos. Então nós três, os irmãos, somos bons leitores, porque tivemos esse aprendizado lá em casa. Uma mãe que é boa leitora e dá valor ao estudo, um pai que dá valor ao estudo, não poderiam deixar seus filhos marcando passo naquela pequena cidade. E eles foram à luta, foram atrás de um lugar para que eu pudesse estudar fora. Fui então para o Colégio Americano, através da Igreja Metodista, com bolsa de estudos. Tive, naturalmente ajuda, e tive que convencer as pessoas para que me dessem essa bolsa. Fiz também um teste, durante muitos dias, para merecer essa bolsa, e fui com essa finalidade: fazer Magistério, na época chamava-se Normal, um curso que hoje não existe mais. Depois fiquei como professora, nesta mesma escola, durante dez anos. O Colégio Americano era, naquela época, uma escola de mil alunos e muito elitista, só de pessoas muito ricas, como por exemplo as filhas de chineses  donos da fábrica de óleo de soja Primor, que foram minhas alunas. Inicialmente era uma escola só para meninas (hoje é um colégio misto), porque na época havia um colégio correspondente, da mesma igreja, chamado Instituto Porto Alegre (IPA), para os rapazes. Nós temos pessoas, aqui em Blumenau, que estudaram no IPA e no Colégio Americano. Saí da minha cidade bem pequena, bem simples, bem pobre, e fui para esse meio social, bem diferente do meu, como bolsista.

Sofreste algum preconceito?

Sim! O Rio Grande do Sul era o estado que, naquela época, tinha muito preconceito contra o negro. Não sei como está agora, já faz muito tempo que saí de lá. Tanto é que na minha cidade – hoje já não é mais assim – havia um baile para  brancos e um baile para  negros, e ninguém de um bailefoto entrava no outro. Quando cheguei ao Colégio Americano houve preconceito, e eu só soube mais tarde porque as professoras me protegiam. Ao mesmo tempo em que havia um número de pessoas que tinham preconceito, havia também um grande número de pessoas que não tinham preconceito, pelo contrário, estimulavam-me a estudar e de certa forma me protegiam. Eu era muito tímida, por incrível que pareça, acho que até por força disto, desta transferência de um meio social para outro e por perceber que havia preconceito. Então eu era uma pessoa muito calada, tanto que  uma professora de psicologia me disse: “Noemi, você deve ter uma vida interior muito intensa, porque você é muito calada.” Cheguei a pensar um pouco sobre ist7o. Mas em relação ao preconceito, uma coisa é certa: tive em casa muita segurança sobre essa questão de ser negro, sobre essa questão de identidade. Em nenhum momento ser negro, para nós, era motivo para sentimento de inferioridade, pelo contrário.

Nós sabemos que existe o mito de uma Blumenau ariana. Vens para cá na década de 1970 e vais te instalar no Teatro Carlos Gomes que, de certa forma, reúne uma elite intelectual da cidade. Sentiste este preconceito também em Blumenau?

Nunca! Para não dizer nunca, senti duas ou três vezes, mas nunca por pessoas de origem alemã. Uma foi com um advogado de origem portuguesa. Outra foi com um italiano, aqui na FURB, um professor. O terceiro não me lembro. Mas como disse, passei pela vida considerando que a pessoa que tem preconceito contra negro, mulher, homossexual ou qualquer etnia, o problema é dele até porque ninguém vai deixar de ser homossexual, negro ou seja lá o que for. O problema é dele até o ponto em que ofenda física ou moralmente. Se há esta ofensa, então tens que tomar uma atitude, como tomei algumas vezes. Minha avó dizia: “coloque-se no seu lugar”. Sem histerismo ou qualquer outra coisa semelhante. Simplesmente eu mesma me colocando para a pessoa de forma que ela perceba que “não é bem assim”. Inclusive, nessas situações de preconceito que tive de enfrentar aqui, as pessoas mudaram , posteriormente , completamente seu comportamento Mas com relação aos alemães, nunca tive problema, bem ao contrário, tenho grandes e verdadeiros amigos e uma relação de grande respeito com as pessoas de origem alemã.

A tua aprendizagem sistemática de música começa no Colégio Americano?

Comecei lá, paralelamente ao Magistério. Estudei no Conservatório de Música, que até hoje existe. Um Conservatório muito importante, muito bem organizado. Lá estava o maestro Léo Schneider, que era também professor da Universidade do Rio Grande do Sul, no Instituto de Belas Artes. Ele era organista, regente de coro e compositor também. Ali comecei o estudo formal de Música.

