Werner Neuert: "Nunca me imaginei escritor" |
Autor dos livros “Do Ofício de Matar Bois” (Contos, 1999), “A Terra Estava Vazia e Vaga” (Contos, 2002) e “Ofício Divino” (Poemas, 2003); o escritor catarinense Werner Neuert fala, nesta entrevista concedida ao Sarau Eletrônico, de sua infância, sua formação literária, seus livros, de sua conversão religiosa e sua teogonia. “Já fui católico, budista e protestante, tenho os livros na estante e todos têm a explicação” Nascido no município catarinense de Rio do Sul em 1964, Werner Neuert mudou-se ainda na infância para Indaial, no Médio Vale do Itajaí, onde vive até hoje com sua família. Advogado, Werner é também autor de três livros: “Do Ofício de Matar Bois” (Contos, 1999), “A Terra Estava Vazia e Vaga” (Contos, 2002) e “Ofício Divino” (Poemas, 2003). Seus livros se caracterizam por explorar o máximo de conteúdo na expressão mínima. Depois de transitar pelo ateísmo, Werner Neuert entrou em contato com monges de uma ordem religiosa trapista e converteu-se para o catolicismo, exercendo atualmente a diaconia na Igreja Católica. (Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Gabriel Severo Venco Teixeira da Cunha) Gostaríamos de começar perguntando a respeito da tua infância. Onde nasceste? Em que ambiente familiar te desenvolveste? Qual o teu primeiro contato com a literatura? No “Ofício Divino” está escrito que nasci no Vale do Itajaí. No “Do Ofício de Matar Bois” está: nascido em Indaial. Em “A Terra Estava Vazia e Vaga” também se diz no Vale do Itajaí. Nasci em Rio do Sul, embora meus pais já estivessem morando em Indaial. O meu avô era um alemão que chegou aqui em 1933, e veio por São Francisco, Pomerode, Lontras, depois mudou-se para Trombudo e Rio do Sul. À época em que nasci, meu pai era representante comercial da casa Carlos Hoepcke, de Curitiba. Ele trabalhava no sudoeste do Paraná, e ficava uns quarenta dias fora. Naquele tempo as estradas eram todas de lama, que meu pai percorria de Jeep com um “38” debaixo do banco. Ele entendeu que fosse mais adequado deixar minha mãe, grávida e já próxima de ter o bebê, na casa dos meus avós, os pais dele, que moravam em Rio do Sul. Os pais da minha mãe moravam em Lontras. Até porque a estrutura hospitalar em Rio do Sul era mais adequada. Então nasci em Rio do Sul no dia 07 de junho de 1964. Mas ali só fiquei por quarenta dias. Mudamos para Pato Branco, no Paraná, porque meu pai trabalhava naquela região. Não sei quanto tempo ficamos por lá, até porque depois mudamos para União da Vitória. Entre Pato Branco e União da Vitória foram dois anos. Retornei a Indaial, isto é, nem nasci em Indaial mas julgo que retornei, porque meus pais tinham como finalidade se estabelecer por ali. E a família da minha avó materna, que é Rocha, está ali desde 1865 aproximadamente, dos descendentes de açorianos que vieram fugindo do voluntariado da Guerra do Paraguai. Voluntariado que não foi! Não quiseram ser “voluntários” na marra, embrenharam-se na mata e se estabeleceram ali pela “Estradinha”. Em razão disso me considero indaialense e gosto de colocar que sou do Vale do Itajaí, não por renegar minha origem riosulense, não tenha nada contra Rio do Sul, acho esta uma bela cidade, mas porque não tenho uma identidade com a cidade. Criei-me em Indaial, estudando em escola pública, no Frederico Hardt. Antes disso meu pai teve um bar no centro da cidade, onde hoje é o Restaurante Elite. Na época era o Bar Elite. Era o point dos poucos boêmios indaialenses. Mas tenho algumas poucas lembranças daqueles tempos: de brincar ali na rua, de rua não pavimentada, de fugir do jardim de infância e da minha mãe apavorada, porque por ali passava o trem. Depois nos mudamos para um lugar que era uma espécie de chácara. Então pulei muito nas capoeiras, tomei banho escondido no rio. A minha mãe tinha pavor disso! E o rio Itajaí-Açu, historicamente, reclama sacrifícios anuais. Desde o Daniel Pfaffendorf, em 1850, não houve um ano sem que alguém perecesse nas águas do rio Itajaí. Mas eu fui um sobrevivente. E uma boa memória é a de descer o rio com câmaras de automóvel por um trecho bastante longo, de uns três ou quatro quilômetros, um pouco de remanso, um pouco de corredeira. A minha vida escolar, sobretudo no ginásio, foi bem medíocre. Tive uma professora