Venenos de Deus, Remédios do Diabo |
Neste ensaio o escritor e editor do Sarau Eletrônico, Viegas Fernandes da Costa, analisa o romance “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, publicado em 2008 pelo escritor moçambicano Mia Couto, expoente da literatura em língua portuguesa no continente africano.
“Venenos de Deus, remédios do Diabo”: Viegas Fernandes da Costa O escritor moçambicano Mia Couto galgou a condição de autor reconhecido pela inventividade e bricolagem vocabular dos seus textos. Das páginas dos seus livros brotam palavras e expressões que mesclam o português de Portugal com o português moçambicano e com as línguas nativas do seu país, bem como neologismos próprios da literatura oral. Este aspecto, recorrente em sua obra, somado aos usos do folclore, dos mitos e das lendas moçambicanos, permite situar a proposta literária de Mia Couto nas proximidades das propostas empreendidas por Guimarães Rosa e Mário de Andrade (o Mário de Macunaíma). Sob o aspecto ideológico, sua obra quer pensar e problematizar a construção da identidade nacional no Moçambique – país recentemente saído da guerra civil e, tal qual a maior parte dos antigos territórios coloniais em continente africano, culturalmente multifacetado – , inserindo-se naquilo que Kwame Anthony Appiah (“Na casa de meu pai”, 1997) chama de segunda fase da literatura pós-colonial: textos que deslegitimizam o projeto nacionalista da burguesia nacional pós-colonial. Em seu romance “Venenos de Deus, remédios do Diabo” (2008), Mia Couto dá continuidade a este seu projeto literário, onde a relativização das verdades (e das mentiras) engendra a trama deste livro que conta a história de Bartolomeu Sozinho (ex-mecânico naval da Companhia de Navegação Colonial), sua esposa Dona Munda, o médico Sidónio Rosa e a mulher que este ama e busca reencontrar em Vila Cacimba, cenário da história, Deolinda. O primeiro aspecto que chama nossa atenção em “Venenos de Deus, remédios do Diabo” é seu aspecto fantástico. Ao chegar em Vila Cacimba, o médico Sidónio Rosa se vê na obrigação de tratar os habitantes do lugarejo de uma estranha epidemia (supostamente de meningite) que os transforma, segundo o narrador, em “tresandarilhos”. A despeito da epidemia, Sidónio dedica especial atenção a Bartolomeu Sozinho, que vive enclausurado em seu quarto e padecendo de misteriosa e mortal debilidade, visitando-o diariamente. Bartolomeu é casado com Munda, mulher que vive a hostilizar e que acredita infiél. Esta, por sua vez, mantém uma relação incerta com seu marido: ao mesmo tempo em que o hostiliza e pede por sua morte, é capaz de dormir à porta de seu quarto para estar atenta se for solicitada. A atenção especial do médico ao casal justifica-se em seu interesse por Deolinda, mulher que conhecera em Portugal e pela qual se apaixonara, supostamente filha de Bartolomeu e Munda, e ausente de Vila Cacimba para realizar cursos de aperfeiçoamento. Seu destino e a data de retorno são ignorados, porém comunica-se com Sidónio através de cartas que lhe chegam às mãos por intermédio de Munda, que por sua vez as recebe de “familiares”, pois “aqui em África, todos são familiares” (p. 47) – argumenta a personagem em arroubo pan-africano. Nestas cartas, Deolinda pede a Sidónio que vele por seus pais, e que lhes dê alguns presentes a fim de lhes atenuar as dores e propiciar um pouco de conforto, como um televisor para a mãe, por exemplo. O leitor tem aqui a impressão do caráter de escambo apresentado pelo conteúdo dos pedidos das cartas; escambo tão próprio dos tempos coloniais. Na relação do nativo com o europeu, estabelece-se um interesse mercantil onde ambos procuram obter vantagens da condição que ocupam: o europeu, que detém o capital, crê que pode comprar a confiança e o respeito do casal de nativos através dos presentes e da atenção que dispensa; os nativos se aproveitam de uma suposta situação de vitimização para alcançarem aos artefatos da modernidade que desejam possuir. Este caráter mercantil das relações interétnicas é elemento recorrente na obra de Mia Couto e aparece, também e com muita força, em “O Outro Pé da Sereia” (2006), quando o personagem Benjamin Southman - um historiador estadunidense e afrodescendente que visita Vila Longe para se reencontrar com suas raízes identitárias e investir verbas na terra dos seus antepassados – é ludibriado pelos moradores do vilarejo, que lhe falsificam uma tradição e um modo de viver, há muito desaparecidos (se é que alguma vez houvessem existido), a fim de que o afortunado historiador possa encontrar o que deseja e crê verdadeiro. É o desejo de se apoderarem do dinheiro do estrangeiro que leva os moradores de Vila Longe, em “O Outro Pé da Sereia”, a inventarem um mundo que o historiador supunha existir; é o desejo de usarem dos recursos e da atenção de Sidónio que leva Bartolomeu e Munda, em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, a falsearem as cartas de Deolinda. Sob esta lógica, justifica-se a irritação externada pelo médico quando reflete: “Os que a mim se dirigem não me querem como pessoa. Uns chegam-se para vender, outros para roubar. Ninguém me aborda sem interesse, meu Deus, como me custa ter raça!” (p. 75). Cabe, entretanto, ressaltar a veracidade da recíproca, porque também ele, Sidónio, tem seus interesses; também ele não é quem aparenta ser. E o que parece ser mentira, é tão somente outra verdade; daí um certo caráter fantástico inerente a este romance: nunca sabemos qual o relato que nos dá a verdade dos fatos, nunca sabemos quem