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Bell, o poeta que reconduziu o poema aos limites amplos da praça e das ruas Imprimir E-mail

fotoO jornalista e poeta Rubens Jardim, que integrou o movimento da Catequese Poética, liderado pelo poeta Lindolf Bell (1938-1998), escreve sobre a poesia e a pessoa de Bell, e sobre este movimento que aproximou a poesia do seu público.

 

Bell, o poeta que reconduziu o poema aos limites amplos da praça e das ruas

Rubens Jardim*

Publico aqui texto da conversa que tivemos no último sábado, dia 8 de agosto, no Lugarfoto Pantemporâneo, ocasião em que foi lançado mais um livro da coleção Melhores Poemas, dirigida por Edla Van Steen. Desta vez, o homenageado foi Lindolf Bell, poeta que se tornou celebridade nos anos 60, graças ao movimento que criou: a Catequese Poética. Para quem não sabe, a finalidade da Catequese Poética era levar a poesia ao conhecimento do grande público em lugares imprevisíveis como boates, clubes, escolas, praças, teatros, faculdades, sindicatos, livrarias, bares,etc.

“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra cousa, todos os dias são meus”. Achei que este texto do Fernando Pessoa, um dos poetas mais amados pela nossa geração, ajustava-se como uma luva às mãos para abrir essa nossa conversa em torno de Lindolf Bell. E digo isso porque ambos buscaram restabelecer a importância do pensamento poético e aproximá-lo, outra vez, das palpitações do mundo.

Lindolf Bell (1938-1998) nasceu, cresceu e viveu em Timbó, Santa Catarina. Durante sua trajetória de 60 anos entre nós, foi lavrador, escriturário, contador, poeta, professor, crítico de artes, dramaturgo, membro do conselho estadual da cultura do Estado de Santa Catarina e marchand. Mas o que norteava todos os seus fazeres e afazeres era a sua postura de poeta. E até o seu não fazer --o seu ócio –era criativo e irrigado e inundado pela presença da poesia. Aliás, quando ele crava estas palavras “POESIA É TERRÍVEL SOERGUIMENTO” isto não é apenas mais um verso. Ou mais uma imagem. Essa declaração parece resumir o núcleo da sua personalidade e a sua crença de que a verdadeira poesia não é adorno, distração, ornamento interior. Bell acreditava que a verdadeira poesia é luta com a palavra, com o caos primordial do Verbo. É luta contra a tirania da falsa linguagem, das palavras batidas e amassadas e contra a mesmice enganadora e as falas burocráticas.

E é bom lembrar aqui que foram essas falas que rechearam o modelo importado da educação brasileira, que apresentava fórmulas e receitas já prontas, desconectadas da nossa realidade. Naquela altura –estamos falando dos anos 60 onde o Bell vinha se afirmando como poeta – é que foi firmado o acordo MEC-USAID(66) que deu ênfase ao ensino profissionalizante, desde os níveis mais baixos até a especialização. Quer dizer: as raízes desse modelo eram puramente econômicas, voltadas para o treinamento e adestramento do estudante, tornando-o um dócil e cordato servidor do sistema.

É claro que o pensamento de Bell não estava alinhado com essas vertentes trazidas pelos especialistas norte-americanos. Muito pelo contrário. Ele rebelava-se sempre contra o nivelamento das diferenças individuais e sociais. E se sentia comprometido em fazer o caminho contrário. Ou seja: como poeta situado no seu tempo, sua missão era participar da elaboração de um pensamento nacional e da formação de uma inteligência crítica e criativa.

Talvez por isso, sua poesia dos anos 60 seja uma poesia engajada, participativa--mas sempre de alta voltagem lírica. Nos seus poemas daquela época, desfilam temas e palavras vinculadas a solidão, ao destino, ao amor, ao desalento, a amada, ao amigo, a perda de laços de fraternidade e a urgência de protestar, denunciar e convocar. E o título do seu terceiro livro, CONVOCAÇÃO, não surgiu à toa. É um grito explosivo de luta. Pois Bell sempre foi uma pessoa muito rebelde e que fazia questão absoluta de dizer o seu não às coisas como são. Humaníssimo, ele queria transformar tudo o que existia à sua volta. Era um subversivo naquele belo sentido de sofrer pelo novo e lutar para transformar aquilo que é naquilo que ainda não é – e é só pura imaginação, desejo, vontade enraizada.