de Matemática, professora Rosita Pamplona, muito querida, agrônoma, depois foi minha professora aqui na Etevi (Escola Técnica do Vale do Itajaí), que entrava na sala e, sem nem saber se eu estava na sala ou não, dizia: “Werner, pra fora!” Para não se incomodar, ela já tomava essa providência. Isto lá pela 6ª ou 7ª série. Tu me perguntaste sobre gosto por literatura ou alguma coisa do gênero. Os primeiros livros da minha biblioteca foram “O Barão de Münchausen”, “O Príncipe Invencível” – que quem me deu foi a Tia Úrsula, irmã do meu pai. Aliás, meu pai foi o único brasileiro, suas irmãs vieram para cá mocinhas. A família já estava constituída lá. É do conhecimento de todos que a Alemanha não estava bem naqueles tempos, sobretudo econômica e socialmente. Quando meu avô veio embora, foi quando iniciou a ascenção do nazismo. Com esses livros que minha tia me deu, começou minha biblioteca. Aí, aqueles concursos de poesia na escola... Lembro-me de ter ganho um, na oitava série, aos quatorze anos. Agora, para valer mesmo, gosto por livro – não diria por literatura, mas por livro – veio numa fase dos quinze anos, quando eu estava naquela de gostar ou não da maconha e o conflito de consciência era intenso. O convívio em casa era bom, e eu fumava, ou ficava tomando vodka quando não tinha dinheiro para fumar com os amigos, e isso ficava me dando umas crises de consciência: “isso é uma sacanagem que estou fazendo com meus pais!” Imagina, quinze anos! Mas, por intermédio da Zélia, que hoje é minha esposa, chegou-me um livro do Fernando Morais, “A Ilha”, que era de uma amiga nossa. Esse livro me encantou! Ao mesmo tempo encantei-me com o livro e com o comunismo. Isso foi em 1979. Ainda fiz o primeiro ano do segundo grau, que naquele tempo era o primeiro núcleo, lá no Frederico, e meu pai queria que eu fosse estudar no Colégio Santo Antônio. Eu tinha pavor disso, porque não queria ver padre nem pintado, e tinha a impressão que ali era um centro de repressão que não permitia a ninguém criar e pensar. “Não vou para esta escola nem a pau! Vou para o Pedro II!” Meu pai disse: “Pedro II não! Tu vais é para o Santo Antônio!” Eu tinha que achar uma saída para isso. Antes disto, nós tínhamos publicado um jornal, lá em Indaial, no Colégio Frederico Hardt, em 1979, chamado “Reflexos”, e que só teve dois números. Ele não passou do segundo número, e não foi nem pelos nossos posicionamentos políticos, mas porque nós fizemos uma piadinha com uma professora de português, e o diretor fechou o jornal. (risos) Era um jornal escolar, mimeografado. No ano seguinte, convenci meu pai que minha vocação era na área de agropecuária, e a Etevi, aqui na FURB, tinha o curso técnico de agropecuária. Na verdade, foi um subterfúgio para escapar do Santo Antônio. Em 1980 vim para a Etevi fazer agropecuária. Foi aí que me deparei com a política estudantil. Não me lembro se isso foi logo no início de Etevi, acho que foi um pouco mais para a frente. Em 1981 tive um ano de esbórnia, nem vinha para a aula, passava o tempo todo em uma lanchonete do Centro, tomando chope... menininhas... às vezes comprando maconha. Mas não gostava muito porque me dava sono, medo da polícia e fome. Fumei porque o pessoal fumava, mas eu gostava mesmo era de cerveja. Repeti o ano! Não me lembro, mas acho que foi só em 1982, que me apareceram os comunistas que havia aqui na FURB. Lembro-me que havia um rapaz que cursava engenharia e cujo apelido era “PC”. Um dia veio o Luis Carlos Prestes dar uma palestra em um anfiteatro da FURB. Viemos um amigo e eu de ônibus para assistir ao Luis Carlos Prestes, e nunca vou me esquecer: esse “PC” na primeira fila, o Prestes falando e ele fazendo assim com a cabeça (o entrevistado cruza os braços e balança negativamente a cabeça, imitando a atitude de “PC”). Ele julgou que o Prestes estava equivocado naquilo que estava dizendo, e imagino que o impulso dele era o de corrigir o Prestes (risos)). Ali conheci o Adelhart Graf, do qual acabei sendo padrinho de casamento. Uma coisa que me soa um pouco como um romance do Kafka, porque não consigo identificar o que é realidade do que não é... Ele e uma outra estudante de Direito, a Cida, que hoje é advogada em Chapecó, convidaram-nos para o movimento estudantil que iria ocorrer na universidade, mas querendo