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Rita Baiana – a malandra no Cortiço de Aluísio de Azevedo Imprimir E-mail

Neste artigo a professora e pós-graduanda em Estudos Literários Luzia Antonelli Pivetta analisa a presença da música popular brasileira e da figura da malandra no romance naturalista “O Cortiço”, escrito em 1890 por Aluísio Azevedo.

Rita Baiana – a malandra no Cortiço de Aluísio de Azevedo

Luzia Antonelli Pivetta
Pós-graduanda em Estudos Literários / FURB

Introdução

A música é um gênero universal, e por ser assim, é capaz de aproximar povos, pessoas, etc, poiscapa cerca o ser humano de tal forma que o envolve, e ao mesmo tempo em que encanta pode falar de tudo. Da religiosidade, do amor à nacionalidade, da crítica política à exaltação de um país, manifesta-se de diversas formas e encontra ouvintes em todos os lugares.

No Brasil não foi diferente, embora até o século XVIII, o gênero musical predominante fosse a música religiosa, passando logo após, por iniciativa do padre José Maurício Nunes Garcia, à música erudita, que embalara poetas daquela época e que viria contribuir mais tarde nas criações geniais de músicos brasileiros, como Heitor Villa Lobos, caracterizando assim a música brasileira como nacionalista.

Neste meio tempo em que a burguesia tentava estabelecer essa música nacionalista, as classes mais populares do país produziam música à sua maneira. A partir de então foram surgindo ritmos como o baião, um ritmo influenciado pela música européia, com traços africanos, no norte e nordeste do Brasil, e à medida que estes se misturavam e eram incorporados à cultura brasileira, iam ocorrendo muitas junções, como foi o caso da aglutinação da modinha com o lundu. Foram dessas junções que nasceu o samba, ritmo tão popular entre os brasileiros.

Segundo Felipe da Costa Trotta (2007: 03), o samba desenvolveu seus referenciais simbólicos a partir da idéia de sociabilidade comunitária, realizada em eventos entre amigos, usualmente em fundos de quintal ou terreiros.

Este ritmo criado por comunidades de baixo poder aquisitivo, formadas principalmente por negros e mulatos, no início do século XX, numa situação em que a idéia da escravidão ainda estava muito presente, vai se tornar símbolo da nacionalidade brasileira pois “descerá o morro” e encontrará lugar para si no palco sócio-cultural, adquirindo novos atributos positivos aos olhos das classes mais abastadas e daqueles que detêm o poder político.

Junto com o ritmo diferenciado, que se utiliza de instrumentos de percussão característicos (pandeiro, surdo, cuíca, tamborim) aos quais são acrescentados principalmente violão (de 6 e de 7 cordas) e cavaquinho, figuras típicas irão aparecer como representantes do mundo do samba, inserem-se nessa afirmação a figura do malandro e da malandra, que terão seu espaço também na literatura.

Partindo desta reflexão, pretende-se explorar a figura da malandra por meio da personagem Rita Baiana, no romance brasileiro O Cortiço de Aluísio de Azevedo.

O Malandro e a Malandra do Samba

Para entendermos as diferenças entre o Malandro e a Malandra do samba, caracterizaremos ambos, embora, mais tarde, trabalhar-se-á apenas com a figura da Malandra.

Segundo o sambista Moreira da Silva, malandro não é quem não faz nada, que assim seria muito fácil viver; é quem não pega no pesado. Ou seja, essa figura tão emblemática, que troca o dia pela noite e trabalha apenas para obter o mínimo necessário à própria manutenção e à dos seus, considera-se um artista, pois faz música, e rejeita o trabalho porque tem consciência de que a sociedade capitalista brasileira raramente permite o deslocamento do negro dentro da sua hierarquia econômica e social. Porém, não se exclui do sistema, pois, domina a linguagem, sabe ler, escrever, tem nome e sobrenome, sabe o jogo do corpo e da sedução, veste-se bem, e defende com categoria suas teses, passando a ser admirado e respeitado pelos colegas.

A mulher Malandra não ficará muito distante do homem Malandro, mas apresentará algumas particularidades, ela despreza o papel de esposa, o bem-estar material e parte em busca de liberdade, procurando satisfação para seu desejo. A opção do marido para ela significa martírio do corpo, a anulação do desejo, no entanto, quando cede a tornar-se esposa faz do marido (provavelmente um ex-malandro que caiu em seus encantos) um verdadeiro otário.