E como se dá o acesso ao professor Oscar Zander?

Não estudei formalmente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas com Oscar Zander. Comecei com Zander  quando alguém me ouviu cantar em Santa Maria . Essa pessoa participava do Coro de Câmara de Porto Alegre, que era regido pelo  Zander que estava recém voltando da Alemanha. Essa pessoa lhe disse que viu uma soprano cantando. Oscar Zander pediu-lhe que fizesse contato comigo, e me convidou para cantar no coro. Posso dizer que a minha vida, profissional e musical, foi antes e depois de Oscar Zander. Os alunos que tiveram contato com Zander têm esta mesma sensação, esta mesma consciência, de que ele era um músico que não só dava a oportunidade de se conhecer mais profunda e amplamente sobre música, sobre os elementos da música, os instrumentos, o  canto , a história , mas que dava aos alunos elementos de cultura de tal modo  que fazia despertar para as mínimas e máximas coisas para as quais não tínhamos despertado ainda. Um mestre que te instigava o tempo todo e te despertava e mantinha vivo para tudo aquilo que estava relacionado à cultura. Ele era um apaixonado por Música e por ensinar . Não era como esses mestres que trabalham burocraticamente. Nós tínhamos ensaios do coro todos os sábados e todas as quarta-feiras. Nos sábados o ensaio era das duas às seis da tarde, e havia um grupo sempre interessado em aprender mais. Então essas pessoas ficavam lá, ouvindo música com Zander, lendo partituras, e ficávamos até quase meia-noite estudando informalmente. Além disso também tínhamos aulas formais em outros dias: aula de leitura, de morfologia, de harmonia, de história da música e tudo mais.

É o Oscar Zander que vem a Blumenau para fundar a Escola Superior de Música do Teatro Carlos Gomes, em 1971. Como foi feito este convite a ele? E quanto à senhora, já conhecia a cidade?

Este convite veio através de Dieter Hering, na época presidente do Teatro Carlos Gomes, que recebeu uma sugestão de Ivo Meyer, um violoncelista filho do Sr. Meyer, da Casa Meyer de Blumenau. Hoje Meyer  está na orquestra da Universidade Federal do Paraná. Dieter Hering quis reformular o conservatório Curt Hering. Ele estava entrando como jovem presidente do Teatro e queria fazer a reformulação de uma série de coisas. Depois, lendo o livro “Dos camarins ao grande espetáculo: 145 anos de história do Teatro Carlos Gomes”, a gente começa a ver quantas coisas foram reformuladas naquela época, durante a gestão de Dieter Hering , dentre elas o Conservatório Curt Hering, que no entender dele deveria passar por uma reformulação para uma escola nova, que pudesse atender melhor o tempo contemporâneo. Ele queria uma pessoa que conduzisse isto, já que o maestro Heinz Geyer estava se aposentando. Certo dia nós estávamos na casa de Oscar Zander, porque os ensaios eram lá, quando chega alguém de surpresa e aperta a campainha. Estava lá o Dieter Hering. Como vimos que era uma visita que não conhecíamos, deixamos eles conversando na sala. Quando saíram, Oscar Zander veio até nós e disse: “essas pessoas são de Blumenau e vieram para esta finalidade: estão me convidando para fundar uma escola lá. Mas eu disse duas coisas para eles: que não quero chegar lá, iniciar a escola, sem antes fazer um trabalho preparador e uma sondagem.” Ele então propôs que se fizessem seminários de música, e isso realmente começou; disse ainda que  quando ele viesse, viria com uma equipe, porque “uma andorinha só não faz verão”. Já nos “Seminários Catarinenses de Música” uma equipe começou a vir com Zander. Foram realizados quatro seminários, e antes da escola começar a funcionar foram realizados dois seminários. Vinham para estes seminários, em Blumenau, professores e artistas renomados de todo o Brasil e do estrangeiro, e também alunos. Você vê hoje o festival de Jaraguá do Sul e  Santa Catarina já teve tudo  isto em 68, 69, 1970 em Blumenau,  através destes seminários catarinenses de música. Esses seminários  começaram a mobilizar a cidade em torno da idéia de uma nova escola de música. Em 1971, finalmente, Oscar Zander veio a Blumenau  com uma equipe da qual fiz parte, pois Zander  fez o convite para que eu viesse com ele – porque, uma coisa que não sei se disse aqui, paralelamente aos meus estudos de música, também trabalhava como professora de música do Colégio Americano, com crianças bem pequenas, com a orientação da pedagogia Orff, sob a influência  de uma professora e cantora, Ellen Klohs, que trabalhava com o instrumental Orff junto aos alunos maiores. Essa minha experiência refletia-se no meu trabalho. As minhas crianças criavam músicas, poemas, e eu gravava.