Bell nunca deixou um instante sequer de ser poeta. Claro que eu não estou falando que ele vivia apenas para o ato criativo, trabalhando alucinadamente seus poemas. Fechado em um quarto. Ou numa mansarda. Nada disso. Embora tivesse uma vida modestíssima aqui em São Paulo – chegou a morar em uma garagem na Rua Aurélia – , nos divertíamos muito em festas, bares, boates e em um número infindável de viagens que fazíamos com a Catequese Poética, para o Interior de São Paulo e para outros Estados.

Nessas ocasiões, lembro que o pessoal brincava dizendo que ele parecia ser o chefe dos escoteiros. Mas logo após o grupo ter cumprido com as obrigações assumidas, que iam de entrevistas a jornais e emissoras de rádio e tv até recitais de poesia e palestras, o Bell era o primeiro a buscar descontração e relaxamento.

Mas não posso deixar de registrar que era uma característica belliana não chegar atrasado e nem dar “cano” em qualquer pessoa. Seja para assistir um filme, ou para fazer uma visita. Ele era extremamente responsável e o primeiro a chegar em qualquer compromisso. Outro aspecto marcante da sua personalidade era o olhar penetrante que parecia refletir e buscar as paisagens mais profundas da alma. Dora Ferreira da Silva, excelente poeta e saudosa criatura disse na apresentação de OS CICLOS (segundo livro) que Bell era um lírico e buscava o contacto dos seres e coisas numa exasperação de alma e sentidos. Ele era assim mesmo: intenso em todas as relações com o mundo.
E que ouvido, senão o ouvido mais fino do poeta poderia ouvir a fome das pedras e a dor que se sobrepõe à dor? Hoje mais do que nunca a velha embira conhece o meu coração.

É isso aí: ser poeta é, de algum jeito, preservar a inocência e a rebeldia – seja diante do branco do papel ou diante da solitária tela do micro. É estar desarmado, desamparado, mas indignado e cheio de energia para enfrentar o vazio e o nada e a partir daí criar o jardim que não existe, a flor que não existe, o mundo que não existe. Ser poeta é, inquestionavelmente, negar o existente. É propor aquilo que ainda não existe. Mas é também não refugiar-se em mero jogo de palavras ou em malabarismos verbais, cujo único fim é reduzir o mistério poético ao nível do racional e do prosaico.

Pois bem: acho que no âmago mesmo de sua vocação poética, como afirmou o crítico Nogueira Moutinho, está a tensão de traduzir em linguagem os acontecimentos e os fatos que o envolvem e dos quais ele é testemunha, comparsa ou agente: nunca, porém, um espectador indiferente. A poesia de Bell é incisiva e convocatória. É uma poesia que atua, publicamente, procurando mobilizar as pessoas e as consciências. Por exemplo: eu quero um plano de vida para conviver. Eu ostentarei minha loucura erudita, eu manterei meu ódio a todos os cetros, cifras, tiranos e exércitos. Eu manterei meu ódio à toda arrogante mediocridade dos covardes. Eu direi coisas sem nexo em cada crepúsculo de lua nova. Eu denunciarei todas as fraudes da nossa sobrevivência. Eu estarei na vanguarda para conferir esplendores. Eu me abastardarei da espécie humana. Eu farei exceções a todos aqueles que souberem amar.

Amo na poesia de Bell essa fome de comunhão. Aliás, como já disse – precisa e preciosamente – Octávio Paz, o poema é um produto social. E sem a história –sem os homens que são a origem, a substância e o fim da história –o poema não poderia nascer nem encarnar. Ou seja: ele não poderia existir. Mas voltemos ao Bell:

“Deixem-me calado na dor e no amor, deixem em paz minha desordem, meu canto rouco, meu viver interior, meu delírio, meu submundo, as águas da minha incerteza constante. Deixem em paz a ferrugem de meus planos abandonados, o quadro negro de meu existir traçado a gis, não me ensinem códigos, não me ponham sininhos no pescoço, eu quero ter a certeza de ser livre.”