buscar o 2º Grau também, até para reorganizar a União Brasileira de Estudantes – a UBE. Tinha eu e um estudante de Florianópolis, que não conheci. Fazíamos reuniões no pátio, análises de conjuntura, essas coisas, e estaríamos vinculados ao MR8. Nunca estive em nenhuma Assembléia, nada! Em uma ocasião deveríamos ter ido a um encontro em Curitiba, onde estariam também jovens cubanos. Imagine só, encontrar-se com os cubanos em 1982 era o...! Acontece que tinha ali um guarda-chuvinha – segundo o que a gente ouvia falar – do PMDB – e isso me parece que sim – , e que esse guarda-chuva aqui seria do Dirceu Carneiro, de Lages, e o Renato Viana. O Renato Viana estava de férias, assumiu o Ramiro Ruediger. Segundo o que me disse uma dessas lideranças universitárias do MR8, o Ramiro Ruediger disse: “eu não dou dinheiro para comunistas!” Então ficamos sem dinheiro para nos encontrarmos com os demais estudantes brasileiros e cubanos em Curitiba. Em 1983 fui para o quartel, servir ao Exército, e ali, talvez por aqueles ímpetos corajosos e estúpidos misturados, eu tinha uns cadernos estampados com a estrela do PT. Esse mesmo amigo, que veio comigo ver o Prestes, numa faxina no quartel, teria descoberto que eu estava lá, relacionado entre os comunistas, mas eu nunca fui conferir. Este foi um período estranho! Tenho um conto, chamado Nelson Piquet, no livro “Do ofício de matar bois”, que mais ou menos se refere a isso. Essa coisa fragmentada, impalpável, onde a gente discutia política, falava de política, mas que não aconteceu. Todo mundo querendo ir para o Araguaia, pegar um fuzil e fazer a guerrilha, ou começar aqui mesmo, mas tudo isso se esfarelou. Quando voltei do quartel, resolvi estudar, e ainda terminei meu 2º Grau, aqui na Etevi, com louvor. Prestei o vestibular e cursei um semestre de Engenharia aqui na FURB. Percebi que não era por aí. Pensei em Ciências Sociais. O professor Sálvio Müller já tinha sido meu professor na Engenharia. Tinha admiração por ele, e conversava com ele extracurricularmente. Foi ele que me disse: “olha, vai sair o curso de Ciências Sociais na FURB”. “Opa, então vou parar engenharia .” Mas o curso não saiu. Então pensei: “rapaz, o que vou fazer agora, nesse meio tempo?” E meu pai: “tu resolve, agora, o que tu vais fazer, porque senão tu vais trabalhar comigo!” Até hoje ele tem empresa de representação comercial, e eu não queria ser representante comercial. Fiz vestibular para Direito, passei e terminei a faculdade. Citaste o teu conto Nelson Piquet. Quando lemos teus contos, temos a impressão que há um pouco de autobiográfico neles. O Millôr Fernandes diz que feliz foi Adão, que sabia que tudo oc que escrevia era original. Então tem algo de autobiográfico, mas tem influências de tudo que é lado, de pessoas, textos e coisas que passam pela vida da gente. Ainda falando sobre a tua história de vida, e aproveitando um conto teu que está no livro “A terra estava vazia e vaga” e que diz: “hoje estou muito só. Deus quer me abraçar, mas eu não tenho coragem”. Na biografia que consta d’“Ofício divino”, dizes que já foste ateu e hoje te descobres cristão... Cristão católico. A religião, a questão de Deus e da fé, aparecem muito nos teus três livros. Como era a vida religiosa no contexto da tua família. Meu pai, um agnóstico tipicamente burguês, assim como penso que é a classe média em todo o Ocidente. Minha mãe, uma ex-freira salesiana, no noviciado, naqueles tempos de discernimento, descobriu que a vocação dela não era a vida religiosa. Eu me descubro ateu naqueles tempos de Etevi, com aqueles movimentos políticos, e quem fazia militância política era necessariamente de esquerda. Com as inúmeras tendências stalinistas, trotskistas, bostistas, marxistas e os cacetistas, ou o que quer que fosse, eu sempre me senti mais identificado com o anarquismo. Sempre quis firmar uma posição anarquista. Era fora de moda, mas nunca deixei de firmar essa posição. Eu prefiro que tenhamos condições de vida justas e sem chefes. Era muito difícil ser da esquerda, aqui, na FURB, em Blumenau, no início da década de 1980, sem ser ateu. E havia um discurso para o convencimento disso, e achei muito encantador. Julgo que tenho uma natureza muito romântica – não sei se estou muito correto nesta minha autoanálise – e “O Capital”, a