“A Metamorfose” de Kafka sob a ótica da crítica sociológica |
Neste ensaio a jornalista e pós-graduanda em Estudos Literários, Magali Moser, analisa o conto “A Metamorfose”, de Franz Kafka, sob a ótica da crítica sociológica. Crítica sociológica a partir do livro A Metamorfose, de Franz Kafka Magali Moser
A literatura não é um fenômeno independente, nem a obra literária é criada apenas a partir da vontade e da “inspiração” do artista. Ela é criada dentro de um contexto; numa determinada língua, dentro de um determinado país e numa determinada época, onde se pensa de uma certa maneira; portanto, ela carrega em si as marcas desse contexto. Estudando essas marcas dentro da literatura, podemos perceber como a sociedade na qual o texto foi produzido se estrutura, quais eram os seus valores. O drama do personagem Samsa se assemelha à vida de um trabalhador comum que exerce atividades burocráticas. Ao relatar as experiências do inseto que se esperneia tentando voltar à posição natural, ele mostra as tentativas de se rebelar contra as imposições da sociedade. O caixeiro-viajante só consegue romper com o automatismo, a dominação e a alienação das atividades diárias e da rotina, na condição de inseto. Com ironia, Franz Kafka provoca o leitor para o questionamento. O autor mescla a sátira com a tragédia ao longo da narrativa. Sem cerimônias, o leitor já se dá conta do teor da obra na primeira frase do livro: "Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto". Não tanto quanto em outras obras da literatura, como o romance Senhora, de José de Alencar, por exemplo, (usado inclusive como referência no livro Literatura e Sociedade, de Antônio Candido para ilustrar a crítica sociológica), quando o autor faz referências explícitas a dimensões sociais ao citar lugares, modas, usos, manifestações de um grupo ou classe. A dimensão social que o autor dá para o livro se resume ao quarto do protagonista, onde se desencadeia praticamente toda a história. Mas nem por isso a narrativa deixa de associar a literatura como um fenômeno intrinsecamente ligado à vida social. A influência social na obra vai além dos lugares mencionados no livro. O apelo está muito mais para o contexto psicológico do personagem. A obra foi escrita em 1912, dois anos antes do início da Primeira Guerra Mundial. O clima de agonia e pessimismo mantido por Kafka é apontado por alguns autores como relação direta com o cenário mundial da época em que a obra foi escrita. Apesar de ter sido escrita no início do século XVII, a obra permanece atual porque explora temas característicos da sociedade contemporânea, como a crise existencial, a desesperança do ser, pessimismo, a ausência de resposta, a solidão, impotência e a fuga – temas recorrentes da literatura de Franz Kafka. A arte tanto é influenciada pela sociedade quanto a influencia. A influência da sociedade na obra aparece tanto na superfície do texto (descrição de casas, roupas, hábitos, etc) quanto na caracterização das personagens (sua psicologia, seus preconceitos, ambições). A influência da obra na sociedade acontece porque os indivíduos que lêem o texto recebem dele certa influência que pode traduzir-se na prática, mudando de alguma maneira o comportamento dos leitores. A maneira como a história se desenrola proporciona uma imersão de quem a lê. O atraso para o trabalho leva o chefe de Samsa a ir até a casa do funcionário. A demora obriga a família e o chefe a abrir a porta do quarto, quando se deparam com uma barata gigante. Um outro aspecto a ser considerado é que apesar de em nenhum momento da obra o autor fazer referência ao nome do inseto ao qual Samsa foi transformado, o leitor subentende que se trata de uma barata. A descrição pormenorizada garante condições para essa interpretação. O fato de não haver uma menção explícita à barata também reforça as sutilezas usadas pelo autor para abordar o assunto. Assim como Machado de Assis deixa dúvidas em relação a possível traição de Capitu e Bentinho no livro Dom Casmurro – característica que faz muitos críticos considerarem o aspecto como grande mérito do escritor. Após a leitura de A Metamorfose, o leitor pode ficar com uma incômoda sensação ao refletir sobre as contradições que envolvem as relações humanas. Quando a família descobre a transformação vivenciada por Samsa, ele passa a ser desprezível e deve ser eliminado. Mesmo quando a irmã mais nova começa a se aproximar dele com o objetivo de alimentá-lo, não esconde as esperanças de que voltasse à forma humana. O problema e desconforto gerado pelo protagonista para a família se resolvem quando a barata morre. A partir de uma abordagem sociológica, a sensação de alívio da família com a morte de Samsa faz questionar sobre como os interesses pautam a convivência. Como o peso carregado pelo pai, a mãe e a irmã mais nova, que dependiam do dinheiro de Samsa para o próprio sustento, só acaba com o fim do inseto, cria-se a impressão de que ele só era bem quisto quando garantia um retorno prático, quando não estava impossibilitado de trabalhar e repassava a própria remuneração a eles. Na medida em que não pode mais produzir renda, não serve para mais nada. Não é uma mera alusão à sociedade capitalista. Trata-se de uma forma – cruel, mas talvez verdadeira – de retratar a frieza e falta de escrúpulos do ser humano diante de situações de conflito. Quando a família passa a trabalhar e não depender mais dele, os problemas se resolvem. E ela faz questão de se livrar dele, como mostra esse trecho da obra: “... quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao seu lado e rolou diante dele. Era uma maça; a segunda passou voando logo em seguida por cima dele. Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era inútil, pois o pai tinha decidido bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê, ele havia enchido os bolsos de maçãs e, por enquanto, sem mirar direito, as atirava uma a uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam como que eletrizadas pelo chão e batiam umas nas outras. Uma maçã atirada sem força raspou as costas de Gregor, mas escorregou sem causar danos. Uma que logo se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele. Gregor quis continuar se arrastando, como se a dor, surpreendente e inacreditável, pudesse passar com a mudança de lugar; mas ele se sentia como se estivesse pregado no chão e esticou o corpo numa total confusão de todos os sentidos...” As maçãs arremessadas pelo pai ao filho demonstram toda a raiva e descontrole em lidar com o problema. A cena não transparece apenas a dor física de Samsa, ao ser atingido pelas maçãs, mas o sofrimento por não ser mais aceito pela família, sendo rejeitado. Na obra Literatura e Sociedade, o crítico Antônio Candido comenta as possibilidades de analisar uma obra do ponto de vista sociológico. O elemento social se torna um dos muitos que interferem na criação de um livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros" (Candido; 1976; p. 7). Candido é autor da teoria que defende a literatura como elemento social não só porque aborda temas da realidade social, mas porque é capaz de transformá-la. A Metamorfose explora a solidão, os sentimentos de exclusão e as crises do homem contemporâneo. Por abordar com profundidade aspectos sociais, é uma referência da literatura universal. O mundo imaginário e surreal que marca as obras do autor faz surgir o termo kafkiano, característico de todo esse universo desconhecido e único. Em A Metamorfose, o fantástico norteia a história, mas uma leitura atenta pode revelar que a abordagem registrada na obra pode não ser tão imaginária como se pode pensar, em um primeiro momento. A impotência de Samsa perante ações que antes lhe eram rotineiras como sair da cama ou caminhar, faz uma alusão às fraquezas humanas diante de pressões sociais. Denuncia como a sociedade restringe o valor do ser humano ao que produz e às aparências. Referências bibliográficas. BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Ozana. Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. |
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