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Divagações a respeito (e a partir) d’A Questão dos Livros Imprimir E-mail

capaOs textos de Darnton são duplamente instigantes: primeiramente porque escritos por um bibliogâmico assumido, mas também porque situados em um momento de transição, de inseguranças, onde a permanência dos livros físicos, palpáveis, de folhas encadernadas, pode ser ameaçada por aquilo que chamamos de livros digitais.

Divagações a respeito (e a partir) d’A Questão dos Livros

Viegas Fernandes da Costa
Editor do Sarau Eletrônico

Leio “A questão dos livros” (Companhia das Letras, 2010), de Robert Darnton, historiador e diretor da biblioteca da universidade de Harvard. Por estes tempos urgentes que correm – e que tempo não o foi? – , interessam-me textos como esses, escritos pelo autor nestas duas últimas décadas e agora reunidos em livro. Interessam-me, talvez, porque livros são companhia constante, já que trabalho também em uma biblioteca, e porque arrisco-me, ainda, a escrevê-los, o que me leva a buscar algum tipo de sentido para tanta grafia – busca sempre e cada vez mais insaciável.

Os textos de Darnton são duplamente instigantes: primeiramente porque escritos por um bibliogâmico assumido, mas também porque situados em um momento de transição, de inseguranças, onde a permanência dos livros físicos, palpáveis, de folhas encadernadas, pode ser ameaçada por aquilo que chamamos de livros digitais. Não haverá, possivelmente, muita semelhança entre um livro impresso em papel, passível de ser manuseado e sentido por nossa pele, e um digital, tangido apenas pelos olhos, ouvidos e intelecto. Diferenças que ultrapassam as questões do suporte, e avançam mesmo no conceito que temos de livro enquanto uma unidade que podemos abrir e fechar mediante nosso desejo e nossa paciência. Sim, porque livros digitais poderão ser infinitos, labirínticos, multimidiáticos e interativos. Claro que alguém pode argumentar que estes são adjetivos possíveis de serem atribuídos ao livro desde que este surgiu. Afinal, não seriam labirínticos os caminhos vertidos por Kafka em suas obras... inacabadas!? Não seriam multimidiáticas as obras que aliam textos e imagens? Não haveria interatividade em “O jogo da amarelinha”, de Cortázar? Reconheço razão nas questões. Entretanto, o que se pode imaginar ante as perspectivas digitais é algo muito mais complexo, como sabemos. Ainda que possamos visualizar um “hiperlink” em uma citação que remete o leitor a outro texto, há aqui um problema de espacialidade, porque tal citação obriga o leitor a um deslocamento físico até a biblioteca, por exemplo, onde procurará o texto impresso. Tal deslocamento implica em diferenças nas práticas de leitura e sacralização da informação, tanto quanto do surgimento dos tipos móveis e a consequente popularização dos impressos implicou, conforme estudado por Roger Chartier. Se na Idade Média as obras disponíveis para a leitura revestiam-se de autoridade e perigo, a maior parte delas resguardadas nas graves bibliotecas dos mosteiros, onde eram copiados à mão por monges cujo legado à posteridade foi justamente esta marca anônima gravada nas palavras e iluminuras que preencheram páginas e mais páginas de incontáveis in-fólios, a reprodução tipográfica do saber humano permitiu ao livro um caráter novo, de fruição, de prazer. Eis então a imagem idílica de uma jovem, um seio desnudo, lânguida, estirada sobre a relva, os olhos mergulhados nas páginas de uma brochura (“Madalena Penitente”, de Girolamo Batoni). Afirmar isto, em concordância a Chartier, não significa dizer que o livro perdeu seu poder simbólico, sua gravidade, sua autoridade. Não, tais atributos ainda lhe são conferidos, caso contrário, o que explicaria o fato de tantos de nós posarmos para fotografias tendo às mãos algum livro (de preferência volumoso) ou, às nossas costas, como cenário, estantes abarrotadas de volumes? Eis aqui, talvez, um argumento que justifique a circulação de livros de papel dentre nós, apesar da proliferação dos virtuais. Quando levamos um título sob as axilas, ou seguro à mão, queremos também dizer de nós, tal qual dizíamos quando saímos de casa com o novo LP do Chico Buarque ou do Geraldo Vandré. Se neste momento em que escrevo estas linhas, há quem ouse patrocinar a produção de discos de vinil – cujo velório e sepultamento presenciamos – , ainda que sob argumentos da qualidade peculiar do som que a tecnologia digital não preserva, patrocina-a também porque sabe que o LP significa para além da fruição da música que contém. Sabemos que ouvir um LP implica em postura diferente de ouvir um disco digital ou as milhares de músicas possíveis de serem armazenadas em um i-pod. A respeito disso muito já se escreveu, e não pretendo repetir argumentos que conhecemos. Entretanto, quero apenas costurar aqui uma associação possível entre o disco de vinil e o livro de papel. Sim, porque tal qual o LP, o livro reveste-se de um “valor agregado” que vai para além da coisa em si. Afinal, a coisa livro deve portar e comunicar um saber, eis sua finalidade. Entretanto, enquanto mercadoria, o livro é fetiche, objeto de culto e desejo, e pode dizer ainda que suas páginas permaneçam virgens. É este fetiche que um volume carrega difícil de ser substituído pela tecnologia digital.