Aqui, neste trecho de poema, Bell mostra, com extrema transparência, esses sinais de seu modo de ser e estar – e viver e conviver. Lembro-me da importância que ele sempre atribuiu à independência, à autonomia e à liberdade. Nunca quis se submeter à qualquer coisa que pudesse ameaçar esses princípios. E isso podia ser atestado por qualquer um de nós, que mantivemos, durante anos, uma cotidiana proximidade afetiva e de trabalho.

Dentro da própria Catequese Poética, movimento que ele iniciou, sozinho, em 1964, e que aos poucos foi recebendo adesões e incorporando outros poetas jovens e absolutamente desconhecidos –como eu e muitos outros— Bell jamais impôs regras ou usufruiu de privilégios. Tudo era conversado e discutido em grupo. Desde os poemas recém criados até os compromissos com a imprensa e com a agenda de apresentações e viagens pelo Brasil.

E embora o Bell já fosse muito conhecido e respeitado, (em 1963 ganhou o Prêmio Governador do Estado como revelação) nunca impôs sua maior experiência e jamais manifestou o mínimo de arrogância ou prepotência. E em se tratando dessa questão, me considero um verdadeiro expert. Pois não suporto gente de nariz em pé e que se acha superior aos demais. Tenho alergia física a isso. Portanto, posso testemunhar com absoluta isenção o seguinte: jamais vi, vivi ou convivi com uma pessoa que respeitasse tanto o ser humano e a vida em todas as suas manifestações.

Lembro-me de uma passagem acontecida na casa de minha família. Vovó que morava conosco e também já adorava aquele menino poeta, resolveu presenteá-lo. E sabendo que Bell gostava muito das romãs plantadas no quintal, cortou um galho, fez uma muda e plantou em uma latinha de azeite. Não é preciso dizer o que isso provocou nesse meu amigo e irmão. Mas dias depois, o Bell aparece em casa com uma crônica publicada em um jornal de São Paulo relatando esse episódio. Aí foi outra comoção familiar.

Eis o trecho desta crônica: Nunca esquecerei. Começar a falar assim, deixa a impressão de uma declaração de amor. E talvez seja. A verdade é que nunca esquecerei mesmo. Nem me cansarei de lembrar...Ela olhou-me (minha avó de eleição) e com um gesto manso convidou-me para segui-la. Olhei seus olhos mansos (quase pássaros),os cabelos brancos, as mãos frágeis, frágeis como porcelanas, o andar de quem não passou em branco todo esse tempo...Em seguida, vi o seu sorriso, cheio de ternura, sem limites, ternura de contemplar formiga, folhas caídas, insetos dentro da tarde. Senti um nó na garganta. Um nó de comoção. Um nó de olhar estrelas, descobrir a amplidão dos firmamentos. Vovó Elisa, de muitos anos, transformou-se, de repente, na imagem da humanidade, esta flor tão rápida, tão múltipla, tão estranha. Será que vai crescer?...”

Hoje, essa romanzeira que foi plantada por ele na casa de seus pais, Teodoro e Amália,--e onde ele foi morar sozinho depois da separação com a Elke Hering, está lá dando muitos frutos e sombra a todos àqueles que visitam A CASA DO POETA LINDOLF BELL, em Timbó. Que é hoje um centro cultural, museu, centro de memória, biblioteca e tem ainda a praça do poeta – uma galeria de arte a céu aberto.que pode ser visitada a qualquer hora do dia e da noite. Nessa praça encontram-se placas com os fragmentos poéticos mais conhecidos de Bell, aqueles inquietantes, que levam você a pensar nas questões mais simples e complexas da vida.

