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José Endoença Martins: "Como é fóssil ser poeta hoje em dia" Imprimir E-mail

“Como é fóssil ser poeta hoje em dia”: Nesta entrevista, concedida em março de 2008, o escritor e professor de literatura José Endoença Martins fala da sua infância, dos seus primeiros textos, reflete sobre a literatura blumenauense e sobre a literatura dos afro-descendentes.

“COMO É FÓSSIL SER POETA HOJE EM DIA”

JEM1O escritor blumenauense, e professor de Literatura, José Endoença Martins estuda e pratica literatura em Blumenau desde a década de 1970. Sua produção literária engloba a poesia, o conto, a crônica, o romance e o ensaio. Enquanto pesquisador estuda a literatura de afro-descendentes e a literatura produzida em Blumenau após 1960, para a qual cunhou as metáforas “Blumenalva” e “Nauemblu”. Criador da Teoria do “Poema-Minuto”, Endoença nunca dissociou a sua prática enquanto escritor da reflexão sobre a literatura. Nesta entrevista, concedida em março de 2008, José Endoença Martins fala da sua infância, dos seus primeiros textos, reflete sobre a literatura blumenauense e sobre a literatura dos afro-descendentes.

(Entrevista: Viegas Fernandes da Costa /Fotos: Rochele Figueiredo Cardoso)


Vamos falar da tua infância. Como era ser um negro do “Jarakenbach” (localidade onde Endoença cresceu) na Blumenau das décadas de 1950 e 1960?

Uma primeira questão era a econômica. Na escola em que eu estudava meus colegas tinham sapatos, e eu aparecia de pés descalços. Uma outra manifestação, esta racial, foi uma professora que disse assim: “vem cá negrinho!”.  Eu via essas coisas, mas com oito ou dez anos elas não repercutiam muito. Até porque a minha maior preocupação naquele tempo era jogar futebol. Eu gostava muito de futebol, e jogava bem o futebol. Então isso passava batido. Eu gostava de uma expressão que minha mãe usava muito: “ofendeu diz: o negro está no vão da perna.” Isto era forte, eu gostava de dizer e dizia bastante. Então a minha vida naquele tempo, até os onze anos, quando fui para o Seminário Franciscano São Luís de Tolosa, em Rio Negro, no Paraná. Ali fiquei dois anos. Fiz o Primeiro e o Segundo Ginasial. O Terceiro Ginasial eu fiz em São Paulo, no seminário Santo Antônio. Então estes oito, nove anos de seminário fizeram com que eu praticamente me distanciasse do “Jarakenbach”. Eu só voltava no final do ano, e já em fevereiro voltava para o seminário. E basicamente a minha vida, enquanto eu estava no “Jarakenbach”, nessa época, era a sala de aula, jogar bastante futebol. Nós tínhamos ali no “Jarakenbach” um time de futebol que era forte, e jogávamos com os meninos do bairro de baixo. E praticamente era isso. Eu não tinha muita pretensão de ser escritor, de ser professor. Essas coisas ainda não apareciam já que o futebol tirava todo o tempo.

Quem te incentiva à leitura? Existiam livros na tua casa? A partir de que momento entras em contanto com a leitura e, quando entras, o que vais ler?

