Neste ensaio, a professora Cristiane Roveda Gonçalves discute as relações entre literatura e cinema a partir do curta-metragem “Por Causa do Papai Noel”, dirigido por Mara Salla. O filme é uma livre adaptação da obra da escritora catarinense Urda Alice Klueger.
“Por causa do Papai Noel”: aproximação entre literatura e cinema Cristiane Roveda Gonçalves Pós-graduanda em Literatura Introdução Quando um texto literário é adaptado, ou ainda transposto para o cinema, é comum ouvirmos ou lermos análises que tratam da fidelidade ou da infidelidade do filme em relação à obra em que se baseia. Os leitores vão ao cinema com certas expectativas em relação ao filme que, por ser outra linguagem, não necessariamente fica preso e dependente da obra. Estas expectativas são naturais, considerando que a obra literária escrita possui aspectos inerentes a sua linguagem e, talvez, não possam ser atendidas pelo cinema. No entanto o cinema pode expressar, através de seus recursos específicos, nuances e aspectos que a palavra escrita não consegue exprimir. O trabalho que aqui se apresenta procura não estabelecer juízo de valor entre a crônica de Urda Alice Klueger “Por causa do Papai Noel” e o curta-metragem de mesmo nome produzido e dirigido pela cineasta Mara Salla. A proposta aqui abordada é encontrar pontos de aproximação entre o texto literário e o filme, percebendo através do conceito de transposição as possibilidades de se transpor uma obra literária para a linguagem cinematográfica. Ler um livro e assistir a um filme são experiências distintas. A literatura possui recursos próprios que conduzem o leitor pela trama, o tempo está em favor do leitor. Para Linda Singer a linguagem em si nos dá tanto prazer quanto a própria história1. Há então uma cultura de adaptações que procuram ser fidedignas à obra literária, o que pode ser problemático; muitos filmes adaptados tornam-se medíocres por tentar, por exemplo, repetir diálogos que funcionam apenas nas palavras escritas de um livro. Considerando que o cinema é uma invenção recente, final do século XIX e início do século XX, e que a literatura acompanha a humanidade através dos séculos, podemos dizer que o cinema se apropriou de características da literatura e da arte dramática; além de criar suas próprias características. Literatura comparada: literatura e cinema Uma das preocupações deste trabalho é apresentar aspectos que justifiquem a aproximação entre literatura e cinema, sem mensurar valor entre um e outro. Neste sentido vale lembrar que um dos principais pontos de aproximação entre as duas artes é a estrutura narrativa, em ambos os casos há de se encontrar uma trama central, descrição de personagens, desenvolvimento dos acontecimentos para desenrolá-lo. O tema utilizado é então muito importante, bons filmes possuem temas fortes, tais temas servem à história que está sendo narrada. Não obstante devemos considerar que o cinema possui expressão própria, do contrário seria um teatro filmado, sem vida. Vale então ressaltar características específicas do cinema como a montagem, a fotografia, o som, a cenografia, o ponto de vista narrativa, responsável pela construção de significados no sistema semiótico compreendido pelo cinema. Além disso, há outra limitação que impede que o filme seja fiel à obra literária: enquanto um filme tem duração aproximada de duas horas, um livro pode ser lido no tempo do leitor. Tendo em vista estas diferenças entre literatura e cinema, qualquer comparação de valor é no mínino ineficaz. A fidelidade que se espera do cineasta ao adaptar uma obra literária deve estar presente no tema, no tom que se dará ao filme. Para Bazin quanto mais qualidades literárias da obra são importantes e decisivas, mais a adaptação perturba seu equilíbrio, mais também ela exige um talento criador para reconstruir de acordo com um novo equilíbrio, de modo algum idêntico, mas equivalente ao antigo2. O cineasta que adapta um texto literário tem assim liberdade para criar segundo sua criatividade artística. Vale lembrar, neste pequeno apanhado, que o filme se constrói por imagens em movimento e que possui várias dimensões, enquanto a narrativa escrita utiliza a linearidade da escrita para estruturar sua trama. A construção do tempo no texto literário pode ser transposta para o filme em uma pequena introdução; no cinema, o tempo é sempre presentificado, a ação acontece no momento em que assistimos ao filme. A comparação entre cinema e literatura se dá em outros níveis como, por exemplo, o estudo da narratologia, as questões relacionadas ao tempo e ao especo na narrativa fílmica, a intertextualidade, as formas de