Mas voltando ao que estávamos falando, Bell era uma pessoa assim mesmo: muito intensa, generosa e desprendida . Estava sempre disposto a ajudar os outros. Fossem eles jovens poetas, ou pessoas completamente fora do circuito das artes. Era capaz de tirar a roupa do próprio corpo para cobrir o do próximo. Não escolhia o momento para auxiliar quem o procurasse. Daí o aparecimento de outro traço virtuoso: a solidariedade que tem origem na bondade, como testemunhou Péricles Prade, poeta e amigo de infância. Eu também presenciei a inúmeras atitudes desse tipo.

Com as crianças, por exemplo, seu comportamento era singular. Ao contrário do que é mais comum, ele não se infantilizava para cumprimentar ou conversar com uma criança. Não usava os diminutivos corriqueiros nem o tatibitate. Do mesmo jeito que ele não se travestia de mendigo para conversar com um mendigo. Diante de qualquer pessoa ele mantinha sempre um comportamento fraterno, solidário e de respeito. Não ligava para as aparências--embora soubesse que as coisas, todas as coisas, vivem no universo simbólico vestidas de linguagem. Também nunca vi o Bell ajustar alguma máscara, seja de que tipo fosse, para estabelecer relação com outro ser humano. O Bell era sempre, vinte e quatro horas por dia, o Bell. Ou seja: um poeta.

E como escreveu Cecília Meireles em seu Recitativo a um Poeta Morto, dedicado a Jorge de Lima: o que é o poeta senão essa criatura sem equivalência, a transbordar de seus limites humanos, em vício ou virtude, a exceder a multidão que o contempla ou não contempla, entende ou não entende, combate ou glorifica – mas não pode deixar de saber que está presente. Que é o poeta senão o ouvido que melhor ouve o apagado e esquecido e recolhe a sua informulada queixa e seu cântico longínquo? O olho que mais longe avista, até onde as formas são simples esquemas, onde tudo que parece o mais simples se desdobra e entrelaça em trama profunda. Sem ser Deus, nem profeta, nem sábio, mas tudo isso, imperfeita e amargamente, porque é apenas um poeta. E poeta é mesmo assim: múltiplo, complexo, contraditório, solitário e plural, humilde megalômano, desgraçado feliz, audaz e tímido, antinômico, poliedro de cristal com uma luz diferente em cada aresta.

E Bell era um poeta que sabia que a verdadeira poesia é uma viagem ao desconhecido. É caos e criação. Vida e morte. Verbo e substantivo. Espanto e descoberta. E mesmo que seja entendida como arma ou alma carregada de futuro, a poesia é a mais imponderável das criações do espírito humano. É fogo e fumaça. Grito e silêncio. Passatempo e sacramento. Solidão e intercambio. Caminho solitário que cruza com o caminho de todos.

E todos nós percebemos, intuímos e sabemos – seja aqui no Brasil, ou seja lá no Iraque ou na Venezuela, na Bolívia ou em Cuba – que a poesia é um desafio à razão. Talvez porque ela, poesia, seja efetivamente a única razão possível. É um paradoxo, é claro. Mas quando se trata de poesia é necessário estar aberto a um infindável número de questões complexas e absurdas. Afinal, como é que uma coisa que não serve para nada, ninguém paga aluguel com palavras e nem faz crediário com poemas, pode ser tão necessária e indispensável à vida humana?

Como o próprio Bell já disse, em várias oportunidades: não reis, cientistas, chefes, presidentes, deuses: ninguém vive sem a flor e sem o amor. E nós acrescentamos: existe algum amor prosaico? Existe algum amor que não caminha de mãos dadas com a poesia? Claro que todos nós somos poetas de algum jeito. Ou em algum período de nossas vidas. Seja como simples leitores –recriando o poema. Seja até mesmo como fazedores de versos, em geral, confessionais e amorosos que iluminam uma determinada época de nossas vidas.

Faz parte do meu repertório de crenças achar que nenhum ser humano vive sem poesia. Ela é uma necessidade concreta de todos nós. Ela é a mais antiga e primitiva formulação de qualquer experiência vivida. Acho que a poesia serve para expressar o espanto diante do fato novo ou da experiência nova que rompe ou irrompe subitamente o tecido da realidade. Ela serve para quebrar o pote e revirar a ponte. O poeta não quer dizer: ele diz. E o poema não explica e nem representa coisa alguma: ele apenas apresenta. Ou, como afirma, certeira e poeticamente Octávio Paz: a poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu ser original: volta-o para si.