Quando Zander vem para Blumenau fundar a Escola Superior de Música, já trouxe consigo a pedagogia de Carl Orff?

De uma forma incipiente, mas tínhamos principalmente os fundamentos. Nós não tínhamos todo o instrumental, mas tínhamos o espírito Orff. Quando viemos para cá, eu e uma outra professora, Cassilda Canfield,  trabalhamos com este espírito de Orff, que se expressa no trabalhar a criação, a improvisação, o corpo em movimento, o cantar  e trabalhar com todos os poucos instrumentos que tínhamos trazido. No Conservatório, Curt Hering, antes, não era assim e  não havia esse trabalho de musicalização em grupo. Já a proposta da Escola de Música para o trabalho com crianças era o trabalho de grupo e essa forma ampla de trabalhar com as crianças,  a sua musicalidade. Nós trabalhamos durante um ano com pouco instrumental, só um ou dois xilofones e flauta doce, e depois o Teatro Carlos Gomes importou da Alemanha , muitos xilofones, metalofones, jogps  de sino , panderetas e outros instrumentos de percussão  e então nós tínhamos o instrumental todo. Atualmente, revendo a história , percebemos que a pedagogia para  Educação Musical de Carl Orff , já existente e reconhecida internacionalmente , no caso de Santa Catarina , esta  teve início em Blumenau na década de 70 , através do nosso trabalho na Escola de Música do Teatro Carlos Gomes.  Neste meio tempo, em 1973, ouvi que havia em São Paulo dois professores  de Salzburg dando um curso  Orff. Fiz a inscrição. Neste curso estavam o músico e compositor Hermann Regner e uma professora de Educação do Movimento, Adelheid Weidlich . Durante o curso havia a perspectiva de alguém ganhar uma bolsa de estudos, mas eu não sabia disto. Simplesmente fiz o curso como faço tudo! Não faço nada pela metade, simplesmente me jogo apaixonadamente. Trouxe isto de casa. No final do curso o Hermann Regner disse: “Noemi, sente aqui e vamos conversar.” Ele falava um pouco de português com um forte sotaque austríaco. “Tu me disseste que estudas alemão. Por que estudas alemão?” “Bem, porque estou em  uma cidade de origem alemã, e também porque descobri, com meus estudos, que há muita matéria preciosa em música que está no idioma alemão.” Ele fez uma pausa e disse: “Você nunca pensou em estudar música na Europa?” Na verdade eu nunca tinha pensado, isso nunca tinha me passado pela cabeça. “Pois então comece a pensar, porque eu quero te dar uma bolsa para você estudar no Instituto Orff. Você aceita?” Preparei então meu currículo com uma   fotografia, levei a ele, passou-se um tempo, veio a resposta e eu fui estudar no Orff Institut da Hochschule für Musik und Darstellung Mozarteum no período de 1974 a 1975, em Salzburg.,

A senhora veio para Blumenau em um bom momento profissional. Na mesma época foram criados a Escola Superior de Música e, em 1973, é fundado o curso superior de Educação Artística, do qual a senhora fará parte desde o começo. Qual foi a necessidade de se criar este curso em Blumenau? Qual foi o seu envolvimento neste curso e qual o envolvimento deste para com o desenvolvimento cultural catarinense?

