Adolfo Boos Júnior: “Não se faz ficção por ficção” |
Em plena atividade literária, Adolfo Boos Júnior é autor de uma obra densa e consistente. Em julho de 2009 recebeu a equipe do Sarau Eletrônico em sua residência, no bairro de Coqueiros, Florianópolis. Muito bem humorado, transformou o que era para ser uma entrevista, em longo e agradável bate-papo. Antes mesmo de ligarmos o gravador, disparou a falar a respeito da sua história com o Grupo Sul, e da amizade que priva com o casal Salim Miguel e Eglê Malheiros. Revelou ainda aspectos da sua biografia, da sua trajetória como bancário no Nordeste brasileiro, do seu compromisso ético com a literatura e do seu envolvimento com a fé espírita. “Não se faz ficção por ficção” O escritor Adolfo Boos Júnior, apesar de não ter sido um dos fundadores do Círculo de Arte Moderna de Santa Catarina, o Grupo Sul (participou dele quando este já estava quase encerrando suas atividades, na década de 1950), carrega na sua obra o espírito daquele movimento, seja por seu caráter de experimentação, seja na radicalidade da sua proposta artística. Para Boos, em entrevista concedida ao Jornal Rascunho, “o escritor não tem que descer ao patamar do leitor, ele tem que trazer o leitor mais para perto da sua linguagem”. Ou seja, da mesma forma como os modernistas do Grupo Sul, na literatura de Boos o que importa é o uso que se faz da linguagem associado àquilo que se tem a dizer, o rigor estético e social do texto, sem concessões aos leitores e ao mercado editorial. (Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Darlan Jevaer Schmitt) Nosso interesse, ao realizarmos estas entrevistas para o Sarau Eletrônico, é constituir um acervo documental a respeito da memória da literatura catarinense. Assim, importa-nos saber a respeito da vida, da obra e sobre o que pensam os escritores que entrevistamos... Tudo o que sei fazer em literatura, devo ao Grupo Sul. Foi ele que me recebeu e ali me senti bem à vontade. Isso significa que tudo o que sou, indiretamente devo ao Salim Miguel, alguém que é mais do que um amigo. “Teodora & Cia” foi editado em 1956 pelo Grupo Sul. De lá para cá nossa amizade foi ficando permanente. Em 1964 fui parar na Bahia e o Salim foi preso pela ditadura. Quando voltei, vim morar nesta casa (sua residência no bairro Coqueiros, em Florianópolis, local onde se gravou esta entrevista) e resolvi ter cachorros. O meu sonhar é desmedido, não tem parâmetros, não tem ninguém que me contém, e acabei envolvido com exposição de cães. Nessa época fui trabalhar no mesmo prédio da Angência Nacional, onde o Salim trabalhava. Mesmo prédio e mesmo andar! E nos reencontramos, sem que nos tivéssemos procurado! O Salim me saudou com aquela secura dele, sem a menor efusão: “Oba!” – como se a gente tivesse se separado na véspera. Tinha acontecido uma revolução no meio! (Risos). Olhei para ele e disse: “Oba!” E desde então o nosso convívio é praticamente constante. A Eglê Malheiros é uma mulher maravilhosa, sacrificou-se, uma bela poeta, de uma sensibilidade extraordinária. O romance “Burabas” estava sendo soprado a minha vaidade por um cidadão, estudioso sobre o Contestado, mas que nunca escreveu nada, um major reformado aqui da nossa força pública e que foi delegado naquela região. Ele me trouxe um monte de coisas que não estão no “mercado” a respeito do Contestado. Inclusive, as trinta páginas finais do diário de guerra do general Setembrino, uma raridade que ele mandou buscar na Biblioteca Nacional. As fontes consultadas sobre o final da guerra são muito imprecisas, e eu não tinha nada escrito sobre o General Setembrino e pelo bando de guerrilheiros. Queixei-me com a Eglê. Ela me perguntou: “como é que vai o livro sobre o Contestado?” “Ah, está parado! Pesquisei, todo mundo se repete e eu não tenho mais do que trinta linhas alinhavadas.” E ela disse: “Boos, para um ficcionista, trinta linhas é um prato cheio.” Nunca recebi um conselho tão bom na minha vida! E é verdade! Aí foi só mergulhar1. Como conheceste o Salim Miguel? Eu estava uma noite com dois grandes amigos meus, um ainda vivo, mora aqui, o Ubaldo Santos, que não é da área literária, e o outro estava se ensaiando também, era o mais moço dos três, que depois deixou algum nome no cinema, faleceu muito cedo no Rio de Janeiro, o Marcos Farias. Ele foi diretor de um dos episódios de “Cinco vezes favela” (1962). E em uma daquelas nossas andanças pelo centro da cidade, madrugada, naquele tempo a cidade era segura, podíamos conviver com todo mundo, a cidade era muito querida, andávamos lá pelos fundos do Mercado Público, na direção de quem vai para a Praça XV. Onde hoje temos uma loja de eletrodomésticos, havia um restaurante chamado Foguinho. Na frente era um bar, depois tinha dois ou três degraus – um negócio muito suntuoso – e, lá dentro, por trás de um reposteiro verde e amarelo, de veludo (Risos), tinha um restaurante que era inacessível a nossa bolsa de estudantes. E eu, o Ubaldo e o Marcos costumávamos dar a última passada por ali, ficávamos ali no balcão para tomar a saideira e depois cada um tomava seu rumo. Morávamos em locais diferentes, ônibus não havia depois de uma certa hora, dinheiro para o táxi também não havia, então tínhamos que bater perna. E neste local estava um grupo, conversando em uma mesa, e no meio desse grupo estava um primo meu, que foi o capista do meu primeiro livro, o Hugo Mund Júnior. Fomos apresentados a turminha dele e ... “senta, senta!” Tinha um baixinho junto que estava completamente “ferrado”, de não conseguir abrir a boca. (Risos). De repente esse baixinho levanta, sobe na cadeira, trepa em cima da mesa e recita uma coisa que eu nunca tinha ouvido em minha vida, que achei maravilhosa e, mais tarde, vim a saber que era o “Poema de sete faces” do Carlos Drummond de Andrade. Então tu vês, madrugada, o sol querendo passar por cima do morro, a baía começando a clarear e um cara trepado em cima de uma mesa recitando o “Poema de sete faces”! Isto é inesquecível! E a conversa derivou para o “ele gosta de escrever”. Acabei confessando – confissões de bêbado! – que eu tinha alguma coisa escrita. Nesse tempo o Grupo Sul já estava constituído? Já estava constituído. Eram os malucos cabeludos. Minha tia tinha horror. Ela, que hoje é nome de rua aqui em Coqueiros, à época professora afamada, tinha horror a esse pessoal. Eu tinha fama de ser bom de redação escolar, já cometia as minhas historinhas. Naquelas alturas, perguntaram-me o que eu fazia e se eu tinha alguma coisa escrita. Disse que tinha, e no dia seguinte o Hugo Mund Júnior me encontrou na rua, no centro da cidade, mostrei um conto, manuscrito, que está no “Teodora & Cia”, chamado “Fim”. Ele me disse: “me empresta?”. Ele mostrou para o Salim, que quis me conhecer. Aí só posso acrescentar: bem feito para a literatura de Santa Catarina! (Risos). Ali começou! Ali fui conhecer Drummond, babar em cima de Graciliano Ramos, que eu não conhecia, Jorge Amado... Quando jovem, nós morávamos todos em um casarão dividido em três partes... Onde ficava esta casa? Na Rua Bocaiúva, aqui em Florianópolis, na esquina com o Largo São Sebastião. E a minha tia dizia que Jorge Amado jamais entraria naquela casa. Então veja, era um clima totalmente adverso! Muito mais tarde, já com o vírus podendo ser considerado uma doença permanente, eu estava lá em baixo, no meu escritório – tenho um escritório que não mostro para ninguém, onde tenho meu “micro”, uma escrivaninha que não tem mais lugar para colocar papel – , no tempo em que eu tinha uma máquina de escrever daquelas grandes, uma IBM, e, meu pai, quando vinha, entrava pela lateral, porque não tínhamos portão com grades – o bairro era seguro – , vinha tomar um café, pegar qualquer coisa, e um dia ele passou e me viu: “O que estás fazendo?” “Estou escrevendo.” “Larga disso! Isso não dá camisa para ninguém!” Então era esse o clima, e eu sobrevivi! (Risos) Tudo me levando para o lado negativo. Quando souberam que eu estava metido com o Grupo Sul, então foi um... “Vamos prender os desgraçados, aquela turma de comunistas cabeludos...” E realmente tenho algo no sangue, pode até ser superstição, mas é algo dentro de mim, um apelo para a coisa. Meu primeiro emprego foi numa loja de ferragens da Conselheiro Mafra, meu pai que me levou, ele tinha jogado futebol com o dono da loja. Fui trabalhar lá! Um mês depois, ou dois, cai do meu lado, na mesma seção em que eu estava trabalhando, um figura baixinha, sempre de gola levantada, introspectivo, e por incrível que pareça, fizemos amizade. Saíamos sempre juntos para tomar café, quinze minutos pela manhã e quinze minutos pela tarde. Fiz uma amizade muito forte com essa pessoa, ao ponto de ser seu confidente. Ele me contou uma história em que ele era foragido da Polícia Federal pois militava no Partido Comunista do Brasil. Ele era bem mais velho do que eu, devia ter pelo menos o dobro da minha idade. Mas fizemos uma amizade espetacular. Ele me mostrou certos ângulos da vida que eu não tinha noção, até porque eu vinha de uma família pequeno burguesa. Minhas tias professoras, os tios trabalhando em lojas, meu pai era jogador de futebol afamado, jogava no Avaí – não era o Adolfinho de gerações passadas, não; década de 30. Meu pai jogou até 1935... 36... E a profissão dele era esta mesmo? Jogador de futebol? Ele era alfaiate. Tinha uma alfaiataria em casa. E naquele meio cresce o primeiro neto homem, já estigmatizado pelo destino, porque eu era gago. Levei um susto aos dois anos de idade. Toda criança, quando muito pequena, gagueja porque atropela as palavras. O raciocínio é mais rápido do que a fala, mas acharam que a gagueira veio do susto. Fiquei com aquele temor de falar, de me dirigir a uma pessoa estranha, e isso tudo era contrabalançado enquanto estive no curso primário. Minha tia era a professora e aliviava pro meu lado. Mas quando fui para o Colégio Catarinense, tive que fazer uma opção: ou aprendia a falar, ou ia passar o resto da vida brigando ou trocando porrada com os outros. Riam de mim, eu ia pra cima, dando e apanhando! (Risos). Mas a gente superou isso. Depois fui para a Bahia, onde fiquei dez anos, caçando, pescando, consolidando a vocação de contador de histórias. Vocês podem ver que sou um tímido e falo pouco. (Risos) Disseste que praticavas alguns textos antes de conhecer o Grupo Sul, porém foi neste grupo que começaste a conhecer alguns autores, como o Graciliano Ramos. Mas o que lias antes? Qual a tua memória mais antiga de autores? Aquela coleção “Terra, Mar e Ar”, que tinha as aventuras do Tarzan. Então eram livros assim, que minha mãe lia. Não tinha uma literatura de se mencionar. Fui aprender a ler e a conhecer autores, como Jorge Amado, Graciliano Ramos – que foi um deslumbramento! Como é que uma pessoa pode escrever sequinho assim? – no Grupo Sul. E “Teodora” tem muito dele. Fui muito influenciado pelo Graciliano. Depois fui caindo no meu estilo, que é mais caudaloso. E James Joyce? Não. Estou devendo uma releitura do “Ulisses”, porque o li há