Em casa eu não me lembro de leituras. Eu provavelmente lia os cadernos e os livros de alfabetização, esses livros didáticos que a gente usava na sala de aula. Então eu não tinha muita noção de leitura até a ida ao seminário. Porém eu tinha, por exemplo, algumas noções de programas de rádio. Havia alguns seriados, umas novelas de rádio, onde havia o Jerônimo – o herói do sertão – e o Anjo. O Jerônimo era um seriado de aventuras pelo interior do Brasil, já o Anjo era mais intelectualizado, trazia questões de ciência. Mas leitura mesmo, não. Não me lembro de ter lido um livro, ou de algum livro que tenha me marcado até os onze anos, até eu ir para o seminário. Depois, no seminário, aí sim a coisa se abre bastante. Bom, só sei que eu não me lembro dos livros que li na escola. Fiz exame de Admissão para entrar no Pedro II, e de lá também não me lembro dos livros. A única coisa da qual me lembro, sobre livros, é justamente nas aulas de religião. O Frei Gilberto saía da Matriz para dar aulas de religião para nós, e eu tinha muita facilidade e sempre me envolvi mais com as aulas de religião. E sempre que eu fazia boas provas, ganhava um santinho. Eu acho que foi isso que talvez fez com que o Frei Gilberto pensasse que eu tinha vocação, e ele agendou tudo para que eu fosse para o seminário. Então ele me levou para Rodeio, tinha um seminário também ali, mostrou-me tudo e me colocou para conviver com os alunos. Depois eu passei no exame de Admissão para o Pedro II, mas ao invés de ir para lá, fui para o seminário em 1971. E aí a minha vida com livros começa com a biblioteca do seminário, que era grande. E foram dois os autores que mais me marcaram. Um dos autores era o Emilio Salgari, um italiano. Os grandes livros dele, que mais me marcaram, estavam voltados para a aventura no mar. E o segundo autor era o Karl Mai, que escrevia aqueles livros também sobre aventuras. Um dos livros que mais me marcou, não sei se era uma trilogia, foi um que falava sobre os índios nos Estados Unidos. Então, no começou, os dois grandes autores foram estes. Depois, quando comecei a estudar literatura brasileira com mais afinco, literatura francesa, literatura inglesa, grego, latim, as coisas se abriram bastante.

Por que saíste do seminário?

Eu saí do seminário no último ano do Clássico porque os padres decidiram que eu não tinha vocação. Como eles decidiram isso eu também não sei! Não me explicaram. Disseram: “eu acho que você não tem vocação.” E eu respondi: “tudo bem, então eu vou embora”. Mas eu mais ou menos imagino o que deve ter sido. Eu me lembro que no último ano, onde já éramos maiores, estávamos nos preparando para o noviciado, e por isso tínhamos mais liberdade. Num um domingo eu tomei a liberdade de ir junto com a kombi dos padres para o centro da cidade. Ninguém disse que eu não podia ir. A kombi cheia de padres, alguns iam rezar missa em alguns lugares, a kombi também ia para lá pegar a correspondência nos Correios, e eu fui junto. Depois a kombi voltou e eu fiquei na cidade dando umas voltas. No outro dia o padre prefeito me chamou e perguntou por que eu tinha feito aquilo. Eu disse que não tinha ido sozinho, que tinha ido com os padres, que estava todo mundo junto. Acho que foi aquilo a gota d’água. Acho que eles já achavam que eu não tinha vocação, ou já tinham decidido isso, porque eles decidiam mesmo, e aquilo tenha ajudado na decisão. Eu também não quis criar caso. Quem sofreu mais com isso foi a minha mãe. Minha mãe chorou uns dois meses, porque o grande sonho dela era ter um filho padre, e eu já estava uns oito anos lá. Em agosto escrevi uma carta para ela dizendo “ó mãe, no final do ano já não estou mais no seminário”. Eu sou o primeiro não paulista de uma filha de sete filhos, sou o quarto. Três nasceram em São Paulo, eu nasci em Blumenau, e depois nasceram mais três irmãs em Blumenau.

Mas a tua família é originária de São Paulo?

A minha mãe é paulista, o meu pai catarinense. Como policial ele foi para lá, casou com ela, ficou um tempo por lá, em Apiaí, e depois resolveram voltar para Blumenau. Porque a família do meu pai morava em Blumenau. Ele resolveu voltar para cá porque achou que talvez a vida fosse mais fácil aqui. E aí eu nasci aqui.