O meu envolvimento com o curso àquela época chamado de Educação Artística, deu-se porque  era  um curso  polivalente para formação do professor em Música , Artes Plásticas e Artes Cênicas. Aliás, este foi o primeiro curso de Educação Artística de Santa Catarina. Quando o governo instituiu a lei do ensino de Artes a ser ministrado por professor polivalente, foi necessário formar recursos humanos para começar a implementá-la. Então as pessoas vinham de diversas partes do estado, moravam aqui, inclusive, e tinham aula de manhã e de tarde.  Os alunos tinham que ter Artes Plásticas, o que incluía Desenho, Pintura , Escultura e tudo mais que tenha a ver com artes plásticas e também  Músicafoto e Artes Cênicas. Na parte de Música o Teatro Carlos Gomes era a única referência, e a melhor, até porque nós estávamos com esta escola nova. Formamos então uma equipe, dentro daquela equipe da Escola Superior de Música, para atender o convênio feito entre a Universidade e o Teatro. As pessoas iam, no dia da aula de música, lá para o Teatro Carlos Gomes. Em outros dias da semana  iam lá para o antigo Kander na rua Curt Hering para estudar Artes Plásticas e Artes Cênicas. Não havia uma sede,  é muito importante lembrar que o curso de Educação Artística, durante muitos anos, foi nômade. Ele não tinha lugar dentro do campus, e andou por muitos lugares. Fiz parte da equipe trabalhando principalmente Musicalização, o Oscar Zander trabalhava a parte de teoria e de coro  . Depois a equipe foi mudando, outros professores foram se incorporando às disciplinas, porque Oscar Zander saiu do Carlos Gomes e foi para o Rio de Janeiro, para a Funarte. Quando retornei de Salzburg, retomei minhas atividades no Teatro e as minhas disciplinas no curso de Educação Artística. Mais tarde  o curso de Educação Artística saiu do Carlos Gomes e começou a ter o seu lugar no campus da FURB, e isso se deveu muito ao trabalho do professor Jorge Hartke que teve essa visão : “ o curso de Educação Artística está disperso e precisa estar localizado em algum lugar dentro do campus.” Depois de algumas lutas, o curso teve o seu lugar, primeiramente no Campus II. Por este curso passou todo tipo de aluno! Primeiro foram aquelas professoras que vieram especialmente enviadas pelo governo do Estado para suprir o “lote” inicial previsto na lei. Depois que o curso passou desta primeira etapa de formação urgente, instituiu-se um curso de Licenciatura Curta de Educação Artística, ainda polivalente, de dois anos. E as pessoas começaram a vir espontaneamente, sem subsídio do governo, porque queriam fazer parte do quadro de profissionais de Artes. Eram alunos regulares da FURB que vinham de todos os lugares, ficavam alojados na cidade, porque naquela época ainda era o único curso de Educação Artística que existia. Hoje nós temos cursos em outros municípios, mas naquela época não, e por isso nós tínhamos alunos de todo o estado. Os alunos eram desde donas de casa, que queriam fazer uma coisa diferente, moças que queriam fazer universidade e que talvez achassem que fosse fácil fazer Artes, mas também pessoas muito vocacionadas e que queriam mesmo fazer específicamente Artes, ou que queriam ser professores. Tínhamos também artistas, que começaram a vir depois que o curso começou a se solidificar. Mas só começamos a caminhar para isto, de atrair  artistas com uma certa história na cidade, depois que o curso deixou de ser polivalente e começou a ser um curso de Artes Visuais de Licenciatura Plena com a duração de quatro anos . Você pode imaginar um curso que precisa “formar” uma pessoa que tenha competência para ensinar teatro, música e artes visuais em dois anos? Por outro lado, muitos que se formaram nesse curso voltaram depois para fazer a licenciatura plena.

Quando o curso passou a Licenciatura Plena, era só de Artes Visuais?

Uma característica dos nossos professores é que nós frequentávamos muitos cursos. Não ficávamos apenas aqui, na cidade. Eu mesma participei da Associação Brasileira de Educação Musical e fui professora da Funarte viajando pelo país ministrando cursos e convivendo e conhecendo outras realidades . Percebemos que havia um movimento, no Brasil inteiro, para a  eliminação da licenciatura curta. Também o nome “Educação Artística” começou a ficar muito deteriorado, pois  embora pretenda muita coisa, ficou associado a essa necessidade de se exercer a polivalência, o que começou a ser renegado tanto pelos professores, que começaram a ver que era muito difícil exercer isso, como pelos artistas. Quando os professores da FURB se reuniram para montar um curso de Artes que teria licenciatura e bacharelado em música, licenciatura e bacharelado em artes cênicas e licenciatura e bacharelado em artes visuais, fomos com esse projeto para o reitor da época. Levamos muito tempo para terminar este projeto, que foi muito bem feito. Consultamos os alunos, os ex-alunos, nossos professores, outras universidades mas ,  resumo da história : o reitor disse que não iria fazer um curso que desse defasagem de alunos. Disse que música nunca teria alunos ,   que artes visuais seria possível pois era um curso que não necessitava de muitos investimentos, mas que cênicas e música seriam deficitários. Conclusão: hoje Música é o curso que mais tem alunos. Mas naquela época o reitor não teve essa visão, e nós perdemos o bonde da história. Neste período a UDESC instalou o seu curso de Música e outros cursos foram se instalando. A gente sabe que as vezes o tempo não significa nada, mas creio que em relação à instalação de um curso ,  significa, sim, porque se aproveitarmos este tempo cronológico, ele nos dará maturidade. E os cursos de Música e Artes Cênicas só foram instalados dez anos depois! É muito tempo! Quanto à influência que o curso exerce, esta se dá em muitos aspectos. O primeiro é fato de que muitos artistas vieram estudar e se formaram aqui, e alguns voltaram para fazer pós-graduação. Estes artistas têm influências da Universidade, e esta também aproveita muito da bagagem que estes alunos trazem. Como nosso público é extremamente heterogêneo, nós temos desde aquele aluno que não sabe absolutamente nada de artes visuais, cênicas ou música, quanto aquele muito experiente – então nosso professor de Artes tem que estar atento e preparado para  este grupo heterogêneo. Neste sentido, o que este curso faz é dar uma formação formal àquele artista que já está aí, ajudar a encontrar valores nas três áreas e também promover ação efetiva nas escolas através dos estágios e de projetos . Nós temos hoje um projeto chamado Arte na Escola, que começou dentro do nosso curso – na época eu era Chefe de Departamento – quando recebemos o convite para participar de uma rede que promovia a arte na escola . Encaminhei o convite para a professora Marilene Schramm, uma professora muito dinâmica, importante dentro do curso, que está sempre estudando, é organizada e também artista. Talvez agora ela não produza mais tanto nas artes , como gravurista , porque está mais como administradora. Para ser administradora e gestora a gente deixa um pouco de lado a produção artística. Ela então foi para as primeiras reuniões desse polo de Arte na Escola, que hoje é uma rede nacional. Hoje o Departamento de Artes da FURB abriga este polo regional. Então estas influências se estendem não só ao mundo artístico, mas também à rede de ensino. Assim, nós temos um corpo docente, um corpo discente e um grupo de alunos formados que participam da vida artística da cidade.

