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“Chove sobre minha infância” de Miguel Sanches Neto. Imprimir E-mail

capa“Chove sobre minha infância” foi o primeiro romance do escritor paranaense Miguel Sanches Neto, autor também de contos, crônicas, poemas, literatura infantil, crítica literária e ensaios. Neste livro, misto de ficção e memória, Miguel conta a história da sua infância, vivida no interior do Paraná. Leia aqui a análise da obra que o Sarau Eletrônico preparou para você.

“Chove sobre minha infância” de Miguel Sanches Neto

No filmecapa “Caixa Preta” (2005), dirigido por Richard Berry, o protagonista sofre um acidente e permanece inconsciente por um período. Ao despertar, é informado pela enfermeira que, durante o coma, balbuciou palavras e frases desconexas que esta anotou em um caderno. Ao sair do hospital, o personagem procura decifrar os significados daqueles seus fragmentos de memória, mas a correspondência com a realidade dos fatos torna-se impossível. Isto porque, para a memória, o vivido no plano da realidade física não difere do vivido no plano dos desejos, ou, não há diferenças entre o vivido e o que pensamos viver quando acessamos os cantos mais obscuros do nosso inconsciente.

Na literatura, estabelecer fronteiras entre realidade e ficção, quando se trata de memórias, constitui-se como tarefa ingrata e inútil. Carlos Heitor Cony, por exemplo, quando publicou “Quase Memória” (1995), deparou-se com a dificuldade de classificá-lo enquanto gênero literário. Por isso o subtítulo: “quase-romance”. Já Silveira Júnior preferiu enquadrar como romance seu “Memórias de um menino pobre” (1977), livro em que magistralmente relata sua infância vivida em uma comunidade de agricultores no interior de Santa Catarina. “Chove sobre minha infância” (2000), de Miguel Sanches Neto, segue esta mesma lógica: o relato trágico de um anti-herói que cresce em ambiente hostil para se transformar no escritor que narra sua própria história. Memórias?

Quando Proust escreveu seu monumental “Em busca do tempo perdido”, Joyce  seu “Retrato de um artista quando jovem” e José Lins do Rego seu “Menino de Engenho”, não tivemos dificuldades em aceitá-los como peças exemplares de uma literatura do mais alto nível. Ainda que textos estruturados sobre reminiscências, são, essencialmente, criação, porque a memória é, tal qual em “Caixa preta”, criação. E não importa se fato experienciado fisicamente, se interpretação dos sentidos ou construção do inconsciente, a memória estabelece sua verdade, tornando-se, assim, verossímil. E é nesta verossimilhança que se constrói “Chove sobre a minha infância”, livro que, segundo o narrador-protagonista, não se pretende de memórias, mas de “retalhos, alguns falsificados pela recordação e pela fantasia” (p.17).

Romance de estreia de Miguel Sanches Neto, “Chove sobre minha infância” conta a história da sua infância e adolescência a partir dos seus próprios olhos. Não se trata, entretanto, de autobiografia, já que o narrador-protagonista (o próprio Miguel), narrando ou vivenciando os fatos no tempo presente em que supostamente aconteceram, em alguns momentos sofre a intromissão do narrador adulto, deste outro Miguel, capaz de compreender e julgar a criança de antanho. E é nesta tensão entre recordação e ficcionalização, entre revelação e moralização, que se constrói a história de um menino nascido na pequena Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná, que, órfão do seu pai, um homem de “coração bom, mas prisioneiro de suas misérias” (p. 12), migra com sua mãe e irmã para Peabiru, cenário onde se desdobra o enredo.

Viúva e vivendo muito humildemente com o dinheiro que recebia costurando para prostitutas, apesar de filha de rico fazendeiro, a mãe do narrador-protagonista resolve se casar com Sebastião, um caminhoneiro sem muito estudo. Homem austero, trabalhador, honesto, incapaz de lograr um agricultor, Sebastião nutre profundo desprezo a todo trabalho que não seja braçal, e procura educar a família na doutrina do trabalho duro no campo ou junto a cerealista de que se torna proprietário. Educação contestada pelo narrador-protagonista, que desde muito moço inclina-se para as letras. Letras inúteis, improdutivas e que impedem Miguel de ser o homem forte e trabalhador com que sonha o padrasto. Há uma cena na obra em que o narrador-protagonista conversa com Zé Carlos, filho do padrasto, que lhe explica que o pai teve que comprá-lo, juntamente com seus irmãos, depois de tentar convencer, com argumentos, a mãe a entregá-los: “O pai teve que comprar a gente. A mãe não queria ele deixar trazer. O pai falou bastante coisa pra ela, mas não adiantou. Daí ele deu dinheiro e ela deixou.” E a reflexão de Miguel, ainda criança: “Fico pensando se Sebastião não tem razão. As palavras não valem grande coisa mesmo. O que vale são os números.” (p. 78). Mas é esta uma exceção, escrever, preencher todas as folhas do caderno, é não deixar morrer seu pai, analfabeto e morto trágica e precocemente. Escrever é, antes de tudo, libertar-se. Libertar-se dos desmandos do padrasto e sua família, libertar-se da vida duro do campo, libertar-se do atraso.

Sob o verniz dos conflitos familiares, das vicissitudes próprias de um menino que adolesce e descobre os prazeres e dores do corpo, “Chove sobre minha infância” impõe-se como uma obra que marca a desterritorialização do retirante no confronto campo e cidade. Ao defender o trabalho forçado, Sebastião defende a manutenção dos filhos na terra. As letras implicam vida urbana, o êxodo rural. Neste contexto, torna-se emblemática a reflexão do narrador-protagonista quando afirma: “Pertenço a uma geração que não encontra mais espaço no Paraná. Não dá mais pra iniciar uma vida de pioneiro em nossas terras, elas já foram desbravadas, já deram o seu sangue, suas matas, seus rios” (p. 215). É o campo que sucumbe à cidade, aos bancos, à indústria e seus empregos de fome. A Peabiru que viu crescer Miguel, já não o é, “a lama e a poeira de então eram a da cidade que estava sendo feita, a dos destinos em construção – hoje são de decadência” (p. 253).

Também a metaliteratura se faz presente na obra. Para Miguel – narrador-protagonista – literatura é missão que dá voz a quem sempre se calou: “Vindo de um povo basicamente iletrado, recebi a tarefa de ser seu porta-voz. Escrevo por isso, para fazer com que falem estes entes sem discurso” (p. 240). Missão e catarse, diga-se ainda, pois pretende o narrador-protagonista libertar-se da carga, do peso que sua história imprime sobre seus ombros, como quando jovem descarregava os caminhões que chegavam à cerealista, as sacas de soja estourando-lhe a coluna, a poeira arrebentando-lhe os pulmões.

Chove sobre minha infância”, neste pântano da memória, ato de desvelamento, ao dizer de Miguel, diz mais, diz de uma ordem que esboroa, calcinada na terra empobrecida, diz da escrita e do ato de se construir autor, mas diz, principalmente, de uma liberdade nunca plena.

Texto: Viegas Fernandes da Costa / Sarau Eletrônico

 
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