Um grande falsário ou a esquizofrenia do escritor |
Neste artigo Carina Lessa, mestranda em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa os livros “Menino Oculto” e “Marcelino”, do escritor Godofredo de Oliveira Neto. Um grande falsário ou a esquizofrenia do escritor Carina Lessa Um português chamado Aimoré Seixas dos Campos Salles de Mesquita Ávila. Um roubo da autoria de um quadro. Uma ausência do menino morto no quadro de Portinari. Uma tensão sexual entre arte e mulheres. Assassinatos. Uma dose de estilhaçamento de identidade, espaço e tempo. Todos os ingredientes perfeitos para se descrever a temática de Menino Oculto, se o escritor Aimoré não tivesse falsificado o próprio estado psíquico de esquizofrênico! A falsificação transborda por todas as células do corpo do romance. Em contato com a metamorfose do mundo, Godofredo como artista revela o movimento constante do século XXI. Atenta para músicas da moda, artefatos da Internet como: blogs, orkut, MSN. Além disso, constrói um narrador-personagem que escreve a história de sua vida para ser publicada na Internet. O retorno ao cânone é recriado no presente por meio da apropriação, não somente de fragmentos de textos de Machado de Assis, José de Alencar, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, mas também pelo ato de refazer Portinari ou Villa Lobos. Aimoré é capaz de reproduzir fielmente telas de grandes pintores e se envolve com negociantes de quadros falsos. Estes lhe encomendam uma cópia do Menino Morto, de Portinari. Ao descobrirem que Aimoré está negociando com mais de uma quadrilha, ele sofre uma tentativa de assassinato e, posteriormente, é levado a um lugar que não se sabe bem o que é: uma faculdade ou um manicômio. Nessa duplicidade coexistirão duas narrativas diferentes: a da esquizofrenia do escritor e a do escritor esquizofrênico. O romance é delineado por dois entrevistadores: professor Albano e doutor Orestes. Mediadores do discurso e/ou fluxo de consciência de Aimoré, funcionam como uma espécie de leitores-narradores que vão tecer a identidade do narrador-personagem. Doutor Orestes considera-o um louco, por sua fala desconexa que funde espaço e tempo, com seu histórico de assassinatos e obsessões pela arte. Enquanto que Professor Albano acredita que seja tudo fabulação, o romance de vida de Aimoré. A perspectiva da narrativa torna-se dual porque é instável a fronteira entre o escritor esquizofrênico e a esquizofrenia do escritor. O grande falsificador afirma: “eu tenho o direito de pintar o que quero e quando quero”; “passo de um tempo a outro, exponho visões, cenas e histórias aparentemente desconectadas uma da outra”¹. Os fatos são diversamente interpretados, mas há, em vários momentos, uma lógica interna produzida pelo próprio narrador que se desloca como crítico-leitor do romance. Todo esse universo dissimulado possui ainda a interferência de Ana Perena, personificação da inspiração poética de Aimoré. Ana é como uma musa inspiradora do século XXI: “Agora me guia, escreve, dirige a minha voz, a minha tecla, a minha caneta”². Tudo que Aimoré quer é ver “Ana materializada”³. Dessa forma, ao criar vários personagens para o seu romance, em diálogo com os entrevistadores, diz procurar e querer essa mulher (com a qual tem uma relação erótica e afetiva) de volta. Motivado pelos conselhos de Ana, o narrador-personagem irá atuar cada vez mais a favor da autenticidade da falsificação: “a arte, só pelo simples fato de agitar a estética vigente, já mexe nos pés que seguram o que chamamos por aí de realidade”4, dizia ela. A falsificação ganha um novo sentido. No ato da reescritura ou releitura da obra de arte, o leitor, intérprete ou escritor realiza uma outra criação artística. Assim, Aimoré, como pintor de quadros e da literatura do século XXI, pinta novos traços e atribui novos sentidos ao cânone. Diz não ser um falsário porque em todos os quadros que reproduz coloca emoções novas, deixando