Em uma entrevista que a senhora concedeu em 2004 para um projeto de história da FURB, há uma afirmação que considerei muito interessante. A senhora se referia, provavelmente, às décadas que antecederam a sua chegada a Blumenau, principalmente a de 1960, dizendo que no Teatro Carlos Gomes difundia-se muito a música erudita, e que isso era um reflexo da cultura blumenauense. Inclusive, que em uma determinada época, ouvia-se quase que exclusivamente música erudita nas rádios da cidade. Como a senhora explica esta mudança, de as pessoas começarem a olhar para a música popular, do Teatro Carlos Gomes oferecer cursos de música popular?

Neste tempo, não só o Teatro Carlos Gomes, mas Blumenau era uma cidade muito fechada. Acho que isso era da própria natureza da cidade. Até os meios de comunicação eram assim. Acho que isso ainda era um reflexo da colônia, das famílias tradicionais, do reduto alemão. Àquela época ouvia-se muito o idioma alemão nas ruas. Já a mudança atribuo ao fato da cidade começar a ser procurada devido às possibilidades de emprego. Havia a pujança econômica e começaram a vir pessoas de fora. Inclusive, no artigo que escrevi para a revista Blumenau em Cadernos (“Cultura em Blumenau: trinta e seis anos!”, nov./dez. de 2007) falo sobre isto. Ao olhar meus livros,em minha biblioteca , deparei-me com algo que não imaginei que poderia ser fundamento para aquele artigo, que era uma publicação da Associação Comercial e Industrial de Blumenau chamada “ACIB Blumenau 90 Anos de Memória”. Neste livro há uma relação de fatos importantes ocorridos na cidade, publicados ano a ano. Li o livro perguntando-me: o que tem de notícias sobre cultura aqui? Fiz uma seleção e retirei somente cinquenta eventos relacionados à cultura .  O que se observa ali é que, a partir de um determinado momento, devido a sua pujança econômica, Blumenau recebe pessoas de todas as origens. Quando tu colocas pessoas de culturas diferentes em um determinado lugar, tu não tens como subjugar uma outra cultura. As culturas  afloram naturalmente. Então as rádios começaram a tocar música sertaneja, por exemplo. E hoje não se ouve mais música erudita como se ouvia antes. Mas para falarmos especificamente do Teatro Carlos Gomes, ele ainda é, hoje, um reduto de música erudita. Depois que me aposentei da Furb, voltei ao Teatro para ser Diretora Artístico Pedagógica da Escola de Música, porém, quando no passado fui diretora lá,  já  havia a prática de música popular como repertório em alguns instrumentos,  mas não com a ênfase de hoje. Hoje temos um núcleo de música popular e um núcleo de música erudita.. Assim, no passado, o ensino de música mudou, passando de Conservatório Curt Hering para Escola Superior de Música – e já em 1971  nós trouxemos novidades, porque naquela época se ouvia música erudita, mas exclusiva e somente  a música erudita de uma certa época. O Maestro Geyer cantava e tocava com os seus grupos de coro e orquestra  apenas uma “fatia” deste tipo de música. Se formos pesquisar  os programas de Concerto  sob a direção de Geyer veremos  de música brasileira, um repertório que era do gosto específico de  Geyer ,  além de outros compositores de música erudita e  também  óperas, que eram de sua autoria. Quando a escola de música veio para cá, com o Zander, este veio com uma visão muito ampla  de música. Tocou-se então música de diversos períodos e estilos ,  música antiga da Idade Média e da Renascença, musica de compositores  do século xx , música folclórica e música popular. No primeiro grande concerto sob a regência do Oscar Zander com a Orquestra do Teatro Carlos Gomes, o grande coro, e um Coro  de Câmara que Oscar Zander formou com pessoas da cidade, alunos e professores da escola de música ,  cantamos Schumann , Schubert , Heinrich Schütz , músicas da Renascença, da Idade Média, Debussy, Ravel , música moderna e contemporânea. Após o concerto as pessoas do grande coro disseram: “que coisa linda, nunca tínhamos ouvido isso!” Ou seja, aquilo que era comum para nós, lá em Porto Alegre, o grupo daqui não conhecia.  