muito tempo e não aproveitei quase nada, como satisfação. Aliás, tenho buracos negros na minha formação literária que hoje a gente pode relutar como irrecuperáveis. Minha formação foi feita de atropelos. Aquela dualidade de ser escritor e bancário atrapalhou muito. Perdi muita coisa na minha bilbioteca, deixei de comprar livros. Calcula, em 1965 fui trabalhar em uma cidade no interior da Bahia, Canavieiras, no litoral sul, que não tinha luz elétrica! A luz era de um gerador que funcionava das 18 às 22 horas. Depois tínhamos que ficar com um candeeiro. Lá não tinha jornal, não tinha rádio – só um serviço de alto-falante – e não tinha televisão. Então a minha defasagem foi imensa. De lá fui para Caetité. De Caetité, quando estava pronto para vir embora, surgiu a oportunidade de comandar um grupo de trabalho para regularizar o fundo de garantia em Paulo Afonso, no extremo norte da Bahia. Então passei dez anos na Bahia, culturalmente indo para trás. Ganhei em termos de vivência, e isso foi bom! Sempre fui pescador, e lá pesquei de jangada. Quando fui para Caetité, transformei-me em caçador. E em 1975 eu disse “chega, vamos para o Sul, estou cansado dessa vida”. Nós percebemos que, de fato, há um interregno muito grande entre o “Teodora e Cia” e teus outros livros. E o “Quadrilátero”... Este também tem uma história gozadíssima, porque nasceu sob um signo e acabou saindo outra coisa... Já que tocas no “Quadrilátero”, vamos falar dele. Normalmente os livros que tratam da imigração em Santa Catarina, olham para o imigrante na perspectiva do herói, do homérico. Já em “Quadrilátero” temos a perspectiva humana, visceral e até mesmo escatológica da imigração. Pensei justamente num romance que fosse o oposto. Deixar de ser uma epopéia para ser aquela colonização a que meu avô se referia. Meu avô já nasceu em Brusque, na Guabiruba, e minha avó veio pequena, ainda de colo, da Polônia, na época em que a Polônia era dominada pela Rússia. Até hoje não sei se minha avó era russa ou polonesa. Então eu queria falar daquela colonização que não deu certo. E há provas e mais provas disso no nosso Estado. Aqui perto de Nova Trento teve uma, para onde o pai do Salim emigrou, como sírio-libanês, e não deu certo, faliu. Geralmente aquelas companhias de terras jogavam o cara lá e esqueciam dele. Eu queria uma que se aproximasse daquilo que era contado na minha família. Aquela luta quase improfícua, os caras abandonados, dependendo do rio, sem ter estrada etc. E aquilo foi um tipo de bola de neve. Começou a crescer, e a crescer... e deu no que deu! O segundo volume do “Quadrilátero”, finalmente, está para ir para as mãos do Carlos Jorge Appel, da Editora Movimento de Porto Alegre. Quanto à história do nome “Quadrilátero”. O livro não tinha nome e eu já tinha feito a primeira e a segunda de quatro partes. Como eu queria mandar para a Bienal Nestlé de 1986 e não tinha nome, na hora de empacotar, como eram quatro – o primeiro volume versa muito sobre o número quatro – resolvi colocar “Quadrilátero”. Agora que estou com um volume pronto com o restante deles, que são os dois últimos volumes, está para ir para o Appel porque ele namora, há muito tempo, com isso de publicar o “Quadrilátero” todo. Nesse meio tempo veio “Um largo, sete memórias”, que para mim é meu melhor livro. Gosto muito desse livro, pela dificuldade de fazermos um livro sobre um personagem de carne e osso sobre o qual quase não temos referências. Foi este o livro em que eu tinha poucas páginas e a Eglê me deu aquele sábio conselho. Agradou-me muito a forma com que consegui contar a história. E mais uma vez a falta de título. Mas é um livro em que consegui me realizar. Este último romance que estou escrevendo é um desafio incrível e não sei como vai acabar! “Quadrilátero” possui muito daquilo que nós chamamos de uma literatura pós-moderna. Ele não tem uma linearidade, trabalha muito com fluxo de consciência – o que vai ser uma característica de toda a tua obra – e os focos narrativos são múltiplos. De onde vem esse estilo? Tens a influência de alguém? Como chegaste a esse tipo de narrativa? Os críticos talvez julguem de forma diferente, mas eu me sinto sob duas influências. Ainda tenho alguma coisa de Graciliano Ramos, mas esta já se diluiu muito. E a influência mais marcante na minha obra é de William Faulkner. Faulkner com toda aquela introspecção, com isto que você mencionou, o fluxo narrativo... Todo mundo tem suas influências, então a gente vai procurar as melhores. (Risos). Começas a ler Faulkner em que momento da tua vida? Comecei a ler Faulkner no tempo do Grupo Sul. Primeiro li “Luz de Agosto”, depois “O Santuário”. Agora mesmo estou lendo um livro dele, pouco divulgado, que estava na minha biblioteca e que há muito tempo não lia. Passei também muito tempo sem ler, muito preocupado em fazer. E esse foi outro erro. Aquela história do cara ser multifacetado, criar cachorro, pescar no Nordeste, virar caçador nada ecológico no interior. Passei muito tempo onde não havia livrarias. Canavieiras, uma cidade que não tinha nem luz elétrica! Pegava mal e mal a rádio Sociedade da Bahia, isso na década de 1960. Depois Paulo Afonso, onde não tinha jornal, não tinha nada, nem cinema! Então, em termos culturais, era um desastre! Mas para mim, em termos de vivência, foi muito bom! Quanto tempo para escrever o “Quadrilátero”? Uns três anos. Apanhei muito! Era a primeira tentativa de romance. O Salim até hoje me goza, diz que sou o único autor brasileiro que faz planta