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“o remorso de baltazar serapião” Imprimir E-mail

capa“a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só o diabo e gente a arder tinha destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo do mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.” É assim que inicia o romance “o remorso de baltazar serapião”, do autor português Valter Hugo Mãe e que o Sarau Eletrônico comenta.

“o remorso de baltazar serapião”

Viegas Fernandes da Costa
Editor do Sarau Eletrônico

capa“a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só o diabo e gente a arder tinha destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo do mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.”

É assim, com toda esta carga de misoginia e oralidade, que o narrador – e também protagonista – de “o remorso de baltazar serapião” começa a narrar sua história, ambientada em uma Idade Média qualquer. Baltazar Serapião (vou grafar os nomes próprios com as iniciais em caixa alta, ao contrário de Valter Hugo Mãe – o autor, que em momento algum utilizou maiúsculas em seu romance porque, segundo declarações suas ao jornal O Globo em 2011, desta forma procurou aproximar o texto escrito ao fluxo da linguagem oral) é um camponês que habita as terras de Dom Afonso juntamente com sua família: o pai, a mãe, a irmã Brunilda, o irmão Aldegundes, a esposa Ermesinda e a vaca de estimação Sarga, com a qual a família é associada.

Segundo as crenças dos moradores do feudo de Dom Afonso, os filhos da família Serapião eram todos Sarga porque nascidos do ventre da vaca, fato contestado por Baltazar. E talvez seja este o principal tema deste romance de Valter Hugo Mãe: a busca da humanização, da superação do ser humano do seu estado bestial, da exploração do trabalho e do corpo coisificado, da vivência em detrimento da sobrevivência. É “a luta pela humanidade plena travada pela família apelidada de Sarga”, como aponta o crítico Sérgio Rodrigues no texto “Avacalhando preconceitos”, o eixo ao redor do qual desenvolvem-se as desventuras dos Serapião: o casamento de Baltazar com a mais bonita das mulheres, Ermesinda, que aos poucos vai sendo mutilada e desfigurada pelos ciúmes do marido; a descoberta dos pendores artísticos em Aldegundes, pintor capaz de tirar “caras de anjo e corpos claros a confundirem-se com perfeições nunca vistas” de camponeses estropiados pelas duras condições da vida; a exploração sexual de Brunilda e Ermesinda; ou a maldição de uma bruxa que escapara do linxamento público não sem antes ter seu corpo marcado pelo fogo. Imersos em uma atmosfera de realismo mágico, em território atravessado pelos preconceitos de toda ordem, o amor, a arte e a proximidade com o poder são os elementos que se apresentam capazes de devolver aos Serapião a dignidade de humanos; mas que ao fim tombam frustrados. Tudo que resta, afinal, é a passividade bestial da Sarga, a vaca.

Valter Hugo Mãe, apesar de nascido em Angola, é radicado no interior de Portugal desde a infância. O universo de “o remorso de baltazar serapião” pode ter emergido da experiência social do autor na província em que cresceu, como de alguma forma já declarou em entrevistas para a imprensa. Entretanto, o que o romance parece apontar é uma espécie de síntese entre a literatura portuguesa contemporânea (principalmente naquilo que se refere aos experimentalismos estéticos da linguagem de José Saramago e sua arquitetura fabulosa) e a literatura pós-colonial praticada atualmente nos países lusófonos, onde a oralidade, os elementos mágicos e fantásticos e um certo engajamento social quando da escolha dos temas a serem trabalhados são as principais características a serem destacadas. É o caso, por exemplo, da condição da mulher, tema recorrente em obras de autores africanos como Paulina Chiziane, Mia Couto, José Eduardo Agualusa entre muitos outros.

No mundo retratado em “o remorso de baltazar serapião”, “as mulheres só são belas porque têm parecenças com os homens”. Desprovidas de inteligência, porém ardilosas e “muito perigosas, alimentavam os homens e podiam fazê-los comer pó que os matasse”. Ainda segundo o narrador-protagonista, “o que lhes tirou deus em préstimo de espírito deu-lhes em curvas e cor, servem perfeitamente para nos multiplicar e muito agradar. mas isso de inteligência é como te disse, cuidado com o que sabem porque acham mais do que sabem.”

Apesar de abusar de recursos há muito e repetitivamente experimentados (como o uso dos neologismos inspirados em Guimarães Rosa e abusados por Mia Couto, e a subversão das regras de pontuação e da gramática – pertinentemente inaugurada pelos modernistas e magnificamente apropriada por Saramago), ecoando como clichês cansativos nas obras desta novíssima geração de escritores lusófonos a qual Valter Hugo Mãe pertence, “o remorso de baltazar  serapião”, vencedor do “Prêmio Literário José Saramago” em 2007, interessa e provoca. Tecitura de uma tentativa identitária entre uma Europa economicamente decadente e uma África que procura se construir a partir dos escombros herdados do colonialismo, a história das desventuras da família “Serapião” incomoda-nos porque nos leva a pensar nossa condição de humanos bestializados que sobrevivem acreditando viver, tangidos pelas idiossincrasias da economia e mergulhados no caldeirão confuso do medo e da magia.

 
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