Vamos entrar na parte da tua literatura. No teu primeiro livro, “Educação, aprendendo a brincadeira na FURB”, tem uma crônica chamada “Poetas de varal”, e ali tu tens uma frase que diz: “aí a gente fazia a nossa festa poética como a uma missa de versos bêbados”. Que avaliação tu podes fazer hoje a respeito da literatura blumenauense feita naquele tempo, na década de 1980? É possível fazer algum paralelo com a literatura produzida hoje? Ainda temos uma festa poética? Ainda temos uma missa de versos bêbados?

JEM2Eu não conhecia mais este verso. Bem, não é um verso, é uma opinião.  Se a gente pegar alguns poetas, eu acho que talvez os versos estejam mais bêbados hoje por causa de uma certa aliteração, de uma certa preocupação com o caos. Se eu ligasse, por exemplo, estes versos bêbados com a “Nauemblu”, eu acho que nós temos um paralelo. E eu acho que hoje os versos estão mais bêbados, positivamente bêbados, no sentido de serem mais caóticos, de serem até mais bem elaborados, com preocupações estéticas melhores do que lá. Nos anos 70 e nos anos 80 eu era mais novo e posso dizer que a gente tinha, talvez, uma preocupação mais espontânea. Eu estava fazendo Letras, mas também não tinha um conhecimento profundo de como fazer. A gente fazia de uma forma mais espontânea. O Varal foi uma construção do Alcides Buss. O Alcides Buss fazia muito a poesia de varal. E a gente foi influenciado por esta proposta mais marginal de ocupar espaços públicos e institucionais com os Varais. Nós tínhamos um grupo de Varal. Eu estava junto com um grupo de alunos e alunas de Letras, e muitos deles hoje lecionam na FURB. Então eu acho que se houver uma relação, não sei se chega a esta missa, mas certamente eu acho que os poemas de hoje são mais bem elaborados. Há um conhecimento maior, uma preocupação maior, e eu também acho que há uma seriedade um pouco maior, já que os grupos estão se institucionalizando mais. Havia uma preocupação naquele tempo, pelo menos nas pessoas que eu conheci, com a publicação do texto, porque havia aqui o Jornal Universitário do Acari Amorim, que publicava os poemas dos autores, principalmente dos autores ligados à FURB, e havia também o Jornal Acadêmico, que o Oldemar Olsen comandava junto com a Maria Odete. Então estes dois jornais abriam espaço para a produção interno, e fora havia o caderno do Jornal de Santa Catarina no qual a gente também podia publicar. Então talvez o espaço para publicação havia em maior quantidade e maiores variações. Se você pegar Florianópolis, com o jornal O Estado, em Joinville com o jornal A Notícia, Blumenau com o Jornal de Santa Catarina, havia espaço e a gente podia produzir. Agora, a qualidade era meio complicada. Eu acho que hoje os poetas são mais cuidadosos. Há talvez uma liberdade maior para a expressão, há um conhecimento maior de teorias literárias, e por isso acho que a produção é maior. E fazendo essa ligação com a “Nauemblu”, eu acho que eles estão mais bêbados no sentido do caos, mas um caos produtivo. E quanto à missa eu não posso dizer muita coisa. Eu só queria que você repetisse esta frase porque eu gostei.

A frase é tua: “aí a gente fazia a nossa festa poética como a uma missa de versos bêbados”.

É uma frase bonita, mas é uma frase de efeito. Hoje eu não sei. Teria que pensar um pouco mais para responder.

O teu romance “Enquanto isso em Dom Casmurro” apresenta uma visão pouco indulgente de Blumenau, onde o germânico não passa de um simulacro e que a cidade teria sido fundada por alemães pouco equipados intelectualmente. Uma cidade onde todos fingem ser o que não são. Quando lançado, este teu romance gerou algum tipo de reação por parte da sociedade local? Blumenau continua sendo este simulacro, esta cidade fundada por pessoas pouco desenvolvidas intelectualmente?