baixa. E tenho que fazer mesmo, um organograma... De repente estou casando pai com filha! (Risos) Praticamente todas as tuas obras tratam de temas históricos. Em “Quadrilátero” temos a imigração em Santa Catarina; em “Um largo, sete memórias”, a escravidão e o início da República; em “Burabas”, a guerra do Contestado; em “Presenças de Pedro Cirilo”, o período de Getúlio Vargas. Como vês esse diálogo entre a história e a literatura? Nunca me marquei em fazer coisas muito situadas. Claro, teve temas específicos, como o do Artista Bittencourt ou o próprio “Burabas”. “Burabas” foi-me incutido pelo Júlio Basadona Dutra, quando estávamos trabalhando na reedição de um livro de um amigo nosso. Ele me emprestou as trinta páginas do diário de campanha do General Setembrino, e com elas consegui fazer coincidir os últimos sete dias de campanha que não batiam nas várias outras fontes consultadas. Ele teve muita paciência comigo, veio aqui em casa me trazer literatura básica. Eu dizia, “Já estou com a história na cabeça, já sei como vou contá-la, mas não tenho nada sobre o Contestado, a não ser o Oswaldo Cabral, que é o mais superficial dos livros que nós temos a respeito. Dali a pouco ele estava aqui em casa com duas sacolas cheias de livros e disse: “te vira!” Depois ele me deu a cópia daquelas páginas que traziam os últimos dias da campanha. Para o livro, era o momento em que eles desciam e penetravam em Santa Maria, que encontraram deserta. Gozado é que descrevi Santa Maria sem nunca ter passado por lá. Tem essas coisas que a gente não consegue explicar. Quando termino o “Burabas”, aquela descrição de Santa Maria ao amanhecer, onde usei uma palavra – catedrálica – que procurei no dicionário e não encontrei. Toda de pedra, enegrecida... Passado algum tempo, o livro já lançado, circulando por aí, vejo uma reportagem na televisão – coisa rara eu ver televisão pela manhã – sobre Colônia, na Alemanha, que depois da destruição da guerra a única coisa que ficou de pé foi a catedral. Na hora em que filmaram a catedral, eu disse “Tá aí!” Minha mulher: “o quê?” “Santa Maria!” A catedral toda, de pedra enegrecida. Menino, será que eu tinha aquilo na cabeça!? Já devo ter visto aquilo em alguma foto, talvez, mas correspondia completamente à ideia que eu tinha daquele covil fechado por aquela montanha monstruosa de pedra que era Santa Maria. Mas não aceitarias a alcunha de romancista histórico? Não, pois acho que trato mais do ser humano do que da história em si. Pelo menos essa é a intenção. A impressão que me dá, enquanto leitor de Boos, é a de que a humanidade pesa. É esta a tua intenção? Que ser humano é este que está nos teus livros? Também acho... muito pessimista, muito interiorizado. Sou um cara que, em casa, incomodo. Gosto de rir, gosto de brincar, mas ao mesmo tempo vou lá para baixo (no seu escritório) e me fecho. Normalmente trabalho, aqui em casa, das nove da manhã – há os intervalos obrigatórios de almoço, uma sonequinha depois – até às dez horas da noite. Posso não estar escrevendo direto, posso estar armando, posso estar relendo alguma coisa para melhorar. Agora, na era do computador, é uma maravilha! Antigamente a gente tinha que raspar, rasgar, e agora não. Por outro lado, há sempre os dois lados. Em “Burabas”, por exemplo, ao final do livro, o comandante das forças legais, que geralmente vemos como alguém desumano, cruél, faz questão de ver o rosto do seu inimigo, enquanto que o rapaz que está na trincheira não quer ver o rosto do companheiro ao seu lado. Então há essa humanidade presente na tua obra. Acho que o escritor, quando escreve com intenção, com vocação, ele como que faz uma espécie de strip-tease diante do seu público. A não ser nas biografias, onde isso é mais difícil de acontecer, na ficção o autor se apresenta no livro, deixando uma espécie de marca, de digital. Gostaria que falasses sobre teus contos... Na realidade, parei de fazer contos. Estou com um livro de contos pronto. Estava com esses contos na gaveta, e toda vez que vou reler, vou mexer. É como urticária, começou a coçar... E eu queria editar logo, porque estou com um projeto em andamento que é o meu último livro, não tenha dúvida! Vou encerrar minha carreira com este último livro que estou escrevendo. É um livro que nunca pensei que ousaria escrever. Tudo o que fiz de projetos – aquilo que o Salim chama de planta baixa – eu joguei no computador. Ideias para romances que não desenvolvi, e de repente fui abrir meus arquivos e vi que tudo aquilo poderia ser aproveitado em um mesmo livro. Estou me sentindo como o velhinho lá em cima no primeiro dia da criação. (Risos) E do que trata este livro? Ah, não falo! Vais ter que esperar! (Risos). Só estou trabalhando nele. Já tenho um estoque de palestras para o centro espírita, já que sou o único palestrante que lê, os outros falam de improviso. Esta foi uma forma que encontrei para me sentir útil. Fui católico praticante, estudante do Colégio Catarinense, família católica, minha mulher católica. Futebolisticamente todo mundo é Avaí, a esmagadora maioria é Flamengo no Rio. Meu pai jogou muitos anos no Avaí, então tenho uma vida de colocar a camisa, de se pendurar em alambrado e comprar briga. Hoje fico em casa, vendo pela TV, sofrendo pela TV. Mas voltando... Fui descobrir a doutrina espírita muito tarde. Sempre fui dado, e meus livros mostram isso, a premonições. Eu estava fazendo a revisão do livro do Júlio Dutra sobre a obra do nosso amigo Holdemar de Menezes... Estava eu, o meu revisor