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“Um Largo, Sete Memórias”, de Adolfo Boos Júnior Imprimir E-mail

capaO publicitário, contista e pós-graduando em Estudos Literários, Rodrigo Oliveira, escreve a respeito do romance “Um Largo, Sete Memórias”, do premiado escritor Adolfo Boos Júnior, um dos principais nomes da literatura produzida em Santa Catarina.

Memórias do Ocaso
Prelúdios do fim do século XIX em Um Largo, Sete Memórias, de Adolfo Boos Júnior.

Rodrigo Oliveira
(Publicitário e pós-graduando em Estudos Literários)

Um Largo, Sete Memórias, de Adolfo Boos Júnior, desfralda um panorama da Desterro na segunda metade do século XIX. Inspirado por documentos históricos, que o autor faz questão de referenciar na bibliografia, a obra é uma construção fictícia que nos apresenta o ocaso de um estilo de vida, o fim de um tempo, com a iminente chegada da abolição da escravatura e suas conseqüências sobre a sociedade da Ilha de Santa Catarina. A mudança de um paradigma social que se estende dos senhores de engenho em suas fazendas até a burguesia citadina, descrito pelas memórias e histórias de sete personagens-narradores. A trama acompanha a compra de uma escrava por um abolicionista, com o intuito de libertá-la. A partir deste fato envolvem-se ainda o escravo amante da negra comprada, seus senhores e capataz, culminando no fim trágico com a derrocada de cada um dos personagens, assim como do próprio modo de vida de uma época que, conturbadamente, chegava ao fim.

No entanto, a caracterização de Um Largo, Sete Memórias como um romance histórico é prematura. O autor lança mão do contexto histórico para dar suporte à narrativa. Usa de pesquisas em fontes não-ficcionais para construir o universo do romance, agregando à obra coesão e verossimilhança, ajustando-a ao tempo histórico e corroborando dados historiográficos. O leitor é, de fato, apresentado à história da escravidão em Santa Catarina vislumbrando as questões da negritude, do comércio e do tráfico negreiro, os percalços com as mudanças da sociedade escravocrata catarinense em fins do século XIX. Ainda assim, os méritos (e o foco narrativo e dramático) do romance estão nas questões pontuais de sete personagens que, mais do que o envolvimento no desfraldar da história, concentram-se nas pequenezas de suas vidas, em seus próprios embates e desventuras. Os personagens estão distantes dos grandes heróis ou vilões dos romances eminentemente históricos, suas ações não se voltam a eventos que marcaram época. Na verdade, suas memórias parecem mais fadadas ao esquecimento. Memórias que, mesmo no próprio romance, não recebem sequer o direito de portar um nome. Restam-lhe apenas números. Primeira memória, segunda memória, como tantas outras memórias anônimas que, sim, fazem parte da história, mas cujo foco se volta para si mesmas, para suas próprias histórias. Mais do que construir um relato histórico, Adolfo Boos Júnior desconstrói a história, entregando-a a sete narradores distintos. E entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional, torna-se frágil uma definição de verdade. As verdades são construídas, e destruídas, pelos próprios narradores e pelo próprio leitor.

O primeiro contato com Um Largo, Sete Memórias causa estranhamento. O texto fragmentado é dividido pela visão — pelas memórias — de sete personagens envolvidos na trama, complementado por mais uma memória, cujo título da obra classifica como “coletiva, inquisitorial, contraditória e, muitas vezes, perturbadora”. Essa fragmentação da narrativa é um retrato da subversão da forma, constante em toda a obra, pelo uso de diversos artifícios literários.

A linha narrativa é fracionada pela alternação das memórias. Os narradores vão se substituindo, dando continuidade, com seus próprios pontos de vista, à história narrada, por vezes sobrepondo essas memórias umas sobre as outras, apresentando diferentes abordagens de eventos subseqüentes ou de um mesmo evento. Essa fragmentação, além de um recurso literário que distancia o texto poético da obra da linguagem prosaica cotidiana, mimetiza a fragmentação tanto do status quo da sociedade escravocrata da época, como a própria fragmentação e inconstância das vidas dos personagens-narradores.

Na busca por uma singularização do texto, a linearidade temporal também é quebrada com freqüência. Prefaciando toda a obra, é apresentada a primeira parte do último capítulo (dividido em dois). O leitor, desde então, descobre que os acontecimentos que se seguirão serão os responsáveis pelos eventos sanguinários e pelo trágico ou triste fim dos personagens. Esta primeira parte, no entanto, não revela o final da trama e é apresentada de forma difusa, criando o clima de suspense necessário para manter a atratividade do texto e o interesse do leitor. Este primeiro capítulo funciona, portanto, como uma grande prolepse de toda a obra, um flashforward parcial. A partir daí, a história é narrada como um grande flashback — ou, mais precisamente, uma seqüência de vários flashbacks, de cada um dos narradores intercalando-se — até encontrar-se novamente no capítulo que encerra a narrativa, nas tragédias já prenunciadas no capítulo um. O andamento dos capítulos também é impulsionado pelo uso constante de prolepses e flashbacks, forçando o leitor a avançar e retroceder constantemente no tempo narrado. Da mesma forma como o livro apresenta, já no início, o que irá se suceder em suas páginas (ainda que de forma incompleta), cada capítulo traz um breve resumo, em geral não mais que uma frase, do que irá se desenrolar nas páginas subseqüentes, também de forma muito generalista e superficial. O capítulo então é uma nova seqüência de flashbacks que desenvolverão a história. Esses pequenos prólogos, que iluminam de forma difusa a história que se principia a contar, apenas prenunciando os fatos, em geral malfadados, dos personagens, mais uma vez retratam o prelúdio do fim. O momento imediatamente anterior ao mergulho da escravocracia, como era conhecida até então, rumo ao fim. Refletindo o momento anterior à efetivação da Lei Áurea e o fim do estilo de vida de uma época. O fim do século XIX. Um fim sangrento e abrupto para escravos e fazendeiros, e lento, mas não menos conturbado, para a burguesia urbana, que padecia sob uma ordem social que não mais se sustentava e um novo tempo que a pressionava, “fazendo as contas de um tempo longo e breve demais, (...) a forma rápida e irreversível como a vida poderia se esvair de repente, uma década não representava nada, simplesmente era uma véspera, só, nada mais do que isso”, nas palavras do Artista Bittencourt, a Segunda Memória. A passagem, constante na página 188 do romance, ilustra as reflexões do citado personagem frente a morte de Terta. A ex-escrava, agora liberta, trabalhava na casa do sapateiro Bittencourt, e parecia sempre prenunciar acontecimentos e os pensamentos do patrão. A morte da ex-escrava era um presságio da morte da própria escravatura. E o que resta a um abolicionista quando não restam mais escravos? A noite caía tanto para escravocratas como para abolicionistas, e o que se punha no horizonte era a própria essência e a existência do século XIX.