É preciso contextualizar isto. De 1993 para 2008 são quinze anos. O romance tinha a preocupação de brincar um pouco, fazer um pouco de humor. Por exemplo: criar uma personagem que sai de um romance realista e colocá-la numa situação como a de Blumenau, que é uma cidade de imigrantes e por isso já misturada, era uma situação estética que eu achava interessante naquele tempo, porque eu sempre achei que deveria escrever um texto pós-moderno. E quando a gente afirma que é pós-moderno, os caras que vão ler também concordam conosco. Então eu sei que muitos concordaram e disseram que era um livro pós-moderno por isso e aquilo. Mas essa pós-modernidade estava fazendo efeito dentro de mim, ou dentro da minha cabeça, e eu não sabia fazer isso em termos de um livro. Mas quando comecei a escrever o livro, saiu desta maneira. Eu não sei se houve reação das pessoas. Os que leram se manifestaram em cima de duas coisas. Uma: por que essa personagem negra tem uma empregada branca e alemã? Esta era uma das questões. A outra era o excesso de sexo. Alguém chegou até a me dizer, acho que parodiando Flaubert: “Madame Bovary é Flaubert, então a Capitu é José Endoença Martins, Bertília é José Endoença Martins”. Eu sei das reações que eu li. Por exemplo: no jornal DC a Ula Weiss fez uma entrevista longa, o Lauro Junkes fez um comentário. Em termos de mídia a reação foi boa. Fui para a televisão. Agora, se a população ficou ofendida eu não sei. Acho que a população não leu. Então essas reações são positivas, agora não tanto a Blumenau, porque talvez ninguém tenha associado diretamente a Blumenau já que o título não diz isso, porque a gente diz “enquanto isso em Dom Casmurro” e as pessoas associam ao Dom Casmurro e não a Blumenau. Então as leituras que foram feitas, foram feitas justamente em cima desta relação. E eu também estimulei isto. Eu dizia: “como é que um afro-descendente que se acha pós-moderno pode fazer uma relação com um afro-descendente que é realista?” Então é o realismo e o novo realismo, a modernidade e a pós-modernidade. E foi isso que mais pegou com os críticos que se dedicaram a analisar a obra. Então esta relação com o Machado de Assis é mais óbvia com o título, e isto talvez tenha dirigido a leitura que as pessoas fizeram a respeito dele. Agora, se o público reagiu, bem, estas coisas não estão escritas, ninguém se manifesta, também não recebi nenhuma opinião contrária. Alguns diziam que era interessante, outros diziam que não era interessante. Mas a relação com Blumenau fica meio escondida. E a relação com a FURB, porque uma grande crítica que eu faço era em relação à FURB, quando dizia que ela era um grande Paraguai, isso também não repercutiu.

E a cidade continua sendo um simulacro?

Eu acho que sim. Toda cidade é um espetáculo, um simulacro. Quando escrevi o livro eu achava que a Sula Mirada representava isso, e hoje com os CTGs isso só ficou mais forte. A gente continua vivendo a cultura que é possível. O simulacro está em que as coisas são representadas da forma como podem ser representadas, e cada um vai representar da maneira que vê a situação. Pode parecer uma crítica, mas também é uma manifestação de “é isso mesmo!” Não é positivo nem negativo. Blumenau tem a Oktoberfest, mas também tem a Festa do Cavalo, tem o CTG que é gaúcho, tem o sertanejo. Agora fiquei sabendo que tem um restaurante na Vila Germânica que tem um dia que é só música country. Acho que é por aí mesmo. Não vejo que tenha mudado muita coisa. Os vários espaços se abriram muito mais e as misturas estão cada vez maiores. Então a gente vai dançar ainda muita valsa, e muita música alemã misturada com country, com axé, com pagode e este é o espetáculo.

Nós percebemos que tanto nos teus poemas, como na tua prosa, há uma preocupação com a práxis literária. O teu fazer poético e ficcional promovem sempre uma reflexão, uma teorização, que depois gera novos fazeres poéticos e ficcionais. É o caso dos teus Poemas Minuto que geraram a teoria do Poema Minuto. O Poema Minuto ainda está vivo? Por que não publicas mais poesia?