e ele, na casa dele. E teve um dia, antes de sair para lá, que me virei para minha mulher, por conta de uma contrariedade besta – sou muito malcriado, dado a palavrões – , e digo, “mas porra, parece que tem uma mão que me empurra para trás! Tudo que quero, penso e faço, tenho que fazer duas vezes!” Minha mulher disse, “por que não falas com a Dona Iolanda?” Dona Iolanda é a esposa do Júlio Dutra, que minha mulher conheceu nos tempos de colégio e sabia que era de família espírita. Lá, no lanche da tarde, conversei com a Dona Iolanda. “Tive uma conversa com minha mulher e ela me aconselhou a falar com a senhora.” Ela disse, “vou falar com meu sobrinho” –que é um médico pediatra muito afamado – “e ele vai te dizer para onde tu podes te dirigir.” No dia seguinte eu já tinha a resposta, “ele disse para tu ires na Seara dos Pobres, na Avenida Ivo Silveira, que é perto da tua casa.” Chegou uma segunda-feira e me dispus a ir lá. Entrei, fiquei sentado, e lá no auditório vi um palestrante, muito bom por sinal, depois veio a sessão de passe e eu lá, contraído. Mas a coisa corria com tanta naturalidade, sem aquelas incorporações que eu temia ou gente dando com a cabeça na parede, prova que eu não conhecia nada de espiritismo. O que eu conhecia de doutrina espírita era que tinha um médium muito afamado e que tinha morrido há pouco tempo, o Chico Xavier, e ficava por isso. Voltei na outra quarta-feira, depois passei a ir nas segundas e quartas, a sentar lá atrás, e um dia um cara que trabalhava lá chegou para mim e disse, “por que tu não sentas mais na frente?” Passados uns seis meses eu já estava fazendo parte do pessoal que presta auxílio no passe. Aí já tinha comprado livros, já estava lendo (Allan) Kardec, já estava descobrindo um negócio completamente novo. E eu tinha um antecedente que me marcou profundamente e na hora não entendi... Quando eu estava em Canavieiras, na Bahia, minha mulher levou nove meses para aparecer lá com as crianças. Naquela noite saí com a família, lá em Canavieiras, fui mostrar a cidade, não tinha nada para ver, não tinha nem cinema, nem luz elétrica, já que a luz era fornecida por um gerador. Nesse passeio, na rua principal, tinha uma família sentada num varandão e o cara era tabelião e cliente do banco. Ele estava ali com a sua senhora, uma outra pessoa e uma outra que estava nas sombras do varandão que na hora não distingui, mas que era um empregado do cartório, que tinha o apelido de Mainá. Mainá, em baiano, é pássaro preto. Meu filho se engraçou com a filha dele, Verônica, os dois eram da mesma idade e armaram um auê desgraçado! E a minha senhora, quando chegou, quando colocou o pé dentro de casa, me disse, “teu avô faleceu”. O velho era ligadão comigo, porque até a minha juventude fui o único neto homem. Fui criado com zelos excepcionais, de onde derivou a gagueira. “E faleceu de quê?” “Morreu tomando soro.” No dia seguinte, meu expediente era das sete à uma hora, mas à tarde o banco tinha que ter gente, porque sempre vinha alguém que queria descontar algum cheque, parecia uma quitanda. E apareceu aquele empregado do cartório, que estava nas sombras. Meu contínuo atendeu pela janela e disse, “olha, o Seu Mainá está aí e pede para descontar um cheque”. Atendi, dei o cheque para o rapaz verificar se tinha saldo e, antes de eu ir à casa forte pegar o dinheiro, já que os caixas estavam fechados, ele me diz, “como é que vai o menino?” – meu filho. “Vai bem!” “Gostei dele, muito vivo, muito esperto, bem saudável!” “É, saudável de mais!” Fui lá dentro, peguei o dinheiro e, quando retornei, tinha acontecido uma coisa: a minha mão não conseguia se aproximar da dele. Nós estávamos em pé no meio da sala de contabilidade. Quis entregar o dinheiro, mas não consegui. E ele duro! Levei um cagaço: “esse cara vai ter um troço aqui!” Com as mãos ele me fez sinal para ir à gerência. Quando ele disse, anteriormente, que meu filho era muito vivo, respondi, “alguém me disse que ele trazia muita coisa do meu sogro”. Essa foi uma conversa que saiu sem querer. Fui para a gerência, fiquei apavorado, sentei na minha mesa, ele chegou na minha frente, duro, e disse, “o seu sogro é um homem alto, magro, cabelos brancos, olhos azuis penetrantes.” Eu digo, “negativo, meu sogro é baixinho, loiro, sírio, meio calvo e olhar mortiço”. Ele fez como que não ouviu e disse, “neste momento ele está entrando numa casa, que fica num largo, que tem um varadão do lado direito, todo envidraçado”. Descreveu a casa do meu avô, na Quintino Bocaiúva. Não era o meu sogro, era meu avô que ele viu. Essa foi a primeira manifestação mediúnica que eu vi, que merecia todo crédito porque o cara nunca andou por aqui, não me conhecia antes, nada. Ele descreveu meu avô e a casa dele, e eu joguei fora essa oportunidade de me instruir. E um dia, lá com a Dona Lurdes, comentando a palestra de alguém, que estava recém começando a palestrar, eu digo, “uma das coisas que tenho visto que falta ao palestrante, é trazer o ensinamento para o dia de hoje, para dar um sentido prático à religião.” Especialmente a doutrina espírita, que tem uma função social muito bem definida. Ela presta assistência nessas favelas... Nós temos berçário, jardim de infância, sopa para os velhinhos... E todo mundo faz as palestras muito centradas na letra do livro. Um cara me escutou falar isso e perguntou se eu não queria fazer palestras. “Tu estás doido? Não faço!” Aí ele me ligou, veio aqui em casa, conversou comigo. Eu disse, “tudo bem, mas tem uma coisa: não