luta do povo, a ditadura do proletariado, a vida pelo coletivo e as notícias que tínhamos dos países comunistas, seriam pouco palpáveis hoje. A própria realidade era mais difícil de se ler porque tu estavas mergulhado nela. Naquele tempo estive ateu. Meus posicionamentos políticos foram sendo revistos ao longo do tempo, e acho que continuarão sendo até ao final da vida. Nos teus textos, em vários momentos te referes às esquerdas com ironia e até com um certo cinismo. Há um conto em “A terra estava vazia e vaga”, por exemplo, em que a personagem vai dormir e reza para Che Guevara. Há como que um mal-estar, porque você tem um discurso de esquerda, mas ao mesmo tempo vive uma realidade que não condiz com ele. Tem essa questão do ateísmo... Esse meu compadre, o Werner Leber e eu, lá pelos quinze anos, gostávamos muito de ler e conversar sobre astronomia e de imaginar aonde vai dar o universo. Aquelas velhas perguntas: de onde vim, para onde vamos, o que é isso tudo. Essa velha questão permanece, tanto que ele acabou indo fazer Teologia lá em São Leopoldo, na Universidade Luterana de Teologia. Saiu de lá não sendo pastor, mas é hoje professor em Joinville. Fez mestrado em Filosofia, em Ontologia, na Federal de Santa Catarina. O que faltava é que, nós muito jovens, a metafísica descartada do contexto das conversas intelectuais, não tínhamos muitas referências, mas a busca era a metafísica. Na medida em que fui envelhecendo, fui revendo posições. Fui vivendo uma longa crise, coincidindo com a queda do muro de Berlim, essas coisas todas, e que referencial, e qual o sentido da existência? A gente começa aqui, vive 20, 30, 100 anos, e encontra um sentido exclusivamente aqui? Ou há, além dessa imanência, uma possibilidade transcendente? Penso eu que, com as minhas misérias, essencialmente o que orienta o que escrevi até aqui, e até mesmo o meu viver, é essa questão metafísica. E ocorreu também a minha conversão, que é um longo processo. Para resumir um pouco, eu era amigo de um padre em Indaial, o padre José Bissoni, que já está morto e era muito bem humorado. Penso eu, hoje, que aquela busca pela astronomia era uma busca de Deus. Era a busca de uma transcendência. Então ouvi dizer que tinha um curso de teologia para leigos em Blumenau, uma veza por semana, nas segundas-feiras à noite. Ali entrei em contato com um livro chamado “Catecismo da Igreja Católica”. Este é meu livro de cabeceira até hoje. Muita gente confunde espiritualidade com moral: “mas tu és um devasso, escreves um monte de pornografia e agora te dizes católico!” Não tenho porque renegar o que escrevi. Este livro, “Do ofício de matar bois”, eu quis que se intitulasse Teologia. E por que esse nome? Se há um Deus imanente e transcendente, tudo o que fazemos é teologia. A própria pornografia se insere no mesmo universo cósmico onde está esse Deus criador de todas as coisas. Mas meu editor, o querido José Pereira, disse: “pois é, mas Teologia... Não vejo como isso pode combinar. Acho que ficaria melhor ‘Do ofício de matar bois’.” “Então bota ‘Ofício de matar bois’.” Mas aqui entrou o segundo versículo do primeiro capítulo do livro do Gênesis que é “A terra estava vazia e vaga”. E “Do ofício de matar bois” é o livro, efetivamente, do período da conversão, de 2003 a 2004. Em 1999 comecei aquele curso. O “Catecismo da Igreja Católica”... “caraca, que precisão!” Sou um imenso admirador, hoje, do Papa Bento XVI. E não só do Papa, mas do pensador Ratzinger, que tem uma obra que poderia ser mais extensa, mas em razão das suas funções administrativas, não ficou tanto. E nessas buscas, com o amor que tenho pela Igreja, há uma diversidade, um universo imenso de se ver a Igreja. A identidade foi com esta Igreja que encontrei lá no Catecismo, e que praticamente tu não encontras, como não encontravas aqueles comunistas que tu não sonhavas, mas que encontrei numa ordem monástica da tradição beneditina, a Ordem Cisterciense da Estrita Observância, mais conhecidos como Monges Trapistas. Embora sejam muito reclusos e contemplativos e, portanto, discretos, tem um monge trapista muito conhecido, principalmente nos tempos da contracultura, que se chamava Thomas Merton. Lembrei agora que a contracultura também teve uma grande influência na minha vida. Nos meus tempos de pré-Etevi