adaptação, o foco narrativo e o olho da câmera, entre outros aspectos. Neste texto buscou-se comparar a obra literária e a produção cinematográfica a partir de aspectos gerais. “Por causa do Papai Noel": pontos de aproximação Escrita e publicada no final de 1997, a crônica de Urda Alice Klueger, “Por Causa do papai Noel” narra o natal de 1963, em que a autora é apresentada ao mundo da literatura através de um acidente que a impossibilita de brincar com as outras crianças. Assim, a pequena Urda deixa de participar das comemorações daquele natal, no entanto se encanta com a literatura, em especial a literatura da França. Após ler a crônica e, a partir dela, entrar em contato com as obras da escritoras, como No Tempo das Tangerinas e Verde Vale, a recente cineasta Mara Salla procura então fazer uma adaptação da pequena crônica de natal e transpô-la para um curta-metragem. Assim, inicia-se a história de adaptação de “Por causa do Papai Noel”. Num primeiro momento a própria fala da cineasta e roteirista foi de indicar que seu filme é uma adaptação, no entanto pode-se dizer que o que houve foi uma adaptação livre que está longe de ser fiel, mas que não perdeu o tema central da crônica. O curta-metragem usa a narrativa de Urda para apresentar o universo infantil em que a literatura foi apresentada a uma criança. Na crônica encontramos a voz da própria autora narrando um fato de sua infância, já no filme temos o presente da criança que, ao ler seus livros, encontra-se com os personagens da ficção, sendo que em um determinado momento a criança se vê diante da personagem que só irá criar em seu romance anos mais tarde. A produção cinematográfica utiliza o realismo fantástico para contar como a autora entrou em contato com o mundo da literatura e ao mesmo tempo se distancia do texto original e cria sua própria reflexão sobre o tema. O texto de origem é simples e não apresenta grandes reflexões ou aspectos de intertextualidades, no entanto o filme utiliza do intertexto quando apresenta personagens da obra de Érico Veríssimo, como Clarissa, por exemplo. O filme vai além do texto literário, cria sobre ele, utiliza-o como possibilidade de narrar uma história sobre um tema que, num primeiro momento, sugere-se simples. Para Bazin adaptar não é trair, mas sim respeitar3, circunstância que se percebe na produção de Mara Salla. O texto base foi utilizado como referencial, sendo ainda utilizada também a obra da autora Urda para aprimorar a narrativa cinematográfica. A relação entre as artes não se dá em uma via de mão única, dá-se por várias formas, caso claro presente na produção do curta-metragem que utiliza uma pequena crônica para contar uma história. O cinema pode dar uma dimensão de maior alcance a uma obra dita menor, “a crônica”. Considerações finais Os recentes estudos em literatura comparada, relacionando a produção cinematográfica e a literatura, são o exemplo mais claro de que a literatura é uma das bases de formação e construção do cinema. Vale ressaltar que há aspectos que o cinema ainda não consegue ser mais envolvente que um bom texto literário, exemplo disto é a imaginação do leitor que pode colaborar com a do escritor. Outro ponto fundamental é o tempo, pois a leitura é individual e corre ao tempo do leitor. Para o professor Marcos Silva “evocar as relações entre cinema e literatura é festejar apoios e apropriações que ambos se fazem reciprocamente, com a condição de continuarem a existir em suas especificidades”, cabe aqui, então, reiterar que as duas artes se complementam e, assim, agregam valor uma a outra. Ao mesmo tempo em que há bons livros, há também boas adaptações destes livros. Caso que pode acontecer também de forma contrária, ou ainda livros que são considerados ruins podem ser adaptados de forma brilhante e superar a obra literária. Referências Bibliográficas BAZIN, André. Por um cinema impuro. In: O Cinema, ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BRITO, José Domingos de. Literatura e Cinema. São Paulo: Novera, 2008. KLUEGER, Urda Alice. Crônicas de Natal e Histórias da minha avó. Blumenau: Hemisfério Sul, 2001. SINGER, Linda. A Arte da adaptação: como transformar fatos e ficção em filme. São Paulo: Bossa Nova, 2007. ZOLIN, Lúcia Osana e BONNICI, Thomas. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá, 2003.
1 SINGER, Linda. A Arte da adaptação: como transformar fatos e ficção em filme. São Paulo: Bossa Nova, 2007, p.32. 2 BAZIN, André. Por um cinema impuro. In: O Cinema, ensaios. São Paulo: Brasiliense. 1991, p.96. 3 BAZIN, André. Por um cinema impuro. In: O Cinema, ensaios. São Paulo: Brasiliense. 1991, p.98. |