falo de improviso. Vou ler.” Eles acham que não se deve ler nas palestras porque dá uma ideia de insegurança. Segurança ou insegurança, o que eu não posso é ficar gaguejando. (Risos) Topei e fiquei. Sinto-me útil e faço uma palestra por mês. E sobre o que falas? Falo sobre o Evangelho, conforme foi compilado pelo Kardec. Então é um negócio fácil de trazer para os dias de hoje, para os problemas de caridade, de beneficiência. E a gagueira? A gagueira foi em função de um susto que levei quando eu tinha dois anos de idade. Eu era o primeiro neto homem, e nós morávamos na rua Bocaiuva, lá na Baía Norte, e os fundos da casa davam para a praia. Naquele tempo entravam mais navios aqui no porto, o Carl Hoepcke, o Anna, o Max e mais os da costeira, os pequenos. E quando eles chegava à altura da ponte, da ponta do Leal, apitavam para chamar o cara que era responsável pela carga e descarga dos navios lá da alfândega. Eu poderia estar brincando no quintal do meu avô, que era meia quadra – minha avó foi uma das primeiras mulheres em Florianópolis a vender flores e folhagens – e tinha um jardim grande, frondoso, mas tocava o apito do vapor, eu fugiu para dentro de casa! Corria como o Diabo corre da cruz! Numa noite, meu pai e minha mãe estavam jogando cartas com meus avós, um jogo alemão chamado sessenta e seis. Eu já estava deitado, quando uma cabeça apareceu na vidraça e imitou o apito do navio, “buuuuu...” Dei um berro terrível! Vieram todos correndo para ver o que tinha acontecido, me viram chorando, e me mandaram dormir. Eu tinha dois anos. No dia seguinte alguém percebeu que eu estava gaguejando mais do que o habitual. Toda criança com dois anos de idade, que está aprendendo a falar, gagueja. Ela raciocina mais ligeiro do que articula a palavra, e aí se aropela. Começaram a achar que a gagueira veio por causa do cagaço que tinham me dado. Fui para o grupo escolar Lauro Müller pelas mãos da minha tia, que era professora, onde fiz a terceira série. Não fiz a quarta série. Fiz o curso de admissão e fui para o Colégio Catarinense. Ali acabou a moleza, não tinha mais a titia. Porque minha tia, quando me levava para uma professora, já dizia, “escrever, escreve tudo; agora, não manda ler porque ele é gago!” Então cresci sob este estigma. No colégio, quem ria, apanhava. Comecei a bater e a apanhar! (Risos) Até que a primeira garota começou a se interessar por mim, fui falar com ela e ela riu de mim. Aí tive que dominar a coisa. Ainda hoje, quando fico nervoso ou prego uma mentira para a mulher, gaguejo. (Risos) Gostaria de retornar a uma questão. O Grupo Sul teve um papel muito importante e revelou muitos nomes, não só na literatura, mas nas artes de uma forma geral. Na tua opinião, qual o legado desse grupo? Um legado teria que deixar. Ele foi presumivelmente o pioneiro. Depois do Grupo Sul veio o Grupo Litoral, dos irmãos Apóstolo, que também acabou mas deixou um recado menor. E hoje não há um movimento organizado, todos são francoatiradores. O legado do Grupo Sul foi ter quebrado um conceito de arte que era típico de província. Ele inovou! Veio o Marques Rebelo fazer exposição de arte moderna. Teve as incursões no teatro, que foram marcantes; coisa de amador, mas quem encenou Sartre, pela primeira vez no Brasil, foi o Grupo Sul, com as “Estátuas Volantes”. Na poesia todos achavam que aquilo era deboche, idiotice, mas no final começaram a aceitar. Havia aquelas figuras que tinha cultura sólida, mesmo, Salim Miguel, Eglê Malheiros, Ody Fraga, Aníbal Nunes Pires – que foi um incentivador de mão cheia – , Hugo Mund – bom desenhista, bom gravador, que depois que foi para Brasília, derivou para a poesia – , Walmor Cardoso da Silva... Mas a questão foi quebrar o gelo, abrir caminhos. O grupo tinha uma página sobre arte no jornal... Foi criticadíssimo, mas faz parte do jogo, eles estavam querendo isso mesmo, sacudir a província! Eu já peguei o grupo quando ele estava caminhando para o seu final. E por que ele terminou? Por determinação do Salim, da Eglê, do Anibal... O recado foi dado! Lendo tuas entrevistas e os comentários a respeito da tua obra, publicados nos jornais, percebemos sempre a questão da relação entre o escritor Adolfo Boos Júnior e seu leitor, no sentido de classificar teu texto como difícil. Particularmente, sempre tive a impressão que impões uma certa pedagogia ao teu leitor, que começa a ler uma obra e tem dificuldade em apreendê-la, mas depois que a apreende, recebe um grande presente. Para ser franco – e isso até seria bom falar em off, mas estamos aqui para jogar claro – tenho a impressão que muita gente me acha difícil, isso é fato consumado! Mas quando começo um conto, um livro, vou te confessar uma coisa e você publique se quiser: vou perder leitores, mas que se dane o leitor. Acho que se eu fizer concessões, estarei prestando um desserviço ao leitor. Tenho que trazer o leitor para o meu livro, para ele me entender. É claro que se você já tem a preocupação de facilitar as coisas, você vai empobrecer o seu texto, você vai fazer concessões. Acho que não se deve fazer concessões! O que você não deve é se tornar difícil por se tornar difícil. Acho que o que menos interessa na literatura, sob o ponto de vista do personagem, é você mostrar que ele é branco ou negro, alto ou baixo, gago... Interessa mostrar o interior dele. E o interior é sempre mais complexo... Mais complexo! Mas é bom descobrirmos as pessoas como são. Nós fazemos isso na vida prática! Quantas vezes chegamos em uma repartição e