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Mas retornemos, falávamos de Darnton, das diferenças de suportes e de como estes interferem em nossas práticas de leitura. Antes, porém, quero ampliar o diálogo e convidar ao texto Umberto Eco e Jean-Claude Carrière que, sob a égide de Jean-Philippe de Tonnac, mantiveram uma conversa a respeito de livros, bibliotecas e civilização. Tal conversa transformou-se no livro “Não contem com o fim do livro”, publicado no Brasil pela Editora Record em 2010. Eco e Carrière, além de importantes intelectuais do nosso tempo, são também bibliófilos, o que transforma um bate-papo entre eles em algo saboroso de se acompanhar. Enfim, lá pelas tantas, Carrière – que é cineasta – , levanta a hipótese de que nossa forma de ler os livros, no Ocidente, teria influenciado nossa cinematografia. Transcrevo Carrière: “Se penso no nosso uso do livro, nosso olho vai da esquerda para a direita e de cima para baixo. No caso da escrita árabe e persa, do hebraico, é o contrário. O olho vai da direita para a esquerda. Perguntei-me se esses dois movimentos não tinham influenciado os movimentos de câmera no cinema. A maioria dos travellings, no cinema ocidental, vai da esquerda para a direita, ao passo que verifiquei muitas vezes o contrário no cinema iraniano, para citar apenas este. Por que não imaginar que hábitos de leitura possam condicionar nossos modos de visão?