Ambos vão disputar espaço na malandragem, sofrem de amor, gostam do bem viver, buscam o domínio da linguagem, trajam-se bem e querem ser felizes.

A partir dessas considerações sobre a figura do Malandro e da Malandra no samba, observaremos como esse gênero musical, dentro de suas diversas variações, pode ser representado por meio da figura da malandra em um romance naturalista da literatura brasileira.

Rita Baiana – a Malandra do Cortiço

Publicado em 1890, O Cortiço é um romance Naturalista de autoria de Aluísio de Azevedo – escritor Maranhense. É a obra mais importante deste movimento no Brasil, em que os personagens principais são os moradores de um cortiço no bairro do Botafogo no Rio de Janeiro.

Várias histórias se entrelaçam na narrativa desse romance, que começa com o ambicioso João Romão construindo um cortiço, com a ajuda de uma escrava chamada Bertoleza e fazendo deste, morada de pessoas humildes como lavadeiras, trabalhadores da pedreira, etc.

A representação da música nesse romance, já aparece logo no início, quando as lavadeiras estão trabalhando em suas tinas, debaixo do sol forte, umas cantando, outras rebolando, como pode ser observado no trecho em que o narrador descreve a rotina das mesmas: “Marciana com seu tipo de mulata velha, um cachimbo ao canto da boca, cantava toadas monótonas do sertão [...] A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem fadigas, assobiava os chorados e lundus que se tocavam na estalagem” (p.48)

Dentre as pessoas que moram nos cubículos alugados por João Romão encontra–se a personagem Rita Baiana, uma mulata, tipicamente brasileira que segundo o personagem Jerônimo (português que viera morar no cortiço também para trabalhar na pedreira e que mais tarde irá se apaixonar por Rita): “era a luz ardente do meio-dia; era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que não se torce a nenhuma outra planta; era o veneno e o açúcar gostoso.” (p.78).

A personagem Rita Baiana vai se encaixar perfeitamente no perfil da Malandra do samba, mencionado anteriormente, pois, conforme comentavam suas vizinhas, ela era o tipo de pessoa que gostava da boa vida, que largava tudo por uma festa: “– Aquela não endireita mais!... cada vez fica até mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode vai tudo pro lado! Olha que saiu o ano passado com a festa da Penha!” (p.44).

No entanto, não era uma criatura má, afinal era bem quista por todos os moradores do Cortiço, embora fosse criticada por alguns que não compreendiam sua escolha de vida, mas que no fundo tinham mesmo era inveja e muita vontade de viver como ela: “– Ainda assim não é má criatura... Tirante o defeito da vadiagem... [...] – Bom coração tem ela, até demais, que não guarda um vintém pro dia de amanhã. Parece que o dinheiro lhe faz comichão no corpo”. ( p.45).

Rita Baiana tinha se ausentado do cortiço já fazia alguns dias, o que intrigava as colegas de trabalho, pois deixara até de entregar as roupas que deveria ter lavado nesse meio tempo, mas quando retorna, a cena de sua chegada no cortiço já nos faz compreender o porquê dela pode ser considerada uma malandra do samba:

“Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novidades dela. Não vinha em traje de domingo; trazia um casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas.” (p.61)

Fora cercada pelos vizinhos, todos a saudando, e ela, bem arrumada, perfumada, espalhando sensualidade, desdobrava-se para dar atenção aos amigos que a algum tempo não via. Essa característica de estar sempre bem vestida, asseada e é claro muito perfumada, demonstra o quanto Rita possui conhecimento com relação ao jogo da sedução que mais tarde ficará evidente em outra cena, em que a roda de samba já estará armada no Cortiço, na qual o narrador a descreverá da seguinte forma: “[...] ninguém como a Rita, só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante”. (p.77)

O discurso da Malandra, também está presente em seu modo de pensar, quando se refere ao casamento: “– Casar? Protestou a Rita. Nessa não cai filha de meu pai! Casar? livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! [...] não há como viver cada um senhor e dono do que é seu!” (p.62)

Possuía a admiração das colegas: “Esta também achava infinita graça na Rita Baiana e seria capaz de levar um dia inteiro a vê-la dançar o chorado.” (p.62) e não decepcionava quando o negócio era organizar uma festa: “Ninguém como o diabo da mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa.” (p.64)

É ela quem elege seus homens, que é claro também vão fazer parte desse meio em que a música está presente, como é o caso de Firmo, seu atual amante e companheiro de noitadas, o qual fora convidado por Rita para movimentar o cortiço: “E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três, horas em que chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o violão e o outro o cavaquinho. (p.66) [...] E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão.” (p.67)

A partir desse momento iniciará a festa no Cortiço, que virará a madrugada, e na qual Rita Baiana se destacará entre as outras mulheres: “O cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais do que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente se despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas.” (p.76)

Essa presença da música brasileira, mais especificamente do samba, no romance O Cortiço, fica evidente a cada descrição que o narrador faz a respeito dos gestos, das variações do ritmo, dos instrumentos utilizados: “Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas” (p.76), que vão construindo uma identidade tipicamente brasileira, com base na música, mas que será retratada também na literatura.