xingamos o atendente porque não fomos atendidos. Mas paramos para pensar o que aconteceu com ele?. Acho que as pessoas são o que são por dentro. Por isso o ser humano é o ser humano. Nós temos sentimentos, nós temos reações, temos coisas atávicas que não explicamos! Por que escrever? Fui alfabetizado muito cedo, como já falei. Comecei a ler antes de ir para a escola. Naquele tempo circulava uma revista chamada Gibi Mensal, que meu avô comprava para dar para o meu tio, que era quatro anos mais velho que eu. Ele lia aquelas histórias do Tarzan, Mandrake , Flash Gordon, aqueles heróis da década de 40, e depois passava para mim. Eu era alfabetizado desde cedo, então para mim, ler aquelas histórias era vivenciá-las, porque eu brincava sozinho num quintal enorme, um latifúndio, meia quadra da Bocaiuva. Ficava pulando de árvore em árvore, os cachorros do meu avô eram os leões com quem eu lutava. Mas como o gibi era mensal, levava um mês para voltar, e aquelas aventuras cansavam, então comecei a inventar. Dali para escrever foi um passo. Desenvolvi a imaginação. O escritor tem um papel social? Ele não deve ser moralista, mas tem uma função social, a de desvendar mundos que muitas vezes o leitor desconhece. Não é obrigatório apresentar ações, mas desvendar esses universos, especialmente na sociedade moderna, em que há tanto desajuste. Nós vivemos uma fase de paradoxos. A arte pela arte já é um conceito que não pertence nem mais ao século passado. Uma coisa que chama a atenção; percebo que o personagem Pedro aparece sucessivamente: Quadrilátero, Burabas, Presença de Pedro Cirilo, Um largo, sete memórias... Por que o Pedro? Não sei, e para mim isso é uma surpresa! (Risos) Agora me encurralaste! (Risos) Como vês o cenário literário e artístico em Florianópolis, hoje? Nomes que despontam? Uma literatura que vale a pena? Acho que a coisa está muito dispersa. Tomo pouco conhecimento, e nos jornais não se vê quase nada. Os jornais não têm mais suplementos literários. Quando há um grupo, tem-se sempre um pouco mais de força para conseguir uma revista, um jornal, essas coisas, mas acho que há muito dispersão. Sei que tem gente trabalhando, mas o pessoal parece que está correndo mais para o lado da poesia. Porque a poesia é mais minimalista, o cara pode pegar o cantinho de uma folha de jornal, o livro de poesia é uma coisa mais reduzida. Em Santa Catarina não vejo um movimento com a capacidade de mobilizar uma mocidade. E a poesia nunca te entusiasmou, enquanto produção? Já fui tentado a fazer poesia, mas depois vi que a minha área é mesmo a prosa, e acho hoje que sou mais romancista que contista. Agora mesmo estou escrevendo esse romance... Mas o bom de tudo é que a minha família, embora não se envolva, de jeito nenhum, com literatura, pelo menos essa que profiro, que elaboro, dá-me inteira liberdade para criar. Nesta idade, especialmente, já não sou mais convocado para fazer compras ou para ir pra lá e pra cá. Então fico lá embaixo, no meu escritório, e não tolero nem que a faxineira ultrapasse a soleira da porta. Mas acho que a literatura foi um dom que recebi, e sou muito grato por ter nascido escritor, ou me feito escritor, se bom ou mau é outra história. Não podia ter acontecido coisa melhor para mim! Mas o que mexe com a literatura não é o Salim, não é o Boos, mas é a juventude, é a turma do experimentalismo. Claro que temos excessos, coisa da juventude! Nem todo mundo nasce pra jogar direto, passa primeiro pelos aspirantes. Mas precisa de um movimento que reúna essa mocidade. Todo mundo vai apelar para a poesia? Acha que é mais fácil? Eu acho que é mais difícil! Só para trazer a coisa para os dias de hoje, o Jorge Appel esteve aqui para participar do julgamento dos contos do concurso Cruz e Sousa. Se não me engano, só de contos foram mais de 300 obras inscritas! Repare bem, podia ter um prêmio mais regional, do estado. Tinha aquele programa, que morreu de parto, de levar escritores a escolas. Estive em Blumenau e em uma outra escola daqui. Teve uma professora, de um grupo escolar não muito distante daqui de casa, que era conhecida de um amigo meu, e ele me levou até ela, “O senhor vai falar com meus alunos.” “Mas falar o que professora? Façamos assim, a senhora escolhe um conto desse meu livrinho, trabalha com eles, depois me chama para eu ficar sabendo o que eles acharam, e eu falo do porquê da minha intenção de fazer assim e não fazer assado.” “Ai, que bom!” Ela marcou o dia, e lá fui eu. Cheguei lá, me aparesentaram e eu disse, “Vocês leram esse conto aqui, o que acharam?” A turma era de 2º Grau. Fiz a pergunta para várias pessoas até que a professora disse, “O senhor vai me desculpar, mas nós achamos o conto difícil. O senhor imagine que eu própria tive que ir ao dicionário para saber o que significava premonição.” Eu disse, “Bem, então vamos dar a tônica do nosso encontro...” Fiz algumas anedotas sobre escritores, o sinal bateu em meu socorro e eu corri!” Outra vez fomos chamados eu, Flávio José Cardozo, Alcides Buss, Chico Pereira – que era o dono da Editora Garapuvu – , para irmos a Fundação Franklin Cascaes, logo depois da saída do Salim Miguel, que dirigiu a Fundação, e participarmos de uma reunião do programa “O autor vai à escola”. Tem aquele modelo, lá do Rio Grande do Sul, que deu certo. Bem, o ensino daqui não deve ser muito diferente. Nós podemos começar em um ponto mais abaixo, mas é uma coisa a ser copiada. Fizemos a reunião. Era uma mesa redonda, a professora sentou em uma extremidade, cinco