Eu acho que o Poema Minuto ainda está vivo. E pela maneira como eu desenvolvi essa preocupação poética, pelos vários livros que foram publicados desde “Me pagam pra kaput” até “Diet Poesia”, a gente pode dizer que ainda não morreu. Agora, dizer por que eu não faço mais poesia, posso até explicar, mas seria apenas uma explicação. Nós não dominamos estas funções. A gente vai até um certo tempo, depois dá uma guinada, passa para outra coisa e assim por diante. Eu comecei como poeta. Desde 1972 com meu primeiro texto poético publicado em jornal, e até mesmo antes, com 16 anos, no seminário, fazendo versinhos. Quando eu vim para Blumenau, andava procurando os poetas. Encontrei o Dario Deschamps, o Lindolf Bell e todo o pessoal. Em 1972, quando comecei a lecionar, encontrei o Geraldo Luz, na mesma época em que publiquei meu primeiro poema, que era uma profissão de fé sobre a poesia. De lá para cá não parei mais. E o Poema Minuto é uma estética que eu quis criar. Há sempre esta preocupação de dizer “eu faço”, mas também gosto de refletir a respeito. E também para reagir a um comentário que o Fábio Brüggemann fez. O Fábio, lendo o meu livro “Me pagam pra Kaput”, em um determinado momento vai dizer que o poema tem isso e aquilo e: “uma das qualidades do poema de José Endoença Martins é que ele tem ritmo, e de repente o poeta até promete”. Tudo bem, tive que responder. Foi uma briga por jornal. E depois disso eu resolvi então fazer alguma coisa: “o que eu quero quando faço poesia?” Saiu o primeiro livro, o segundo, o terceiro, e então eu comecei a dizer assim: existe uma preocupação estética aqui, que é fazer um poema curto, e o poema curto tem duas qualidades: ele tem que convidar o leitor a dedicar um minto da sua atenção ao poema e no fim terminar com um sorriso, que é a parte do humor. Isto eu consigo fazer em alguns poemas, em outros eu não consigo, já que ficam reflexivos demais. Então essa é a preocupação. Por causa do humor, por causa do tamanho do poema, por causa dos aspectos que o Poema Minuto comporta, eu acho que ele ainda pode estar vivo. Sobre a segunda parte da pergunta quero dizer que não publico mais poemas porque eu entrei no ensaio, na ficção, e de repente eu já não sei mais voltar disso. Já tentei fazer poemas de novo e não sai. Acho que vou ter que ler meus poemas, refazer meus poemas para aprender a fazer poemas de novo dessa maneira. A não ser que eu mude tudo! Ache uma outra maneira de fazer poesia. Aí só o tempo dirá.

Disseste que começas a publicar poesia em 1972, e teus primeiros livros são da década de 1980. Depois disso começamos a perceber o surgimento de outros poetas com estéticas parecidas na região: o experimentalismo, o poema curto. Estes poetas começam a aparecer a partir da década de 1980 e na década de 1990, como é o caso do poeta Douglas Zunino, por exemplo. Tu achas que a estética da poesia brasileira da década de 1970, a poesia marginal, a poesia concreta, chega a Blumenau contigo, e que depois fazes escola e influencias outros poetas a ousar novas estéticas? Ou tu és fruto de alguém que já produzia isto aqui na região?