Atualmente nós temos que ter o cuidado de manter um equilíbrio. Hoje nós temos na escola músicos de grande competência e reconhecimento , de peso,  na música popular, e este é o tipo de atitude que a escola do Teatro Carlos Gomes não poderia deixar de ter, visto que, por mais que atualmente tenhamos boas escolas na cidade, nós somos uma escola que tem herança. Só a escola nova tem 37 anos! É uma herança que não dá para perder de vista. É um nome forte há muitos anos, e até hoje, quando se fala na Escola de Música do Teatro Carlos Gomes sabe-se que é uma escola de respeito. As mudanças na cidade aconteceram com as culturas que vieram para cá e a cidade teve que (e deve) conviver com estas mudanças, mas sem perder o que ela tinha de bom, que é essa herança de gostar de música erudita, entre outros valores . E este cuidado em manter um equilíbrio entre a música erudita e a música popular, a escola do Teatro Carlos Gomes tem. Nós não temos mais um reduto só de alemães. Temos uma cidade que acolheu – e vou usar esta palavra, sim, porque podemos dizer que a cidade rejeita, mas isto é muito relativo – pessoas das mais diferentes culturas.

A senhora fala em não deixarmos perder o que já conquistamos. Cada geração cria movimentos que imagina inéditos. No início desta década tivemos o MPBlu, na década de 1990 o movimento dos Poetas Independentes e, na década de 1970, o Movimento Barriga Verde, do qual a senhora fez parte. O que este movimento propunha, quem eram as pessoas e como ele se articulava?

Esse Movimento Barriga Verde foi capitaneado pelo Lindolf Bell e – não tenho certeza – o nome deve ter sido ideia dele. Este movimento se deu em Blumenau e, depois, estendeu seus eventos para outros lugares. Consistia em eventos multiculturais. Havia música, artes plásticas, poesia, tudo em uma mesma noite. A ideia era que esses eventos pudessem mostrar a força do artista barriga-verde. Ao invés de se fazer coisas isoladas, juntava-se os artistas e fazia-se uma coisa forte e que impactasse, tanto a nós, que fazíamos, quanto àqueles que participavam. Então, capitaneado por uma pessoa como o Lindolf Bell, que era paixão, energia e movimento puro, isso ganhava uma dimensão muito forte.

Este movimento possuía uma proposta estética específica? Ou a proposta era aglutinar pessoas que produziam arte?

Sim, mas naturalmente estas pessoas eram selecionadas por ele. Porque a gente via que só tinha coisas muito apaixonantes nestes eventos. Lembro-me de uma vez em que ele me chamou para cantar em um desses eventos, e cantei músicas africanas, umas duas ou três de rituais de candomblé e outras do folclore africano, com tambores e tudo mais. Isso foi uma coisa tão forte! Estavam lá poetas de Curitiba e de outros lugares. Naquela época, trazer músicas africanas para Blumenau! Hoje é comum, mas não naquele tempo. Eu tinha um cabelo black-power,grande ,  ninguém andava por aqui com um cabelo assim. Então o visual era contundente, a música e o instrumental também. Assim ele reunia, neste movimento Barriga Verde, coisas muito fortes, de tal forma que, se pudesse marcá-lo, a marca era a força do movimento artístico e do artista Barriga Verde. Porque naquela época tudo isso era muito disperso, e havia valores por todo o estado. Mas a proposta estética estava muito mais em como ele reunia as pessoas. Sob o aspecto teórico, acho que não havia uma proposta estética. Mas era ele que organizava e selecionava as pessoas, como um grande diretor teatral que tem um grupo, uma energia e uma estética, não havia uma equipe que fazia as seleções. Ele primava não pela igualdade, mas pela qualidade e pela  heterogeneidade.