ou seis escritores se acotovelaram no restante da mesa e discutimos como seria feito, qual a abrangência, se era o estado todo ou se íamos começar em uma região primeiro para testar o modelo e ver se funcionava. A minha proposta foi começar por perto, Florianópolis, depois Blumenau, e depois ampliar. A professora então tomou a palavra, agradeceu a nossa presença, disse que já ia encabeçar um movimento e no final do ano faríamos uma festa. Sabe quantos escritoes participaram desse programa? Nenhum! Não decolou! Vai pensar na festa de final de ano? Deixa pra lá, ninguém vive em função de festas ou de cachê! Aqui não decolou, mas o Appel disse que lá foi um sucesso. Nós não ganhamos por quê? Porque nós temos um adversário muito mais difícil pra superar, e que não havia no meu tempo, que é a maldita televisão. A imagem, mesmo que em preto e branco, alguém já disse que vale muito mais do que mil palavras. Os tempos mudaram! Talvez eu esteja martelando uma tecla que já não tem mais razão de ser. Talvez a tática seja diferente, mas tem que debater. Se querem ter leitores, tem que discutir. As tiragens de livros catarinenses, em mil exemplares, são ridículas! Uma cidade como Blumenau, de 300 mil habitantes, consumiria perfeitamente uma edição de 3 mil exemplares. Então qual é o grande problema para o autor catarinense? É a qualidade do texto? Acho que ainda é a falta de público leitor. Porque qualidade, não. Acho que tem gente aqui, com muito mais talento do que muito daquilo que está circulando por aí, mas ficam escondidos. Não há um veículo de divulgação. Qual é o jornal que tem suplemento literário? Aqui não tem! No tempo em que morei em Brusque (fiquei três anos em Blumenau, pedi transferência para Brusque, onde fiquei por oito anos), eu e o Guido Kreuger – o Guido foi o autor do “crime”, porque arrendou um jornal que estava fechado, O Rebate – fizemos o jornal durante mais de um ano. A página central era minha, o jornal só saía aos sábados. Naquela página tinha poesia, crônica e movimentamos... Movimentamos tanto que fomos proibidos de entrar nas indústrias Renaux. O Prêmio Nestlé te premiou duas obras, “Quadrilátero” e “A Companheira Noturna”. O fato desses livros terem sido publicados sob o aval do Prêmio Nestlé, representou algo mais em reconhecimento da obra ou em aumento de leitores? Deve ter representado alguma coisa, mas olha quanto tempo faz! Ganhei um 2º e um 3º lugares. No conto fiquei atrás do Hélio Pólvora, que é um senhor contista! E no romance que foi minha primeira experiência, fiquei em 3º! Eu ainda não tinha a certeza de ter acertado a nota. Como se dá teu processo de criação? Tens a ideia, mas como ela chega ao ponto do livro? A ideia vem quando tu menos espera por ela, e o meu sistema de trabalho é deixar acontecer o processo de gestação, deixando a ideia crescer. A coisa não acontece de repente, a ideia vem e saio correndo para fazer a anotação. Não. Se a ideia for boa, ela volta. Reescreves muito? Terrivelmente! Se for reler, reescrevo. O Salim diz que escrever é saber cortar. Ao ler “Quadrilátero”, chamou-me muito a atenção o foco narrativo, que vive mudando. Tanto, que as vezes tu ficas em dúvida a respeito de quem está falando, e fazemos um exercício conosco mesmo para tentar perceber qual é o personagem que se manifesta em determinado momento. Isso acontece também em “Burabas” e “Presenças de Pedro Cirilo”. Mas em “Um largo, sete memórias” tu fazes algo diferente. Tu identificas as memórias, o personagem que está falando, o que não fazes nas outras obras, onde o leitor que se vire. Fiz isso, realmente, para facilitar ao leitor, já que era um tema mais complexo. Acho que foi por isso, já que não costumo fazê-lo. Acho porém que os outros livros não exigiram tanto. Em “Um largo, sete memórias” há uma troca constante de falas. Sou muito intuitivo, deixo-me guiar pela intuição, como aquele músico que toca de ouvido. Dizes que teu novo livro será também teu último livro. Que sentimento tens quando olhas para tua obra? Orgulho, gratidão. Antigamente eu dizia que era gratidão ao destino, que me fez escritor. Não posso me conceber fazendo outro papel, ou outro ofício. Esse negócio de escrever todo dia, de ler e reler, tem muito de ofício, de artesanato. Sou muito grato. Acho que o destino me premiou de uma forma espetacular. Mesmo naqueles anos em que fui pouco lembrado, em que eu não tinha uma obra consolidada, valeu a pena. Valeu a pena ter nascido! Um ofício que tem uma função social, porque não se faz ficção por ficção. O país está precisando de muita coisa, e se não vier de quem sabe ler e escrever... E o livro deveria ser mais divulgado! Quando comecei no Grupo Sul, a Argentina estava passando por uma grande crise, e trocava-se muita correspondência com as revistas de lá. Havia uma efervescência cultural naquele tempo. Os livros, lá, eram paupérrimos. As capas diferiam muito pouco das folhas internas, e tudo em duas cores: preto e branco. Mas esse é o papel! Acho que é por aí! Tem esses livros muito bem trabalhados, como que se comprar livros fosse como ir à padaria comprar doces! 1Em entrevista concedida ao caderno de Cultura do Diário Catarinense, Florianópolis, em 04 de abril de 2009, Adolfo Boos Jr. refere-se ao fato relacionando-o ao livro “Um Largo, Sete Memórias”: “Eu disse para a Eglê que eu não tinha uma biografia do Bitanca (...) . E ela respondeu: Boos, para quem é ficcionista, cinco linhas é um prato cheio.” |
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