e de Etevi fazia questão de não usar calça de brim, em razão do imperialismo norte-americano. Usava calça de algodão cru, umas batas indianas, umas gregas do Peru. As influências são múltiplas, convergiram, e era uma devoção religiosa, sempre tive, isso é da minha índole. Mesmo quando ateu, eu era muito religioso na devoção com aquelas coisas. Não tenho a capacidade de permanecer neutro. Isso é difícil para mim. Há um impulso de radicalidade. Acho que não dá para viver sem envolvimento. Lá descobri muitas coisas perdidas da tradição cristã. Thomas Merton, e Thomas Keating, outro monge trapista e que está nos Estados Unidos. Esses caras se aperceberam, na década de 60, que muitos jovens estavam indo para a Índia buscar aqela espiritualidade budista, belíssima por sinal, de meditação, de contemplação, de se voltar para si, para o universo... Esses caras disseram: “Nós temos isso na tradição católica!” Nesse mosteiro são sete orações por dia, talvez um terço do dia é de meditação e em estado de contemplação. Esses caras quiseram dizer para os cristãos ocidentais, para os jovens agnósticos ou para aqueles que buscavam algum tipo de espiritualidade por lá, com os nossos irmãos Hare Krishna, budistas, que nós tínhamos isso aqui no Ocidente. Foi isso que descobri com toda essa gente, com os padres da Igreja: São João Crisóstomo, São João Cassiano, São Bento, Bernardo de Claraval, na Idade Média, o Guilherme de Saint-Thierry, que são os chamados padres cistercienses. O século XII foi um século cisterciense, espiritual e secularmente. Descobri, também, a espiritualidade recente, nova, na América e na Europa, de gente como a Edith Stein, por exemplo, discípula de Edmund Husserl. Se o século XIX foi o século da História, ela se rompeu, ela não deu conta do recado de cumprir a sua promessa de ter a resposta de tudo, como foi a Física antes. E nessa altura, isso tudo já é ciência. A fenomelogia, depois, aparece como outra possibilidade. E aí a Edith Stein entra na história. Ela é uma judia ateia e, certo dia, sozinha em uma biblioteca, pega um livro de Santa Teresa d’Ávila , que viveu no século XVI, uma mística fantástica, ou louca, dependendo do ponto de vista. Para nós, católicos, uma mística genial; mas já vi psicólogo julgando-a esquizofrênica. E ela leu esse livro e disse: “aqui está a verdade!” Imagine, uma mulher intelectual, no início do século XX, lá na Europa, sucessora de Edmund Husserl! Ela disse: “não, minha liberdade está na possibilidade de contemplação”. Ela virou uma monja carmelitana e, no final, acabou sendo vítima do holocausto. Ela, hoje, é mártir da Igreja e padroeira da Europa junto com São Bento. Mártir porque, quando ela estava no mosteiro de Echt, na Holanda, disse: “ofereço minha vida pelo povo judeu”; e foi para o martírio. Estas foram as influências que tive. Até o dia da minha conversão foi um longo processo, mas é bom ter datas para a gente celebrar, e esta foi no dia 12 de dezembro de 2003, lá no Mosteiro de Nossa Senhora do Novo Mundo. Fui crismado na Igreja Católica e fui confirmado na igreja deste mosteiro no dia 18 de dezembro de 2004. Estes são marcos relevantes na minh a vida. No “Ofício Divino”, vemos que Deus é algo muito presente. A impressão que temos, quando lemos os poemas deste livro, é de quase um animismo. Quem é este Deus? Onde está este Deus? Por que não é um animismo? Porque este Deus é imanente, mas é transcendente. Ele está em toda criatura, mas ele transcende toda criatura. Só há um ser necessário, e falo isso do ponto de vista e da teologia católica, a qual eu professo. Só há um ser necessário! Tudo mais é contingente. Ou seja, só há um criador que não está confinado às categorias de espaço e tempo. Os demais são criaturas. Tudo que é criação de Deus tem participação no criador. Sem ser animista, nem panteísta, Deus está em toda criação, mas não somente em toda a criação. Mas tem mais que toda a criação? Tem Deus! Ele transcende toda essa criação. E na teologia há uma profissão de fé em um Deus que é trino, e que esta trindade reconhecemos como uma união de amor. Então, o Deus dos cristãos é amor. E este Deus, único ser necessário, cria por amor e porque é amor. Toda criação é amor. O que chamamos de pecado, é aquilo que contradiz o amor, aquilo que maltrata o outro, seja