Notas sobre a literatura catarinense 04: Rocamaranha |
No quarto número das “Notas Sobre a Literatura Catarinense”, apresentamos a novela “Rocamaranha”, do escritor Almiro Caldeira (1921-2007), cuja primeira edição data de 1961. O livro aborda a imigração açoriana em Santa Catarina e se constitui como importante referencial para a literatura e para a historiografia desse Estado. Notas sobre a literatura catarinense: Rocamaranha Viegas Fernandes da Costa (Editor do Sarau Eletrônico) A literatura em Santa Catarina tem como tema recorrente a imigração. Se comparado ao resto do país, o território catarinense foi alvo de um projeto de colonização bastante tardio e plural, e muitos foram os povos incentivados a ocupar este território desde o século XVIII, provindos principalmente do continente europeu. Ou seja, a miséria na Europa e a proliferação dos sem-terras era o estímulo que empurrava alemães, italianos, poloneses, ucranianos, portugueses, libaneses dentre outros, para o meio da selva a fim de lavrar o solo e afrontar os nativos, buscando melhores condições de vida, a posse da terra e a segurança material. Afronta esta que derramou muito sangue e quase exterminou povos e culturas como a Kaingang e a Xokleng, povos que agora procuram resgatar seus valores, língua e cosmologia. Neste contexto, a literatura praticada em Santa Catarina, enquanto manifestação social do seu tempo, reflete esse processo de ocupação do território a partir de determinados olhares. Ou seja, é uma literatura comprometida com uma concepção de civilização própria, com um olhar próprio que nasce no bojo de identidades culturais específicas, ou ainda, que reflete a interpretação de cada corrente migratória sobre a sua história. Escritores nascidos no interior de núcleos culturais germânicos escreveram sobre a imigração germânica, o mesmo acontecendo com os escritores nascidos ou criados dentro de outros núcleos, constituindo, na maioria dos casos, uma literatura epopéica e ufanista. Recentemente alguns autores catarinenses vêm se destacando no cenário nacional. É o caso, por exemplo, de Salim Miguel, com o livro "Nur na Escuridão", em que aborda a imigração libanesa, e da escritora Urda Alice Klueger, cujos romances enfocam o cotidiano dos colonos de ascendência germânica. Sobre esta autora, no entanto, há de se fazer uma ressalva. Ela mesma fruto da miscigenação, trabalha nos seus romances a mistura étnica, destoando assim do coro de escritores que criam personagens e enredos etnicamente "puros", ou seja, sem a mistura com outros povos e identidades culturais. Em seu romance "Cruzeiros do Sul", por exemplo, Urda aborda a formação do "povo catarinense" como resultado do encontro de muitos povos, de muitas culturas, e apresenta o estado de Santa Catarina como um grande caldeirão cultural, indicando aí uma influência dos estudos de Gilberto Freyre na sua ficção. Também Almiro Caldeira (1921-2007) abordou o tema da imigração, porém sobre o enfoque da presença Açoriana, a partir da publicação de sua primeira novela, “Rocamaranha”, cuja 1ª edição data de 1961. "Rocamaranha" aborda as reações do povo açoriano frente ao tratado do rei português D. João V, que regulamentou e promoveu o processo de transferência de milhares de açorianos para as terras do Sul do Brasil durante o século XVIII, e as dificuldades e desmandos experimentados pelos imigrantes no interior dos navios que os transladaram pelo Atlântico. O eixo que norteia o enredo é o romance de Duda e Nanda. Porém, talvez o que mais importa nesta obra é justamente o trabalho de humanização dos personagens anônimos da migração açoriana, seu cotidiano e mentalidades. Já nas primeiras páginas percebemos um conflito de gênero que nos dá uma idéia do papel da esposa açoriana. Ao saber do tratado de D. João V, Ricardo, um dos personagens, desejoso de tentar melhor sorte no Brasil, tenta convencer a esposa a aceitar a viagem, mas cabe a ela a última palavra, a de não migrar, a de não abandonar o solo onde nasceu, ainda que com todas as dificuldades que neste havia. Não dissemos, mas quando Portugal decide por incentivar a emigração dos açorianos, o arquipélago dos Açores vivia a realidade do superpovoamento e da carência de alimentos. Cabia assim à esposa uma decisão que afetaria todo o futuro da sua família, e não uma posição de submissão à vontade do marido. Também é interessante observar o efeito do determinismo religioso sobre a ação das personagens. Ao ser questionado pelo filho dos motivos pelos quais também eles não migrariam, Ricardo responde: "Deus Nosso Senhor quando nos colocou aqui foi sem mais aquela? Não faz ele tudo bem medido e pesado? Então é de ver que tinha lá um propósito, pondo a gente a viver neste canto do mundo. Se ele nos queria açorianos, vamos nós passar a brasileiros? É isto de boa razão?" Este mesmo determinismo aparece em outros momentos do livro, principalmente quando o autor retrata as condições a que eram submetidos os emigrantes no interior dos navios, sujeitos às doenças, aos ambientes insalubres e às inúmeras proibições de relações sociais. Uma das personagens chega a comparar as condições a que estavam submetidos os passageiros às dos escravos em um navio negreiro. Importante destacar também a observação que a personagem Maria Amália, esposa de Ricardo, faz a respeito daquilo que entende por pátria. Ao se referir ao Brasil, diz: "seja como for, não é terra açoriana, não é nossa pátria... e ainda que seja, vá lá, pode bem ser, que o valor de Portugal anda rodeando o mundo, mas assim como assim nosso natural não é!" Ou seja, a noção de pátria enquanto solo de origem, de nascença, e não de unidade jurídica. Apesar de se constituir como epopéia, "Rocamaranha" não esconde conflitos sociais e mazelas históricas. Não procura construir uma "idade do ouro", pelo contrário, mostra claramente as carências dos açorianos e a desorganização administrativa portuguesa, que em muitos casos não cumpriu com suas promessas de apoiar integralmente todas as famílias açorianas em território brasileiro, dando-lhes a posse de sesmarias, ferramentas para o trabalho agrícola e ajuda de custo. E são estes detalhes, além da qualidade literária e linguística do texto, recuperando expressões da cultura açorianas, que tornam esta pequena novela um importante referencial na nossa literatura e um documento para as reflexões da historiografia catarinense. |
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