E foi voltado para si mesmo que Bell resolveu sair de Timbó, ir para o Rio de Janeiro servir o Exército (1958-1959) e ingressar no curso de Ciências Sociais da UFR. Desistiu da faculdade e voltou para Timbó (1960) onde escreveu para jornais e revistas catarinenses. Logo depois deixou de novo a casa dos pais em Timbó e veio para São Paulo (62). Aqui, aos 24 anos, publicou Os Postumos e as Profecias e dois anos depois (1964), criou a Catequese Poética, movimento de divulgação da poesia junto aos mais variados públicos. Nesse sentido, a Catequese Poética é considerada um marco importante. Pois foi a partir dela que a poesia finalmente saiu das gavetas , tornando-se mais acessível através de apresentações públicas, declamações, conferências e debates.

Quem não se lembra de uma canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, NOS BAILES DA VIDA? Em determinado trecho Milton cantava Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão Todo artista tem de ir aonde o povo está. Essa canção fez enorme sucesso nos anos 80. Só que quase vinte anos antes, o Bell já percebia que esse seria o melhor caminho para reconduzir o poema e o poeta aos limites mais amplos e democráticos da praça, da rua e da comunidade. E é preciso ressaltar que antes da Catequese Poética inexistia a idéia da arte em espaço público. E foi por influência desse movimento que o espaço público passou a ser utilizado para leitura de poemas, para concertos, exposições, feiras de criatividade e outras manifestações similares. Até mesmo o Teatro de Rua surgiu depois. (segundo afirmação de Pola Vartuck no Estadão)

Outros poetas – caso de Alvaro Alves de Faria que publicou e lançou o livro Sermão do Viaduto com recital em pleno viaduto do Chá em 64 – Eduardo Alves da Costa, Cláudio Willer, Roberto Piva, Carlos Soulié do Amaral, etc – também buscaram uma maior aproximação com o povo, utilizando-se de leituras públicas. Na verdade, esse traço uniu a todos os poetas da geração 60. E Lindolf Bell, que dedicou sua vida inteira à Catequese Poética, tanto no Brasil como no exterior, é um dos mais legítimos representantes dessa geração inquieta, incentivadora da poesia oralizada e lida em praças,ruas,viadutos,teatros, escolas, livrarias,boates, clubes, bares e outros espaços públicos.

A propósito, surrupiei um registro do poeta Paulo Leminski a respeito do Bell e de suas leituras poéticas. Ele diz textualmente o seguinte:“Nunca vi ninguém dizer poemas tão bem, com tanta intensidade, tanta garra, tanto domínio de voz, do gesto e do sentido.”

Comigo aconteceu a mesma coisa. Lembro da primeira vez que assisti ao Bell. Foi no Teatro de Arena, provavelmente em 62 – e me marcou profundamente. Nunca havia presenciado nada semelhante. Aquilo era algo ainda inusitado, singular, único. Aquele jovem poeta (que mais tarde se tornaria meu irmão e me ensinaria que ser amigo é a linguagem extrema) parecia um Evtuchenko brasileiro. Tinha uma figura impressionante. Era alto, olhos azuis, cabelos loiros e lisos e se projetava com uma força e uma originalidade fora do comum. Essas apresentações do Bell foram um marco na minha vida pessoal. E na história do poema sendo reconduzido aos espaços mais amplos e respiráveis da oralidade.

Eu disse reconduzido porque como todos sabem a cultura oral antecede sempre a cultura escrita. Os textos do Antigo Testamento, por exemplo, foram primeiro ditos e só depois escritos. O mesmo aconteceu com Sócrates, – não o excelente jogador do timão, mas o filósofo grego, que nunca escreveu nada e falava muito sobre questões impertinentes que desenvolviam o sentido crítico e criativo. E por não abrir mão de seus princípios e convicções, foi acusado de corromper a juventude e condenado à morte.