Bom, este tipo de análise eu nunca fiz. A gente achava que era marginal porque a palavra marginal eras interessante. Agora, quando aconteceu a poesia marginal no Brasil todo, ainda não havia ninguém fazendo uma análise do que seria essa poesia. Então acho que todo mundo se enquadrava como marginal. Acho que eu devo ter bebido em algumas fontes, porque também líamos autores nacionais. Não sei se eu tinha uma preocupação estética. Os poemas foram saindo assim, sem uma consciência. Eu fui produzindo e eles foram saindo. Acho que uma das características do meu poema é ser curto e, como dizia Dario Deschamps, ter uma linguagem popular. Ele não tinha uma preocupação em medir as palavras ou buscar a melhor palavra. Ele era mais espontâneo, e por isso talvez o aspecto das palavras e os palavrões estarem mais presentes. Enquanto que se você pegar, por exemplo, o poema do Oldemar Olsen, você vai ver um poema muito mais cerebral. Ele tinha a intenção de tecer comentários mais racionais a respeito de uma visão de mundo. Eu não. Eu tinha uma preocupação em escancarar, e o humor era a minha questão. E me lembro de um fato que talvez possa explicar um pouco essa preocupação com o popular, com o humor, com a brincadeira, com a blague e com o deboche. É justamente uma conferência que houve aqui em Blumenau, e estavam na mesa o Péricles Prades, o Lindolfo Bell e o Lauro Junkes, os que tinham uma produção maior, e todo mundo falando das qualidades do poema, que o poema tinha que ter isto e aquilo, que o poema tinha que ser bem elaborado, e eu disse que o poema tinha que ser uma brincadeira, que a gente tem que brincar com a poesia. Ninguém me levou a sério. E talvez seja isto que já estava lá latente e que depois foi saindo nos meus poemas. Eu acho sim que esta preocupação com o poema tem relação com esta preocupação nacional com o poema marginal, com a preocupação do poema do movimento modernista, que é pequeno, simples, direto, que tem humor, que tem o “tupi or not tupi”, o jogo de palavras. Tudo vai desembocar na minha poesia. Mas eu nunca fiz esta reflexão, se a estética vem comigo, se influenciei ou fiz escola, isto eu não sei. Também não sei onde o Douglas vai beber isso. Acho que há semelhanças, também porque não estamos tão distantes. Mas não vejo esta relação direta de influências.

A partir de dois neologismos criaste uma teoria para analisar a literatura praticada em Blumenau a partir da década de 1960, a “Blumenalva” e a “Nauemblu”. Esta dualidade não limita a literatura produzida aqui? A “Nauemblu” não seria um conceito muito limitador para a pluralidade ficcional e poética que aqui se produz?

Eu acho que sim. Como toda teoria, ela é limitante. Ainda assim, enquadrar um tipo de literatura dentro de duas possibilidades é sempre limitante. Este é um dado. O outro é que, apesar da limitação, este enquadramento também ajuda você a tomar algumas posições a respeito de como olhar a literatura local. Porque me parece que a dualidade é uma tradição na crítica literária blumenauense. Se você pegar a dualidade da Valburga Huber, com saudade e esperança, e depois JEM3esta dualidade de “Blumenalva” e “Nauemblu”, parece-me que as pessoas que discutem a literatura de forma mais crítica ainda não descobriram, ou não intuíram, ou a literatura ainda não revelou, a possibilidade de uma outra alternativa. Ou nós estamos cegos, porque não vemos uma terceira via, ou ela não existe e terá que ser inventada. A Valburga parte do que os poemas dizem: tem saudade – o Victor Schleiff disse “tenho saudade da minha terra” – mas tem esperança também, porque alguns dizem “eu quero que esta cidade aqui seja para nós o leito e o mel, a nova Canaã”. Então esta saudade e esta esperança estão lá, os poemas já diziam isso, as ficções já diziam isso. A partir dos anos sessenta descubro por acaso estas duas palavras e tento ver se elas representam alguma metáfora para a cidade. E percebo que sim. Agora, os poemas já diziam isto. “Blumenalva” está lá no poema do Bell. “Nauemblu” também. Então eu acho que é limitante esta dualidade desde lá dos primeiros colonizadores até agora. Mas talvez esta limitação seja mais nossa, críticos e fazedores de literatura, que ainda não conseguimos ver outras coisas. Há a necessidade de ver no poema. A gente só vai ver se nos dedicarmos a ler estes poemas. Eu só cheguei a isto depois de ficar anos e anos fazendo leituras da literatura blumenauense. Isto não foi uma coisa que simplesmente apareceu. Ela só apareceu depois de muitos estudos. Então precisamos de mais dedicação, mais detalhamento e mais comparações.

