Notas sobre a literatura catarinense 03: Esse falso enxaimel |
A partir de fragmentos de romances dos autores catarinenses Godofredo de Oliveira Neto, Adolfo Boos Júnior, José Endoença Martins e Gregory Haertel, o texto discute a desconstrução da identidade germânica atribuída ao Vale do Itajaí e representada pela arquitetura do enxaimel. Um enxaimel que ultrapassa as fronteiras da construção civil para ajudar a compor uma arquitetura social. Esse “falso” enxaimel Na edição passada, ao tratarmos do escritor Adolfo Boos Júnior, acabamos citando o romance “Quadrilátero”, publicado em 1986. “Quadrilátero”, assim como muitos romances da literatura catarinense, aborda o tema da imigração germânica, porém sob um viés diferente, já que ao invés de construir uma epopéia mítica, problematiza o processo civilizatório empreendido pela migração germânica, humanizado-o e denunciando suas mazelas. Boos, nesse seu romance, inspirou-se nas memórias do seu avô, cuja família migrara para Brusque, entretanto, queremos aqui fazer dialogar a migração germânica da narrativa de “Quadrilátero” com outros três romances, escritos em tempos diferentes, mas que têm em comum esse questionamento a um modelo de colonização e germanismo atribuído ao Vale do Itajaí e vendido pela indústria do turismo. Em Blumenau, especificamente, o poder público procurou construir, a partir de 1967, uma cidade performática, um simulacro desenvolvido para o consumo turístico onde – segundo Maria Bernardete Ramos Flores em seu livro “Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp” – “tudo deveria convergir para uma única voz, plasmada numa só imagem, cantada numa só língua: a germânica”. Assim, colocaremos aqui a literatura à serviço da desconstrução disso que poderiamos chamar de “falso enxaimel”, sem entretanto pressupor um verdadeiro enxaimel. O falso reside, justamente, na ideia de que possa haver um verdadeiro. No romance de Boos percebemos o individualismo dos colonos germânicos, que apenas se unem quando essa união pode representar algum benefício privado. Não há altruísmo nos colonos de “Quadrilátero”. Vejamos o que nos diz o fragmento selecionado: “Era cada um para o seu lado, sonhando a sua maneira e alimentando o sonho com a inveja, juntos apenas quando a necessidade obrigava alguém a pedir emprestado; em comum, somente o desencanto e a decadência, mas vistos apenas nos outros e raramente admitidos em si próprio (...). Não, não era uma família, pelo menos dentro da noção de família, união e coisas assim: porém, sob outro aspecto, era quase uma família, desunida, irmanada apenas na miséria e na revolta e – muito pior – na maldição de não se entregar, de não desistir; quem ajudava já estava pensando em pedir, cada um perseguindo o sonho a sua moda, vendo no vizinho tudo aquilo que não queria ser e – contudo – apresentando a mesma imagem.” (“Quadrilátero”, 1986, p. 389-390) Neste mesmo sentido encontramos “Faina de Jurema”, romance experimental publicado pelo escritor Godofredo de Oliveira Neto em 1981. Godofredo nasceu em Blumenau, entretanto radicou-se no Rio de Janeiro. Ainda assim, Blumenau e Santa Catarina são cenários recorrentes em sua obra. No fragmento abaixo, novamente a constatação do individualismo germânico: “A civilização dos seus antepassados, porém, junto com as suas qualidades, legou-lhes seus imensos defeitos. O espírito de comunidade funcionava unicamente nas relações entre o grupo e outro grupo de raça distinta. No interior do círculo o individualismo preponderava. Para se elevar, pisar sobre os ombros era a lei. A vitória assim obtida era agraciada com prêmios materiais. Isto era o mais importante. A noção de moeda e de seu poder colateral estava aqui tão às soltas como no velho mundo quando de lá partiram” (“Faina de Jurema”, 1981, p. 47) Nosso terceiro fragmento pertence ao romance “Enquanto isso em Dom Casmurro”, do blumenauense José Endoença Martins. Publicado em 1993, “Enquanto isso...” foi escrito logo após o governo Collor, momento em que as indústrias têxteis de Blumenau atravessaram grave crise e demitiram milhares de trabalhadores. Assim, encontramos uma linguagem mais direta, contundente, que denuncia o simulacro da germanidade e todo peso da austeridade que os descendentes dos colonos procuram imprimir a si: “Esta cidade também já foi alemã, italiana. Com alemães e italianos as enchentes anuais perderam leveza e novidade. Ganharam angústia. O enxaimel foi despejado da riqueza de detalhes estéticos que abrigava e virou simulacro empobrecido da nostalgia. A Oktoberfest adquiriu o teor escuro da revolta desesperada, da dor. Uma dor de cerveja e mijo azedos. Alegrias e festas exauriram-se. A abundância econômica despencou.” (“Enquanto isso em Dom Casmurro”, 1993, p. 10) Por fim, temos Gregory Haertel e seu romance “Aguardo”, de 2008. Psiquiatra, Gregory é também autor de teatro. Aguardo é o nome fictício da cidade em que se desenrola a narrativa. No fragmento abaixo encontramos a desconstrução dessa arquitetura social que chamamos de enxaimel e a denúncia do homicídio identitário e cultural empreendido pela construção da hegemonia germânica: “Encravada no meio de um vale, Aguardo é cortada em toda a sua extensão por um rio que raramente acorda. Até esta enchente de 1980 o rio despertara duas outras vezes. Daqueles despertares lê-se nos livros. Moram em Aguardo os que ali nasceram e os que para cá fugiram. Existiam índios e negros. Os primeiros foram exterminados juntamente com as capivaras, à bala. Os negros desapareceram. Não existem bancos em Aguardo. O dinheiro é guardado sob os colchões em sacolas de supermercado. As casas de Aguardo são limpas. As panelas de Aguardo são ariadas dia sim dia não e usadas uma vez por mês. As crianças de Aguardo são gordas (qualquer sinal de magreza é interpretado como desnutrição) e as suas notas são altas (o boletim vai de oito a dez. Notas abaixo destas são motivo para reprimendas públicas e conselhos aos envergonhados pais). Em Aguardo evita-se comentários sobre suicídios e deficientes mentais. Os retardados, em Aguardo, são como o tamanho dos genitais: só sabem sobre eles quem os tem.” (“Aguardo”, 2008, p. 31). Há muito ainda por se dizer a respeito da relação entre a literatura e a construção/desconstrução de identidades, mas nosso espaço é limitado. Permanecem, entretanto, os fragmentos acima e o convite para a leitura desses livros que muito dizem sobre essa sociedade cuja verdade se espelha no enxaimel, e que por se construir enquanto verdade, necessita ser questionada e desconstruída. Texto: Viegas Fernandes da Costa / Sarau Eletrônico |
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