falseia e quem revela, afinal, nada há além do discurso, da literatura, responsável até mesmo pela construção da própria identidade, da raça. Neste sentido o trecho abaixo, excerto de uma conversa entre Bartolomeu e Sidónio, tem muito a nos dizer: “ – A propósito da língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já estou a desmulatar. Se nas páginas finais Deolinda afirma ao médico que “esta terra mente para viver” (p. 181), podemos entender que ao falar de sua Vila Cacimba (extensão do Moçambique?), Deolinda diz também de toda terra, dos territórios que, através do discurso, permanentemente inventamos, sejam estes territórios geográficos ou identitários, e é nesta invenção que existimos e habitamos. Talvez por isso, também, não há maniqueísmo em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”. O próprio título já indica este relativismo ao atribuir a cura ao Diabo e o mal a Deus. Há, isto sim, posições, e por isso a relativização, seja do bem e do mal, seja do nacional e do estrangeiro ou do branco e do negro, porque ser branco, segundo Bartolomeu no excerto que apresentamos acima, é uma questão de “língua”. Daí a complexidade psicológica e identitária dos personagens deste romance. Bartolomeu Sozinho, apesar de negro e nativo, ocupa uma posição arielista, segundo conceito de José Endoença Martins (2007); ou seja, reconhece no branco, no europeu, qualidades e superioridades que inveja e deseja para si. Tanto que, cansado da vida, pede ao médico que lhe mate sob o argumento de que “ele tinha que valorizar a única riqueza que lhe restava: a sua morte. – Tenho que ser morto por um branco!” (p. 54). Bartolomeu orgulha-se de um passado que julga glorioso, a serviço da Companhia de Navegação Colonial, como único tripulante negro do navio Infante D. Henrique, apesar de atravessar os mares no fundo de um porão escuro. E com o fim do regime colonial, “o navio encalhou, virou sucata e estava, um pouco como ele mesmo, à espera de ser abatido” (p. 14). A multietnicidade pode ser observada também se atentarmos para a miscigenação dos personagens. Bartolomeu é negro, mas afrontou sua família ao se unir a Munda, uma mulata de ascendência alemã. Ambos geraram Deolinda que, ao visitar Portugal, apaixonou-se por um português. Miscigenações que são vistas com muita resistência. Os alemães, por exemplo, são alvo de preconceito, e os restos mortais dos seus antepassados repousam em um cemitério evitado pelos nativos; assim como Bartolomeu teve de enfrentar a resistência da família, que considerava sua união com uma mulata como um pioramento genético. Ao protagonismo de Bartolomeu, opõe-se o personagem Suacelência, administrador de Vila Cacimba e seu principal rival. Suacelência é, também, personagem de complexidades. Pelos juízos de Bartolomeu, somos levados a crer no caráter corrompido, vil e chauvinista do administrador; mas no final do livro somos surpreendidos ao sabermos Suacelência demitida do seu posto justamente por se opôr à derrubada ilegal de madeira na região. E se a rivalidade entre ambos existe e é recíproca, esta se dá principalmente pela posição social que cada um ocupa: um como administrador nacional, outro como saudosista da administração colonial. Segundo o administrador, “esses colonos precisavam de um preto decorativo! Não era por méritos próprios que o mecânico negro seguia no navio. Ele era tripulante apenas como instrumento de uma mentira: de que não havia racismo no império lusitano” (p. 26). Tão logo destituído de seu cargo oficial, Suacelência aponta seu caráter humano, sensível até, ao revelar o uso de seus últimos dinheiros para ofertar a Bartolomeu um enterro de pompa e condizente com suas vontades finais. Quero ainda apontar um último aspecto deste romance de Mia Couto que me chama a atenção: a problematização do conflito entre a tradição e a modernidade no contexto pós-colonial, fato não menos recorrente em sua literatura. A própria presença de um personagem médico torna-se emblemática, haja visto este se opor ao curandeiro, personagem a quem recorre Deolinda para se tratar do mal que a acometia. Interessante observar que o curandeiro está situado no Zimbabwe, ou seja, fora das fronteiras do Moçambique. Também Bartolomeu externa o desconforto entre o antigo e o novo, a tradição e a modernidade, quando diz que a televisão o poupa dos sonhos, sonhando por si. A percepção que temos é a da existência de um certo desconforto, como aquela expressão no rosto de um indígena brasileiro quando lhe vestiram um chapéu na cabeça. A poeira das estradas contradiz com a tecnologia capaz de produzir a camioneta que liga Vila Cacimba ao resto do país; assim como uma epidemia de meningite (cuja proliferação se dá a partir de lugares fechados) não condiz com os horizontes da savana africana. A fim de concluirmos, resta-nos a percepção de que em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, Mia Couto engaja-se com este Moçambique contemporâneo, não se furtando à problematização dos paradoxos do seu desenvolvimento e da sua ocidentalização. A AIDS, o incesto, a crise familiar e o aborto – temas que o autor trabalha neste seu romance – são as facetas deste desenvolvimento feito aos atropelos e sem qualquer planejamento, deste flerte entre a África e o Hemisfério Norte, entre a tradição e a modernidade, destas múltiplas identidades, invenções literárias, ainda prementes de diálogo. Referências Bibliográficas. - Appiah, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. |
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