A impressão que se tem, quando observamos as tuas análises sobre a literatura dos afro-descendentes, é que ali não tem uma dualidade, tem uma tríade: o Ariel, que é o negro que assimila, que se submete; o Calibã, que é aquele que se opõe; e tem o Exu, que é o catalisador. E na interpretação da literatura blumenauense parece que nós temos o Ariel, o “Blumenalva”, aquele que se associa ao germânico; tem o Calibã, a antítese, o “Nauemblu”; e a impressão que temos é que ainda falta o catalisador.

Eu acho que é isso mesmo. Mas talvez porque nós ainda não temos as ferramentas para descobrir esta terceira possibilidade. E ela também não vai aparecer quando a gente quer. Ela só vai aparecer quando a gente tiver estudos suficientes para encontrá-la. Talvez ela já esteja lá, esta terceira possibilidade, este catalisador, mas ninguém vê. Eu ainda não vi e não sei se alguém vai ver. Só a dedicação e o estudo é que vai revelar. Claro que dá para trazer de fora, mas o ideal seria você trazer isto de dentro, como fez a Valburga, como a “Nauemblu” sugere, como a Blumenalva também. No caso da literatura afro-descendente, talvez pela exposição maior, pela abrangência, porque vem desde a África até a Europa, os estudos são maiores e a gente percebe isto com mais facilidade. E também porque há a nossa incapacidade de ver mais coisas que a nossa literatura própria revela.

Recentemente vens te dedicando mais à questão da negritice. A temática do negro já aparece em “Enquanto isso em Dom Casmurro”, depois no “O olho da cor”, a tua peça de teatro, e de uma forma bastante explícita em “Na cor errada de Shakespeare”, teu último livro. Existe uma literatura de afro-descendentes com características próprias que a diferenciam de outras literaturas, ou a literatura de afro-descendentes é apenas uma literatura escrita por afro-descendentes?

Existe, e uma das características que determina este tipo de literatura é a diáspora através da escravidão. Claro que esta não é exclusiva dos afro-descendentes, mas historicamente o afro-descendente veio para as Américas por este processo diaspórico: o exílio pela escravidão. E isto determinou, por exemplo, todo o resto da literatura produzida, sempre em contato com o branco, ou com o Ocidente. Então esta é a característica que mais determina a produção literária destes afro-descendentes. Porque ou é para dizer “nós precisamos nos unir, precisamos assimilar”, ou é de resistir, de dizer “vou quebrar as correntes ou vou esperar, assimilar, ver o que consigo pegar desse ocidental e depois ver o que eu posso fazer”. Então esta é uma característica especial, pois é justamente a escravidão e o processo colonizador, o encontro do europeu com o africano na África, que vai determinar o que se vai desenvolver esteticamente, o que estes agentes estéticos ou artísticos da afro-descendência vão fazer com a sua produção. Este ponto eu acho que é algo específico, que outros povos não tiveram. Outros povos talvez não tenham a idéia da escravidão como uma instituição que privilegiou negativamente um determinado tipo de pessoa. Porque o africano só vai se tornar negro, e aí discriminado, quando chega na América. Antes ele era africano, não existia o negro. Ele passa a ser negro a partir do momento em que ele está aqui. E isso determina toda uma produção estética, cultural, que é de resistência, mas que é também de produção em inúmeras formas. Eu acho que isto é específico. Não é único, mas a maneira como o africano que veio para cá reagiu, ou se relacionou com o processo de escravidão, é que vai tornar esta produção algo específico.

O que significa dizer que “Blumenau é uma cidade de alma negra”, expressão que aparece em “Enquanto isso em Dom Casmurro”?