sempre a sua marca como autor do quadro: de um leve sorriso nos lábios do menino morto à eliminação do menino por completo. A esquizofrenia está ligada à falta de sintonia das funções psíquicas, ao dilaceramento da personalidade, ao distanciamento da realidade. O falso é o contrário à realidade, dissimulação, fingimento. “Imagino que seja assim que os sonâmbulos e os escritores agem nessas horas”5, Aimoré poderia dizer. No ato de escrever ou narrar “crio fatos inverossímeis e eles caem na lorota, e eles me chamando louco, esquizofrênico”6, afirma. Será neste sentido que, curiosamente, o falsário e o esquizofrênico tornam-se metáforas do escritor, do pintor. Enfim, do artista. A falsificação ganha um novo sentido. No ato da reescritura ou releitura da obra de arte, o leitor, intérprete ou escritor realiza uma outra criação artística. Esse é o movimento autofágico, que resulta na escritura de Marcelino7 último livro de Godofredo. Como leitor de seu romance Marcelino Namnbrá, o manumisso “falsifica” o próprio romance para dar à luz a um outro romance. Em artigo no “Prosa e verso” do jornal O globo o romancista Godofredo de Oliveira Neto afirma: “De simples poros abertos à realidade, a fronteira entre o que é e o que não é literatura foi desaparecendo”8, indicando ainda uma possível perda da massa encefálica do texto literário. Tal afirmação revitaliza-se com o fato de o escritor ter publicado seu último livro, Marcelino, revisitando a tradição literária e o diálogo com o passado. “Constrói um artefato lingüístico refinado, competente e sedutor, desvia-se dos clichês e da platitude da linguagem comum de parte da ficção atual”9, bem como afirma Maria Eugênia Boaventura. Ao reescrever Marcelino, o que Godofredo oferece é um novo romance. “Um dos fortes destaques desse romance reside na precisão com que são delineadas as personagens, que, mesmo na sua grande variedade, assumem a vitalidade de seres reais”10, declara Lauro Junkes em resenha ao Diário Catarinense. O livro ganha o dobro de páginas, como afirma Godofredo. A narrativa ganha um fôlego mais tradicional, distanciando-se da forma fragmentária tipicamente pós-moderna. Segundo Agamben "é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com este nem se adéqua às suas pretensões (...) exatamente por isso, exatamente através desse desvio e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo"11. Tal perspectiva contrapõe-se, inevitavelmente, ao excesso de “presentificação” do “aqui e agora” atribuído por Beatriz Resende - em seu Contemporâneos 12– à “literatura” do trágico, do realismo cru das cidades. A escritura de Marcelino assinala “o presente como arcaico” (Agamben, 2007). Reivindica a volta de uma literatura com as categorias que tornaram autônoma. Ao tomar distância de seu tempo, Godofredo percebe um momento que já está passando. A volta da poeticidade e do trabalho com a linguagem narrativa vai se impondo à verdadeira literatura contemporânea. Na década de 70, Bakhtin confessa: “Entre nós, durante um período bastante longo deu-se atenção particular à especificidade da literatura. Na época isso talvez tenha sido necessário e útil.”13 e, a partir dessa declaração fala sobre a importância de se relacionar os estudos culturais à literatura. Tal concessão, que aos poucos foi sendo tecida, me parece ter resultado na “perda de massa encefálica” apontada por Godofredo. Na medida em que os estudos culturais foram crescendo e ganhando forma, acabaram por serem bons “politicamente, e maus esteticamente”14, como afirma Silviano Santiago em entrevista à Rachel Bertol em 2005. Com efeito, torna-se cada vez mais evidente a necessidade da volta de uma crítica voltada à “especificidade da literatura”, reivindicando linhas qualitativas para o retorno da arte literária enquanto ciência. Notas 1 NETO, Godofredo de Oliveira de. Menino Oculto. Rio de Janeiro: Record, 2005. (pág.67). |
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