O Evangelista sem meias palavras |
Maicon Tenfen A palestra era numa escola dirigida por freiras. Na hora das perguntas, um menino da sétima série quis saber qual o melhor livro que li em toda a minha vida. Como a curiosidade é recorrente em bate-papos sobre leitura, eu tinha a resposta na ponta da língua: Aí expliquei que se tratava de um livro adulto, com linguagem bem elaborada, que os estudantes talvez achassem difícil e meio chato, mas que certamente, quando crescessem um pouco mais como leitores, curtiriam a experiência de ler uma grande obra do nosso tempo. Ao que acrescentei: Diante do silêncio, levantei o dedo como quem pede uma cerveja: Era uma fala sincera, mas corriqueira, que eu repetia em praticamente todas as minhas palestras escolares. Naquele dia, porém, algo inesperado aconteceu. Pouco antes do final, uma das freiras — acho que diretora ou coordenadora pedagógica — passou a mão no microfone e, toda sorridente, fez questão de dirigir algumas palavras a mim e aos alunos: Fui obrigado a rir, mas acrescento que ri com toda a consideração que tenho pelas instituições (uma consideração que quase acabou depois que conheci Saramago), já que me encontrava no centro de uma comédia em função. Como explicar à freira e aos seus pupilos que o Evangelho Segundo Jesus Cristo é uma heresia? Logo nas primeiras páginas, quando Saramago nos apresenta José e Maria em pleno ato sexual, o mito da concepção divina, um dos maiores da cristandade, é tratado com a mesma irrelevância das rotinas conjugais. E isso é apenas a porta de entrada para uma série de vertiginosos questionamentos sobre a crença que moldou a cultura ocidental. Não por acaso, quando o Evangelho foi lançado, no início dos anos 1990, chegou a ser proibido em Portugal, fato que levou Saramago a se autoexilar na ilha espanhola de Lanzarote, onde viveu com a esposa Pilar del Río até ontem, o último dos seus dias. Lembro que hesitei antes de continuar falando sobre o Evangelho. Eu estava num colégio de orientação religiosa e, convenhamos, não há nada pior que causar constrangimentos gratuitos. Poderia, por exemplo, entabular elogios a Ensaio Sobre a Cegueira, o romance mais famoso do autor, ou ao Memorial do Convento, de teor igualmente crítico no campo da história, ou ainda ao kafkiano Todos os Nomes, um verdadeiro tratado sobre a identidade, ou a falta de, nos dias de hoje. Todos livros monumentais, que me permitiriam continuar discorrendo sobre Saramago. Entretanto, se eu fizesse isso, estaria traindo o legado do escritor e provando a mim mesmo que a leitura, afinal de contas, é uma prática estéril. A verdade é que Saramago nunca desrespeitou as instituições, sejam elas políticas ou religiosas. Questionou-as, isso sim, com sarcasmo e até intransigência, mas também com o desejo de chamar a atenção do mundo para os seus problemas reais: a ignorância, a fome, a violência. É por isso que, no Evangelho, o Jesus que vemos é um homem como outro qualquer. Eis a grande contribuição de Saramago: humanizar deus (aqui com minúscula) para endeusar o Humano (aqui com maiúscula). Foi mais ou menos isso que tentei explicar à freira e aos alunos antes de me despedir. Não sei se entenderam o que quis dizer, tampouco sei se fui claro, mas o fato é que voltaram a bater palmas. E esses aplausos, sempre tive certeza, não eram dirigidos a mim, mas ao autor dessas ideias, ao mestre português, José Saramago. |