este outro Deus, seja ser humano, ou seja a criação. Esta ideia de um Deus uno já aparecia nos teus primeiros livros. Há um trecho de “A terra estava vazia e vaga” onde Buda, Krishna e Deus estão sentados em uma mesa, falando sobre futebol. Mas todos estão lá. E a impressão que temos é que, apesar de toda pluralidade, há um uno ali presente. Quanto ao amor, principalmente em “Do ofício de matar bois”, este aparece associado ao carnal. O amor sem a carne, sem a materialidade, não existe. Como vês isto hoje? Que amor era esse que aparecia nos teus livros anteriores? Não sei se sei definir todos esses amores, mas hoje eu não faria uma divisão entre amor carnal e amor espiritual. Porque se Deus é amor, e está em toda criação, então o amor está em todo universo. E aquilo que é destrutivo em nós, é o que se opõe a este amor. Este amor é harmonia, comunhão, sem anulação de diferenças ou de divergências. Nos meus grandes amigos ateus, por exemplo, não existe menos amor do que no mais convicto dos católicos. É uma bobagem valorar isso, mas se for para fazer, há muito ateu que transborda amor. Então, no meu ponto de vista, que é o ponto de vista da Igreja, o Deus é amor perpassa toda criatura. Um conceito de Santo Agostinho, o de livre arbítrio, é de que Deus é amor, a trindade é comunhão de amor, e no transbordamento desse amor se realiza a criação. Mas essa criação implica também em liberdade. Ele não te obriga: “Eu sou Deus e tu tens a obrigação de vir me adorar”. Não, “Eu sou Deus, plenitude de amor, e tu fazes o que quiseres. Mas tem um negócio em ti, que é o ego, e com este tu cuidas, porque este pode te fazer crer que tua é a verdade.” Tem uma árvore mais no fundo, a árvore da vida, e ali é o norte universal que não depende de tempo e de espaço. Esta é a verdade. Mas se queres ir no ego, vai também. Este é um problema teu. Deus não te obriga a corresponder a este amor, mas sempre é disposição de amor. Por mais que tu insistas em recorrer aos teus próprios caminhos, ou recusar, ou como diz o salmista: “meu Deus, por que me abandonaste?”, Deus é sempre uma fonte amorosa que te aguarda. No teu primeiro livro, teu primeiro conto vai trabalhar com uma série de tabus. Tabus estes que perpassam boa parte da tua prosa. Neste conto, mãe e filha perdem o marido e pai, muito tristes, retornam para casa e se descobrem, tocam e amam. Nós temos aqui a questão da morte, que sempre aparece nos teus textos... Que está naquele mesmo eixo existencial. A morte é uma referência que não sai do horizonte. Não como fim, mas como um norte, um ponto. Sim, mas há ainda a menção ao incesto, que aparece em outros textos teus. Neste primeiro conto mãe e filha vão deitar juntas, acariciam-se, despem-se e, claro, o leitor entende como quer. No conto seguinte já há uma menção direta ao incesto: o pai fica com a filha. Além deste, há outros temas, como a homossexualidade, por exemplo. Por que estas temáticas? Talvez tu já tenhas pontuado. Tudo aquilo que é marcante na existência, tudo aquilo que é humano, penso que é elemento para se escrever. Escrevi por isso e porque, ao mesmo tempo, é algo que perturba. E nós temos inúmeras perspectivas. Tu viste aqui que a mãe e a filha têm uma relação homossexual, mas eu não escrevi isso. E o pai que toca filha... São coisas da existência. Não se trata de referências a um fato. Por exemplo, o conto “4 de março” já é. “4 de março”, de certo modo, é uma homenagem a um amigo já falecido, o João Carlos da Silva. Certo dia ele chegou lá em casa com uma coleção de discos da “Legião Urbana”, e o conto é a descrição de um fato acontecido. “Abre essas palavras. Arranca o que tem lá dentro. Não adianta nada ficar escrevendo se não desvendar os fragmentos podres ou a luz mais branca. Aperta, esmaga com raiva até tirar toda essência. Depois bebe com serenidade como um santo.” Este é o trecho de um dos teus contos que consta de “A terra estava vazia e vaga”. O que significa, para ti, escrever? Qual a função do texto? Primeiramente é este diálogo comigo mesmo. Uma necessidade! Escrevo por necessidade. Hoje, talvez, um pouco menos, mas ainda por necessidade. Amo escrever! Mas, sobretudo, quando foi escrito “Do ofício de matar bois” e “A terra estava vazia e vaga”, não era possível não escrever. E os contos escritos