Não compreendo muito de cinema, tampouco assisti a muitos filmes orientais para concluir qualquer coisa a respeito dos seus movimentos da câmera, mas a provocação de Carrière interessa na medida em que pressupõe uma relação entre a técnica de escrita e leitura de cada cultura e sua leitura de mundo. Ou ainda, a hipótese levantada por Carrière nos permite ir além e conjecturar que, da mesma forma como diferentes suportes para o texto implicam em diferentes práticas de leitura, diferentes práticas de leitura de um texto implicam em diferentes práticas de leitura de mundo. Pois não? De qualquer forma, não é este o problema principal de Robert Darnton ao se referir aos suportes para o texto. Para o historiador e diretor da biblioteca de Harvard, a questão do suporte aproxima-se de uma afirmação que encontramos em uma das falas de Umberto Eco, que também transcrevo: “Vimos que suportes modernos tornam-se rapidamente obsoletos. Por que correr o risco de nos atulharmos com objetos que correriam o risco de permanecer mudos, ilegíveis? Temos a prova científica da superioridade dos livros sobre qualquer outro objeto que nossas indústrias culturais puseram no mundo nesses últimos anos. Logo, se devo salvar alguma coisa que seja facilmente transportável e que deu provas de sua capacidade de resistir às vicissitudes do tempo, escolho o livro”. Eis um problema, e Darnton traz um caso que pode muito bem ilustrar o temor de Eco. Há algumas décadas muitas bibliotecas e arquivos iniciaram um processo de microfilmagem das suas coleções de jornais. A microfilmagem justificava-se porque permitia ao leitor acessar as informações de forma mais rápida e sem necessitar desfolhar páginas frágeis e amarelecidas. Em um primeiro momento, portanto, a microfilmagem concorria inclusive para a preservação dos jornais em seu suporte original, já que apenas seriam diretamente acessados em situações muito específicas. Porém, muitos bibliotecários e arquivologistas entenderam que a microfilmagem e a preservação dos originais acarretava em uma desnecessária duplicação de documentos, principalmente se considerada a incapacidade de se ampliar indefinidamente o espaço físico para o armazenamento de toda a informação que continuamente produzimos. Assim, muitas instituições processaram o descarte de jornais e outros documentos, já que dispunham das coleções microfilmadas. Não contavam, entretanto, que a tecnologia do microfilme podia se tornar obsoleta e, pior, que o suporte em si poderia se deteriorar, como de fato aconteceu em muitos casos, acarretando na perda definitiva de documentos preciosos. Há aqui um risco real quando pensamos na dimensão que tomou, hoje, a digitalização do conhecimento. Não só alguns jornais, livros e revistas já nascem e circulam exclusivamente no formato digital, como uma razoável parcela do conhecimento que a humanidade imprimiu sobre o papel ao longo do tempo está sendo digitalizada e disponibilizada através da internet. Não é difícil encontrarmos argumentos que justifiquem a prática enquanto benéfica: a digitalização permite que mais pessoas de diferentes lugares possam acessar informações até então restritas às bibliotecas e arquivos muitas vezes praticamente inacessíveis, contribuindo-se assim na democratização do acesso à informação; textos digitalizados podem ser diretamente impressos, diminuindo o desgaste dos suportes originais, antes expostos ao contato humano e à luz das fotocopiadoras; a inserção de hiperlinks nos documentos digitalizados facilita o cruzamento de informações; a publicação digital pode baratear custos de publicação e aproximar autores e obras. Enfim, são variados os argumentos, e empresas importantes respaldam-se neles para empreender verdadeira cruzada em pról da constituição de enormes bibliotecas digitais (quiçá acreditando poder finalmente construir a tão sonhada biblioteca universal). É o caso, por exemplo, da Google, que já possui um significativo acervo de obras antigas e recentes disponíveis em seus arquivos digitais, questão com a qual Robert Darnton se preocupa nos artigos reunidos em “A questão dos livros”. Não se trata, obviamente, de ser contra as políticas de digitalização de acervos, ou de saudosimo, apostando no fracasso das publicações em formato digital. O próprio Darnton coordenou o projeto “Guttenberg-E”, que teve início com a publicação em e-book de teses defendidas em Harvard e consideradas excepcionais. O alerta que Darnton lança é, primeiramente, para a possibilidade de um futuro monopólio do saber por parte de empresas como a Google. A digitalização de acervos pode acarretar no relaxamento da preservação dos suportes físicos do conhecimento humano, ou seja, no desaparecimento de títulos que passarão a existir exclusivamente no banco de dados da Google ou alguma outra empresa, que por sua vez pode restringir o acesso mediante o pagamento de valores que a própria empresa estipulará. No futuro, ler um livro hoje popular e amplamente acessível, pode se tornar algo bastante caro e exclusivo. Além disso, nada sabemos a respeito dos provedores de internet do futuro e de como se dará o gerenciamento das informações. Questões econômicas – como a que citamos – e questões de Estado poderão restringir, censurar ou até mesmo destruir informações que existirão exclusivamente no território virtual.

O escritor e também bibliófilo Alberto Manguel, em seu livro “A biblioteca à noite” (Companhia das Letras, 2006), escreve que “ler um livro não equivale perfeitamente a ler uma tela, não importa qual seja o texto. Assistir a uma peça de teatro não equivale a ver um filme, ver um filme não é o mesmo que ver a um DVD ou vídeo, contemplar uma pintura não é o mesmo que examinar uma fotografia”. Concordamos, como já o dissemos. Mas as preocupações de Darnton nos levam para além dos sentidos de leitura e das relações que passaremos a estabelecer com o avanço dos suportes digitais do conhecimento. Darnton nos alerta para a preservação mesmo deste conhecimento ante o avanço de uma tecnologia que se impõe como solução para nossa sede de saber e problemas de espaço físico, mas que pode se render às viscissitudes políticas e tecnológicas. Daí a necessidade de se debater com profundidade e amplitude a questão da digitalização da informação. Debate este que deve ser universalizado, e não permanecer restrito aos especialistas do livro e da tecnologia da informação.

 
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