Vamos fazer, novamente, uma incursão no privado. A senhora é casada com o artista plástico Roy Kellermann. Como se deu a aproximação da cantora com o artista plástico?

Na verdade, não foi a cantora e o artista plástico, mas a Noemi e o Roy. Em uma ocasião uma pessoa me disse: “Noemi, pelo que conheço de você, acho que vais gostar de conhecer um amigo meu, o Roy Kellermann.” Passou-se um ano, eu estava na Casa do Artista, um espaço que existia na esquina da ponte que liga o Centro de Blumenau ao bairro Ponta Aguda. Lá aconteciam exposições, eventos e, no andar de cima, havia uma oficina para o pessoal trabalhar. Naquela época o artista plástico Rubens Oestroem fazia bolsas de couro com ossos . Comprei uma bolsa dele e fui à Casa do Artista para que ele fizesse um conserto, e quem estava lá? O Roy Kellermann, de quem tinham me falado! Fiquei conversando com o Rubens e, do outro lado da sala, o Roy estava conversando com um outro grupo. Ouço o assunto sobre o qual estavam conversando – para ser sincera, nem me lembro qual era o assunto – e me chamou a atenção, porque era o tipo de conversa que eu tinha com os amigos em Porto Alegre e que aqui eu não tinha. Então comecei a olhar para ele, claro, por causa do assunto (Risos). Ele percebeu e começou a se exibir na fala. (Risos) Fui embora, ele também, fomos caminhando pela Beira-Rio e nunca mais nos desgrudamos. Mas o mais interessante foi que, depois de alguns dias, ele me disse que tinha uma loja de antiguidades, a Porto Bello Road. Ali na rua Marechal Floriano Peixoto Esta foi a primeira loja de antiguidades da cidade. O Roy tinha morado no Uruguai, e quando voltou, trouxe peças de  antiguidades e se instalou aqui. Este homem, dono de uma loja de antiguidades, eu tinha conhecido há dois anos, de terno, gravata, cabelo bem curto, formal, quieto; e este Roy que conhecia agora não era o mesmo! O visual era completamente diferente, a postura... era extrovertido, o cabelo comprido, despojado na roupa... Era outro ser! Ficamos amigos. Fui para a Europa, de lá nos escrevíamos e, quando voltei, começamos a nos ver como namorados. Depois casamos, e já são 32 anos! Então não foi a cantora e o artista plástico, mas duas pessoas que vieram com uma bagagem cultural bastante grande, e vivemos bem justamente porque nosso encontro foi este. O Roy é uma pessoa que fala cinco idiomas, tem lá seus problemas, mas tem uma cultura vasta, é espiritualizado e possui uma bagagem de vida fenomenal. O Roy é uma pessoa que me surpreende todos os dias. É um sobrevivente! Eu aprecio as coisas que ele produz como artista plástico e, quando não está bom, também digo. Ele gosta de me ouvir cantando, tocando. Então existe esse apoio, esse elo de compreensão , de amor e de admiração mútua.

A senhora sempre teve uma vida muito intensa na vida cultural da cidade. Primeiramente como professora, depois como diretora da Divisão de Promoções Culturais da FURB e hoje como Presidente do Conselho Municipal de Cultura. Quais os momentos que a senhora poderia destacar nesta história que a senhora vivenciou?