Claro que ninguém aqui está a fim de beber cicuta. Mas todos nós ainda alimentamos a idéia de que o escrito é superior ao oral. E de que o trabalho manual é inferior ao trabalho intelectual. Por isso a disparidade de salários e a absurda desigualdade social. Mas isso faz parte da nossa herança colonial. Portugal via no Brasil uma espécie de despensa onde o único interesse era a retirada de riquezas e matérias-primas. A criação de uma cultura genuinamente brasileira, era perigosa aos interesses portugueses. Daí o fato de as elites brasileiras ainda possuírem horror ao mundo real, imediato, próximo.

E, para finalizar, lanço este enigma proposto pelo educador e escritor Rubem Alves:
As palavras são sempre expressões de uma ausência. Se as palavras significassem apenas o presente não seria necessário falar – bastaria usar o dedo e apontar.

Pequena seleção de textos de Lindolf Bell:
“Sem atestados de existência ou distinção de classe, vou à deriva; não faço restrições à Vida.”
“Meu coração é um prisma. Eu sou o que constrói porque é mais difícil. Eu sou o que não é contra mas o que se impõe. Eu sou o que quando destrói, destrói com ternura e quando arranca, arranca até a raiz e põe a semente no lugar.”
“Convirá tantas vezes morrer, tantas vezes fluir, tantas vezes amar, tantas vezes viver com a vida entre os dentes como um sabre? Convirá crescer para a possibilidade de sermos podados? Convirá a pungência das horas amargas, das horas comuns? Assim nos conviremos, cheios de arestas e dilemas. Nunca mais o fingir para caber no porto.”
“Ser amigo é conferir um mundo interior de possibilidades. Ser amigo é a linguagem extrema.”
“Vamos inventar-nos, sim, como nunca havíamos sido inventados, em nenhuma raça, em nenhum orgasmo, em nenhum amor.”
“Tua solidão é a solidão do mundo: alegra-te. Sagra o coração com folhas de louro e cinzas claras da infância.”
“Sem saber, tudo te pertence sem saber: o favo solitário cuja doçura se funde à resina do galho que o suporta; os dias fincados como estacas um ao lado do outro.”
“Oh como dar mãos a quem não tem mãos de dar.”
“Não reis, cientistas, chefes, presidentes, deuses: ninguém vive sem a flor e sem o amor.”
“ E nós, os de calças-curtas, sequer fazemos a ciranda do protesto. Parecemos velhas atrás de vidraças olhando tempestades. E quando tudo passa como num parto sem criança caímos de bruços -- nós os machos, nós os puros, nós os anjos, nós os do reino dos céus que apenas sabemos dizer: graças a Deus, graças a Deus.”
“Nada se converte fora de si, apesar dos deuses. E não existe exoneração, existe vocação.”
“Sempre há duas solidões que se aguardam. Por isso quero estar junto como raiz e tronco.”
“Oh mãe, arca primeira do corpo, primeiro chão, primeira lasca do tronco abatido a machado.”
“Viver é campo de passagem. Tenho sempre um tempo de transição.”
“Ainda nesta noite ainda cometeremos o milagre.”
“Oh Pai, núcleo de ternura. Quando voltarás à casa de onde nos legaste para teu legado?”
“Não é a palavra fácil que procuro. Nem a difícil sentença. Procuro a palavra fóssil. A palavra antes da palavra.”
“Amada, que tempo nos teve, que tempo nos houve, que tempo deteve aquelas águas que nos alagaram no largo amado de nosso tempo amado...”
“Eu te aguardo com a lenha de meu sangue e o sangue de meus dias para sempre – para sempre sangue de meus dias.”
“Deixarei por herança não o poema, mas o corpo repartido na viagem inconclusa.”
“Porque o minifúndio se faz na terra da palavra. Enterrem-me na palavra.”

* Rubens Jardim é jornalista e poeta, autor dos livros de poemas ULTIMATUM (1966), ESPELHO RISCADO (1978) e CANTARES DA PAIXÃO (2008). Integrou o movimento da Catequese Poética. Site: www.rubensjardim.com

 
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