de carreirinho. Sentar, redigir e, mais ou menos, ficar o que escrevi e deixar de lado. Tanto que, originalmente, não escrevi com o desejo da publicação. Mas um dia, acho que num bar, conversando com a Urda Alice Klueger, ela me disse: “deixa-me ver teus contos”. Trouxe para ela, que me disse: “ô rapaz, tu tens que publicar esses contos aí!” No início tive uma reverência exagerada à literatura, tanto que o primeiro conto que escrevi foi “Teologia”. Não lembro de que ano ele é, mas sabe quem primeiramente leu esse conto? Eu disse: “se esse cara aprovar esse conto, continuo, senão deixo pra lá.” A pessoa foi o Theobaldo Costa Jamundá. Ele aprovou o conto e disse para eu continuar escrevendo. Logo depois veio a Urda e aconteceu esse “Do ofício de matar bois”; depois veio “A terra estava vazia e vaga” pela editora da Urda, a Hemisfério Sul. E esse “Ofício divino” foi uma coletânea disso que, pretenciosamente, chamo de hai-kais, mas livres de mais, como deves ter percebido. Acho que nem Paulo Leminski os aprovaria como hai-kais. Mas foi uma coletâneazinha, quase que toda escrita durante o outono de 2003, que publiquei como que um cartão de final de ano para os amigos e parentes, e como uma lembrança daquele que foi um ano marcante, porque no ano seguinte iria fazer quarenta anos, e com a decisão passar um ano sem ler, sem escrever, e fazendo somente o essencial para viver e meditando. E fiz realmente isso. Depois não voltei a publicar, a não ser em uma coletânea de contos publicada pela Garapuvu em 2003, na antologia “Novo conto catarina”, de 2008, e, agora, participo com oito poemas em um livro publicado em Indaial – uma homenagem ao fotógrafo e grande amigo Mário Holetz, já falecido. Mas não publiquei mais. Nasceste em 1964, e teu primeiro livro vai ao prelo em 1999. Publicas teu primeiro livro depois dos trinta anos, o que é uma idade tardia para os padrões brasileiros. De certa forma já abordaste este assunto, mas por que a primeira publicação vem tão tarde? Como leitor disciplinado que és desde os primeiros livros... Fui me tornar um leitor disciplinado depois dos quinze anos. Mas nunca me imaginei escritor de livros publicados. Sempre gostei de escrever. Se for reunir minhas obras completas com aquilo que ficou guardado lá em casa, dá alguns metros. Mas não tinha a pretensão de que isso fosse literatura, e nunca me imaginei escritor. Até hoje isso não me soa muito natural. Escritor porque estão aí meus livros, mas isso não me é familiar. Penso que não publiquei antes porque não sabia que fossem publicáveis, e por um respeito, que hoje reputo exagerado, à literatura. Por que a preferência pelo conto e, principalmente, contos mínimos. Pela densidade, pela capacidade de fazer um pílula densa. Aquilo que tu sente, pensa, viu ou que tu imaginas, e poder ter isto concentrado. Talvez isso esteja relacionado com essa personalidade de radicalidade. Talvez um romance acabaria me “amornando” e perderia o ritmo ou a intensidade. Tu não manténs em um romance o ritmo e a densidade que podes manter em um conto. Alguns gênios sim, mas este não é o meu caso. Moras em Indaial, uma pequena cidade do interior de Santa Catarina. Como vês o círculo cultural e intelectual nesta região? Existem espaços de diálogo cultural? Existe uma literatura de qualidade praticada por aqui? Vou me fundamentar mais no passado, quando estive convivendo nisto que chamas de espaços de diálogo. Então presumo que exista, embora hoje eu não esteja neles, não por negá-los, mas por estar envolvido em outras tarefas. Penso que posso dizer isso com segurança. Mas havia esse espaço, havia essas possibilidades de diálogo aqui na região, mas sempre em torno de alguém, mais personalizados. Talvez eu vá falar uma grande bobagem, estou falando sem autoridade. Mas há pessoas que vão puxando esses espaços. Acho que o Maicon Tenfen fez isso por um tempo, tu também fizeste essa chamada, a Urda também fez. A Fundação de Cultura de Blumenau talvez tivesse esse papel, mas não sei se ela o tem cumprido ao longo da história. Parece-me que foram mais os escritores que se destacaram e que tinham a capacidade de catalizar, de fazer convergir, que reuniam. Acho que a Urda, o Roberto Morauer, o Pépe Sedrez organizaram alguns saraus, se não me engano, na década de 1990. Mas estou