Enquanto isso Rita vai trocar de roupa, afinal, a ocasião requer algo especial e Jerônimo a vê: “e viu Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar (p.77), e se encanta com aquela mulata que saltou no meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante” (p.77).

Mas não é só Rita que vai para o meio da roda, Firmo seu amante a acompanha, enquanto Jerônimo observa tudo de longe: “E arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço batendo os calcanhares” (p.77). E a Malandra utilizando-se de seu jogo da sedução, desperta paixões, embora outras raparigas dançassem, Jerônimo só via a mulata por quem já estava enamorado.

O tempo foi passando e Jerônimo abrasileirando-se: “em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o último a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dançar a mulata, abstrato, pateta, esquecido de tudo, babão” (p.95). Enquanto Rita, como boa malandra, provocava-o sempre que podia: “E ela, consciente do feitiço que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou fingindo, que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia” (p.95).

Na festa realizada na casa de Miranda, Rita mais uma vez dança e canta divinamente, enquanto Firmo toca seu violão:

“A Rita Baiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada! Divina! Nunca dançara com tamanha lubricidade! Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbado de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto.” (p.118)

Porém Jerônimo não se contém e começa a “dar em cima” de Rita, provocando a ira de Firmo. A Malandra vai provocar o embate, a disputa dos dois pretendentes por ela: “estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa distância, via, de braços cruzados, aqueles dois homens se debaterem por causa dela; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios” (p.120). Que resultará no esfaqueamento de Jerônimo e mais tarde no assassinato de Firmo por ele. O que faz com que Rita se entregue a paixão e decida partir com Jerônimo para longe.

Por meio dessas descrições do cotidiano daquela gente que morava no cortiço, dos seus momentos de trabalho e lazer, Aluísio de Azevedo vai registrar traços culturais que eram comuns na vida dos brasileiros, principalmente daqueles que viviam à margem da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pôde perceber, a música como elemento cultural brasileiro vai estar presente também na literatura, seja representada em sua forma, ou por meio de figuras que lhe são características, como a Malandra do samba, que foi representada por Aluísio de Azevedo, através da personagem Rita Baiana, no romance O Cortiço.

Essa personagem mulata, tipicamente brasileira, que sempre está bem vestida, perfumada, que não dispensa uma festa, mesmo que tenha trabalho, que não se preocupa em guardar dinheiro, afinal, o importante é realizar seus desejos e viver o momento. Que repudia o casamento, porém, vive o amor intensamente e que sabe muito bem utilizar-se do jogo da sedução para atrair seus parceiros e chega até ser disputada por eles, a Malandra do samba, que dança e que canta como ninguém está incorporada em Rita Baiana.

Além disso, pode-se dizer que o próprio Samba, tocado nos eventos realizados no cortiço, fora representado em diversos trechos da obra, em que o narrador faz questão de mencionar algumas de suas variações como o chorado baiano, o lundu, que eram acompanhadas por palmas, gerando aquela idéia de roda de samba em que amigos se divertiam até raiar o dia.

Sendo assim, fica evidente essa representatividade da música, no caso o samba, como elemento cultural brasileiro na literatura brasileira, embora o tema principal desse romance de Aluísio de Azevedo não seja a música, é possível distinguir elementos que fazem ou fizeram parte de sua história, por meio do ambiente, das atitudes dos personagens, da forma como vivem, como trabalham e como fazem suas festas, o que vai retratar os usos e costumes de uma época, principalmente por se tratar de um romance naturalista brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Martin Claret, 2001.
MATOS, Claudia Neiva. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
PORTELA, Girlene Lima. Da Tropicália à Marginália. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1999.
TROTTA, Felipe da Costa. Música Popular e Qualidade Estética: estratégias de valoração na prática do samba. Pernambuco: Universidade Federal de Pernambuco, 2007. Trabalho apresentado no III ENECULT (UFBA - Salvador – Bahia).

 
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