Bom, aí era uma maneira de criar uma espécie de imagem de Blumenau. Na história da Urda uma das primeiras pessoas que ajuda a família Sonne a se locomover é justamente um carregador de malas negro do porto de Itajaí (Referência ao romance Verde Vale). No caso de Blumenau também. Quando o Doutor Blumenau chegou, já havia negros aqui. Então eu acho que Blumenau já teve isso. E eu ainda coloquei algumas imagens, como, por exemplo, a negra Bertília, que é recorrente na minha obra. Existiu ainda um vereador negro, que era uma espécie de príncipe negro, que queria criar uma espécie de festival da negritude no Vale, mas que não deu certo. Então, quando digo que Blumenau já teve alma negra, é porque ela já teve sim. E é preciso recuperar isto. A minha literatura tem esta intenção de mostrar esta alma negra, que está mais na minha literatura do que em outros locais. Mas se a gente der uma olhada pelos morros, pelos jogos de futebol, pelas rodas de samba e pelos grupos de capoeira, a gente vai ver que esta alma negra está por aí. E a gente precisa revelá-la na literatura também.

Algum novo projeto literário?

Eu estou numa fase complicada. Complicada no sentido em que estou complicando a minha literatura. Mas também não é uma complicação estética, é de veículo. Como eu gosto de línguas estrangeiras, e eu nunca sei se o mais importante é a literatura ou a língua, e como estou envolvido com o inglês, o francês e o espanhol, então estou escrevendo praticamente quatro ficções nas quatro línguas: em português, em inglês, em francês e em espanhol. Os textos tratam praticamente da mesma coisa, só que com aspectos diferentes. E também são textos mais autobiográficos. O nome do texto que estou escrevendo em português é “José Endoença Martins contra José Endoença Martins”, porque é uma autoficção. Autoficção é, segundo os teóricos, quando você é o autor, o narrador e o personagem do próprio texto. Isto é o cúmulo do narcisismo. Mas segundo o Roland Barthes, é tudo o que nós temos. A gente não tem outra coisa para falar da gente senão a gente mesmo. Alguns evitam, alguns mascaram isso com uma autobiografia que não parece autobiografia, mas no fundo nós estamos voltados para as preocupações mais prementes da nossa vida. E os outros textos também têm esta preocupação com a autobiografia, mas caminham mais pela ficção. Os personagens continuam sendo Bertília e Bento, e suas variações, mas os aspectos vitais continuam voltados para a minha autobiografia. Inclusive, no texto em espanhol, eu tento pegar a Capitu e devolver ao Dom Casmurro através do filho. O filho vai para o exílio com a mãe e depois volta para o Brasil. E um dos problemas do filho é sua relação com o pai, já que o Bentinho queria matá-lo, pois achava que ele era filho do Escobar. A minha intenção é deixar os quatro textos juntos e depois deixar o leitor se virar.

Uma última pergunta: a poesia é inútil?

Acho que eu não digo isso assim, literalmente. Eu me lembro que eu digo que a poesia é uma grande caminhada que quase sempre dá em nada. Mas não, a poesia não é inútil. A poesia é necessária. Mesmo quando você diz que ela é inútil, e diz em forma de poesia, você está provando que ela é necessária. Eu digo como é fácil ser poeta hoje em dia, como é fóssil ser poeta hoje em dia. Mas dito em forma de verso, com uma preocupação poética, esta é mais uma evidência que a poesia não é inútil e não está fora de propósito. Ela vai sempre continuar porque é um interesse humano, é uma forma de expressão que a humanidade sempre vai usar para manifestar os seus conhecimentos, as suas emoções, a sua alma, e é por isso que eu acho que por mais que a gente afirme que a poesia é inútil, e afirme isto em verso, ao fazermos isto nós afirmamos que ela é importante, que continua imperativa, que continua necessária, e que a sua inutilidade é apenas um aspecto estético. Eu continuo lendo poesia e analisando poesia.

 
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