falando aqui com fragmentos de memória, e não posso te dizer como está a situação hoje, porque o convívio que tenho é o de encontrar na rua, ou de ser amigo, mas não tenho convivido neste meio. Citaste alguns autores, principalmente da Filosofia e da Teologia, mas na Literatura propriamente dita, quais são as tuas principais referências? Guardadas todas as proporções e minhas limitações, mas Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu. Gosto demais destes dois e, não exclusivamente, mas principalmente dos contos deles. Mas não dá para enumerar, e a gente vai ficar naquilo que é obrigatório, tanto do ponto de vista pessoal quanto consensual: Machado de Assis, Dostoiévski... Jean Paul Sartre, dos existencialistas, acho o mais “pobre”. Acho que Martin Heidegger, embora Sartre fosse mais popular, foi mais profundo. Também Paul Tillich que, tenho para mim, foi um dos filósofos existencialistas mais importantes, bem como teólogo luterano. Tem um conto teu onde o personagem anda pela biblioteca, retira livros da estante e um deles é do Sartre. Neste ele faz um “X” na capa... Pode ser... Não me lembro mais desse conto. Referindo-me a tua prosa, o espaço é principalmente urbano e agressivo. Tu vives em um cidade pequena, onde o espaço urbano, talvez, não tenha o mesmo nível de agressividade de uma grande metrópole. De onde vem essa espacialização urbana e agressiva? Acho que de algum modo, mesmo estando em uma cidade pequena, as neuroses da civilização sofrem um processo de coletivização. Isso para te dar uma resposta. Projetos na Literatura? Escrevendo... Tenho até uma coletânea chamada de “textos místicos”, mas acho que não estão para serem publicados. Escrevi crônicas para o Jornal Médio Vale, por um período, e isso nunca foi publicado em livro... Tenho contos em uma gaveta. Acho que essas “ovelhas negras” não devem ser publicadas porque não estou com disposição. Talvez no futuro. Tenho filhos jovens, agora, e a atenção à família que, para mim, é uma referência muito importante. Os laços afetivos de família, desde os meus pais e avós, de influência católica. Minha avó, Margarida da Rocha, era uma descendente dos açorianos que aqui desembarcaram no século XVIII, nunca foi à escola – foi a sorte dela – e se tornou sábia. Ela era uma mulher de grande sabedoria e de grande fé. Então, os vínculos familiares sempre muito fortes, com meus pais assim como com meus filhos. Filho, para mim, é um grande esporte, um prazer imenso! Tenho minha profissão e as atividades na igreja. Ainal, nessa história acabei estudando um pouco mais de Teologia. Não era meu objetivo, mas acabou acontecendo, e estou feliz com isso, ter sido ordenado diácono permanente da Igreja Católica. Então, por hora, não me resta muito tempo. Perdoe-me a falta de modéstia, mas gosto do que escrevi, gosto e continuo escrevendo, mas não tenho projetos de publicar. Em alguns dos teus contos fazes alusão à moral do luteranismo. Existe um mal-estar em relação à moral protestante. Fui luterano. Meu pai é luterano; um burguês agnóstico de família luterana. Minha mãe era católica. Quando eles foram casar, as duas famílias estavam em oposição. Isso, em 1963, era um problema. Ainda é, de certa forma, embora mais atenuado. Naquela de “vamos fugir para casar”, meu avô, que era luterano e soldado alemão na 1ª Guerra Mundial, no front de Paris, sobrevivente, diretor da paróquia luterana lá de Rio do Sul, disse: “filho meu, se vai casar, a católica tem que virar luterana! Meus netos têm que ter formação luterana!” Então foi luterana na cultura, e não propriamente na formação religiosa. A gente cumpria a obrigação. Fomos na doutrina, fizemos a confirmação, íamos com o pai nos cultos de Páscoa e Natal e casei com uma luterana, que é luterana e os meus filhos são luteranos. Vivemos um ecumenismo lá em casa, a Igreja e nem eu somos prosilitistas. Como diria o Raul Seixas, já fui católico, budista e protestante, tenho os livros na estante e todos têm a explicação. De certo modo, todos têm a explicação, sem ser relativista ao extremo, porque se sou católico, cristão, tenho um dogma. Mas acho esse relativismo útil e necessário, porque se não, não temos tolerância. Portanto, se há um mal-estar, este é inconsciente. |
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