A  Divisão de Promoções Culturais  existiu na FURB por mais de 20 anos ; fui chefe do setor de 1996 a 2006 ; o setor que foi extinto no final de 2006 , administrava as atividades culturais da universidade fazendo conexão com a comunidade de Blumenau e região , tendo construído laços muito fortes com o universo cultural da cidade com a universidade através das ações da DPC  realizando exposições de Artes Plásticas e administrando  os Grupos Estáveis de Produção Artística da  FURB : Grupo Teatral Phoenix, Grupo Folclórico de Dança Alemã, Coro da FURB , Camerata de Violões e Orquestra da FURB ,  além da produção do Festival Universitário de Teatro de Blumenau . Na história cultural da cidade... um dos momentos – para pegar algo mais recente –  uma das coisas mais importantes que gostaria de destacar , é o Fundo Municipal de Apoio a Cultura de  Blumenau. É pouco? Financeiramente sim. Para quem está na gerência do Fundo, nós, Conselheiros, pensamos que algumas coisas deveriam  ser revistas, mas a maioria dos projetos que são desenvolvidos com o Fundo Municipal de Cultura revelam uma efervescência muito grande na cidade. Para algumas pessoas parece que nada acontece na cidade. Isto não é verdade! O fato deste fundo existir produz uma provocação, a gente vê essa efervescência acontecendo. São grupos de música pop, de música erudita, livros publicados , produção de cinema fotografia e vídeo, de teatro  , de artes plásticas , de produção de diversas expressões  da cultura popular... ... Claro, tem de tudo! As pessoas veem que o Fundo está aí, mas também não se pode usar o dinheiro público para tudo. Temos que ter critérios. A maioria das propostas são muito boas. Destaco este Fundo como sendo uma das coisas mais importantes que já aconteceram em Blumenau em tempos recentes.

A senhora se aposentou da Universidade, retornou à Escola de Música do Teatro Carlos Gomes e preside o Conselho Municipal de Cultura. Quais os projetos que a senhora tem para este ano?

Na verdade, não tenho projetos pessoais. Aliás, nunca tive projetos pessoais. Este foi um defeito na minha vida. Sempre trabalhei para instituições. Então agora meu projeto é a Escola de Música. Quando trabalhava na Universidade, meu projeto era a FURB, eram as coisas que me instigavam aqui na universidade. Do Teatro Carlos Gomes nunca me desliguei de todo, porque fui eleita para o Conselho e sempre participei dos eventos. Agora, retornando, quero tornar a Escola de Música uma escola equilibrada, sem perder de vista tudo aquilo que conquistamos durante todos estes anos, mas também aquilo que é contemporâneo. Então o meu projeto é para com esta Escola de Música.  Que ela se mantenha na sua liderança, que merece. Tenho também um sentimento de responsabilidade para com o Conselho Municipal de Cultura de Blumenau, pois estive sempre presente, como presidente quatro vezes , secretária e conselheira.  Peguei o vício de estar sentada em um evento cultural e ficar vendo com carinho as coisas positivas que estão acontecendo na cidade, sempre torcendo para que as coisas deem  certo em relação à vida cultural.

No âmbito da cultura, qual a diferença entre a Blumenau de hoje e a da década de 1970?

A Blumenau de hoje é muito diferente daquela da década de 1970. Hoje nós temos, por exemplo, uma associação de nordestinos, capoeira, música sertaneja. Na década de 1970 não havia nada disso. E hoje há porque essas pessoas vieram buscando a cidade que lhes ofereceria emprego e uma qualidade de vida melhor. Então a Blumenau de hoje é multicultural, é mais cosmopolita. Não há como voltar a 1970! Mas como já disse, não se pode perder o que já tivemos. Aqui a música erudita era muito cultivada e apreciada, e isto não se pode perder. É diferente de uma cidade em que só se toca fotomúsica sertaneja e as pessoas não conheçam música erudita. Em General Câmara, onde nasci, não se ouvia música erudita a não ser no rádio, e aqui em Blumenau não. Aqui não só se ouvia esse tipo de música no rádio, como havia música erudita sendo produzida. Se era somente de uma época, ou se eram somente óperas de Heinz Gayer, não importa, era música erudita! Esta é uma herança que não se deve perder. Mas por que é tão importante ouvir música erudita? Por que não se faz como a massa da mídia, que só demonstra  música popular, e até da pior qualidade? Eu, que fui tocada pela música erudita, e que ao mesmo tempo tive a influência da música popular na minha casa, e que hoje ouço de tudo, posso te dizer, tranquilamente, que ouvir de tudo é muito bom. E ouvir de tudo incluindo a música erudita, porque ela te dá uma amplitude de alma e também mental , cerebral. Se começas a ouvir Bach, por exemplo. Esta é uma música que trabalha com teu espírito e  com tua mente, e há músicas que no nível das idéias são tão abstratas que tu não tens como construir uma imagem concreta, mas que te leva a desenvolveres  outras emoções... além ... A convivência com música erudita instrumental pode levar-te a este  equilíbrio interior.

 
< Anterior   Próximo >

Artigos já publicados

“A biblioteca à noite”, de Alberto Manguel

capaAlberto Manguel, em seu livro “A biblioteca à noite” (Companhia das Letras, 2010), passeia pela história das civilizações gráficas, ora olhando para os livros, ora para aqueles que se dedicam a lê-los, guardá-los ou até mesmo escondê-los ou destruí-los.

Leia mais...