A própria figura do autor, além do uso dos personagens-narradores, parece buscar a subversão da forma. Além do conteúdo da obra e da forma como a trama é apresentada com os artifícios citados, a própria escrita, atenta contra a norma literária tradicional. Os parágrafos subvertem a pontuação e a disposição dos diálogos, numa escrita que apresenta influências (ou ao menos semelhanças) saramaguianas, tanto na densidade do texto, quanto na forma como o mesmo é apresentado, com os diálogos inseridos diretamente no corpo do parágrafo, sem o uso de marcações de falas, como as aspas ou travessões. O formato aproxima o texto de uma linguagem que se assemelha ao fluxo de pensamento, lembrando alguém contando uma história, alguém lembrando, contando as suas memórias. Ao mesmo tempo, o texto se afasta da oralidade quando analisado o uso rebuscado da linhagem, criando um texto denso, opaco e, na visão das escolas textualistas, um texto eminentemente artístico.

As passagens ao futuro e ao passado destacam-se na obra de diferentes formas, não apenas no conteúdo narrativo, como já foi abordado, mas na própria construção do texto. Um pequeno resumo introdutório, antes do início da história, nomeia cada uma das sete memórias principais. Como o elenco de uma peça teatral. Esse pequeno guia é a referência do leitor para identificar a quem pertencem as memórias no decorrer da obra, já que, durante o romance, a cada troca de narrador este nos é apresentado apenas como “quarta memória”, “segunda memória”, “quinta memória” e não pelos seus nomes. Aos primeiros capítulos o leitor vê-se com freqüência buscando este guia para identificar quem será o narrador da memória que irá ser contada a seguir. O leitor é obrigado a manipular o livro, passear por suas páginas, avançar e retroceder pela obra, fisicamente, da mesma maneira que o faz acompanhando a narrativa, que avança e retrocede no tempo da história narrada. Após os primeiros capítulos, o leitor assimila, seja pela conferência constante ao guia introdutório ou pelo conteúdo e estilo da narração, quem é o narrador de cada memória. Essa identificação das histórias, estilos e personalidades de cada narrador, associada à identificação de suas “alcunhas” (primeira memória, segunda memória, etc), torna o ritmo da leitura mais rápido no decorrer da obra, conduzindo o leitor ao final tragicamente prenunciado no primeiro capítulo. Esse acelerar na leitura coincide com o acelerar dos fatos que, se aproximando do clímax, tornam-se mais dinâmicos e intensos.

As memórias, em decorrência dos diferentes narradores, se apresentam cada qual com uma maneira de contar a história, com seu estilo. Aos poucos o leitor começa a conhecer os narradores e identificar a peculiaridade de sua narrativa. Uns mais intimistas, outros mais ousados, alguns sempre pesarosos e angustiados, outros soberbos e confiantes. No entanto, em momentos no decorrer da história, o leitor tem rápidos vislumbres de algo mais no texto, um elemento estranho à narrativa deixa-se transparecer por trás dos narradores. Ao leitor atento é possível ver a figura do autor, atrás da do narrador. Como um espectador que tem a atenção chamada aos cordões da marionete, denunciando seu manipulador, lembrando que o personagem é, apesar de tudo, um boneco de madeira. Ainda que as memórias sejam por eles narradas, percebe-se no uso da linguagem certa unidade que não condiz com a heterogeneidade dos narradores. Mesmo as personagens mais simples apresentam um domínio vocabular e de raciocínio em suas memórias que destoa de sua pouco privilegiada condição sociocultural. O leitor mais atento é, nesses momentos, “despertado” do romance. A quebra da catarse lembra que uma história está sendo contada, que um livro está sendo lido. Deslize do autor? Recurso necessário para atingir uma harmonia e identidade de linguagem em toda a obra? Seria a linguagem da memória naturalmente mais rebuscada que a da fala, permitindo que as lembranças de Cida e Bartolomeu, dois escravos, nos chegassem com a mesma eloqüência do abolicionista Bittencourt ou de Dona Gaudência? O fato é que mesmo tornando a leitura mais aprazível (aqui uma opinião irremediavelmente pessoal) o artifício levanta essas questões e por vezes retira o leitor de sua catarse.

 
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