Menu Content/Inhalt
A Terra Estava Vazia e Vaga de Werner Neuert Imprimir E-mail

capaJá havia ouvido o nome do autor em um comentário aqui, outro ali, por um e outro amigo que também insistem em ler o que pelo Vale se escreve. Mas não conhecia nada a respeito do autor. Peguei o volume de capa negra sem ao menos saber que se tratava de um livro de contos. A orelha me dizia que Neuert era um autor do Vale — amigos haviam dito, de Indaial.

A Terra Estava Vazia e Vaga de Wener Neuert

 

Rodrigo Oliveira

(Publicitário e especialista em Estudos Literários)

 

"Não adianta nada ficar escrevendo se não desvendar
os fragmentos podres
ou a luz mais branca."

Werner Neuert





Encontrei um exemplar de
A Terra estava vazia e vaga, de Werner Neuert, em um sebo no centro dacapa cidade. Já havia ouvido o nome do autor em um comentário aqui, outro ali, por um e outro amigo que também insistem em ler o que pelo Vale se escreve. Mas não conhecia nada a respeito do autor. Peguei o volume de capa negra sem ao menos saber que se tratava de um livro de contos. A orelha me dizia que Neuert era um autor do Vale — amigos haviam dito, de Indaial.

 

Na contracapa, branco sobre o preto, estava o que julguei ser um breve excerto de um conto do livro. Traçava a curiosa história de um protagonista sem nome, cidadão aparentemente exemplar, que um dia vai ao parque e encontra São Francisco de Assis. Conversa com o santo e, por isso mesmo, termina posto, pela família, em um hospital psiquiátrico. O santo também acaba lá.

 

O trecho me fez subir as orelhas — se uma pessoa pudesse fazê-lo, como os animais, eu teria certamente feito. Pouco mais tarde vim a descobrir: o breve trecho não era trecho. Era um conto completo. E não dos menores do livro. Em A Terra estava... Neuert é assim. Nunca tarda ao leitor encontrar o ponto final. Mas em muitos dos contos, não se engane o leitor, o texto continua muito além do último ponto. Há sempre algo que segue narrando, nesses textos de Neuert.

 

A obra traz retratos de tipos cotidianos. O cidadão anônimo cuja história muitas vezes se resume à sua miudeza. Ao seu viver e morrer e amar insignificantes. No conto de número 37 — que a maior parte dos contos são assim, anônimos, números apenas, talvez como quem os lê — lemos, na íntegra:

 

"Quando soube que teria pouco tempo de vida, foi correndo comprar flores para Luíza, há muito tempo desejava dar flores a ela".

 

Assim Neuert, com seus mini e microcontos volta e meia nos põe em xeque, nos volta a nós mesmos, refletidos em pálidos e breves momentos entre os tantos afazeres de nossas vidas irrelevantes. Como no 39º conto, em que conhecemos o trabalhador que ao abrir a marmita todos os dias ao meio-dia lembrava da amante e perguntava a si mesmo: "— Será que ela também faria comida pra eu trazer?" É o tipo simples, ou apenas indigno de nota, que parece mais atrair o autor. O esquisito da praça ou estação de qualquer cidade, como seu "Chapéu-de-Flores" (conto 87) que passa o dia a distribuir flores a desconhecidos, ou o homem que realiza o sonho ao comprar uma kombi que passa mais tempo na oficina do que circulando, o outro traído mas que ama incondicionalmente a esposa, o transeunte, o qualquer um, que vive, que goza, que se irrita. Que passa.

 

Neuert divide sua obra em várias partes temáticas, mas o livro pode ser dividido em dois grandes momentos. O primeiro comporta os 129 micro e minicontos sem título. Destes, destaca-se o humor mordaz de 91, em uma única frase: "— Opção sexual o cassete, se eu pudesse optar, seria hetero". A mesma estrutura de piada, simples como um conto de boteco, se repete em 31 e, mais rebuscada, no humor mais ácido de 25, onde um João, preso na ilha de Patmos, resolve, apenas para espantar o tédio, escrever "uns negócio aí", ao que é aconselhado: "—Não vá inventar polêmica". Esse diálogo da ironia ou do sarcasmo com o sacro é também recorrente, em A Terra estava... Retorna, por exemplo, em 76, com o espectador da missa de olhos fixos no Cristo crucificado, para mais tarde, ao retornar ao carro, comentar com a esposa "—Visse que o Jesus tá com o nariz torto?".

 

Mais humanos e viscerais, talvez sejam o conto de número 40, tangenciando a pedofilia dentro de casa, ou o conto 55 com a insegurança e falsa moral falocrática. Dentre esses breves contos, é preciso ainda destacar os de número 65 e 66, sobre livros, letras e diplomas; o encorpado 108 onde o filho orgulhoso apresenta a mãe sua tese de doutorado para receber em resposta "— Para que tantas palavras, meu filho?" e o mais explicitamente metaliterário 83, um dos mais poéticos e destaque deste trecho do livro, que reproduzo na íntegra:

 

"Abre essas palavras. Arranca o que tem lá dentro. Não adianta nada ficar escrevendo se não desvendar os fragmentos podres ou a luz mais branca. Aperta, esmaga com raiva até tirar toda a essência. Depois bebe com serenidade, como um santo. Bebe até cair ou despertar. Mas primeiro: abre essas palavras."

A Terra estava vazia e vaga conta ainda com um segundo momento, onde apresenta contos pouco mais longos, alguns ultrapassando a primeira página. Os contos deixam de ser anônimos, ganham título, ganham nome. Muitos, de pessoas. Aqui o autor parece lançar mão de um texto melhor estruturado, com grande força de imagens, muitas na fonte do surreal ou do fantástico. Neuert troca o impacto pelo envolvimento. O golpe direto e seco pelo enlevo da narrativa. Alguns dos temas se repetem, como em Kombi e Kombi II, Negão, Pedro, José, Luci ou Bach e Putas. Mas o destaque é força com que trabalha o surreal. Ótimos são Coceira com sua protagonista que na falta de um amor, ama-se a si própria até consumir-se; Bom dia borboletas, que traz o dia em que as pessoas começaram a expelir borboletas ao falar; o intrigante Azul onde um homem passa a ver tudo, de repente, em tons de azul. Tudo exceto a morte, que enxerga em cores normais, no cadáver na rua, no pôr-do-sol, na barata morta. O belíssimo e angustiante Seis bilhões, com toda sua falta de espaço, de tempo, de vida, repleto de excessos de tudo, exceto talvez, de paz e de si mesmo. Todos estes, de uma beleza imagética tocante, onde o autor lança mão de mais recursos poéticos e mostra que pode trafegar igualmente entre lagartas e borboletas. Como aquela que, colorida na capa negra criada por Denise Patrício para o volume, se esconde, ainda lagarta, dentro da crisálida. Ou como aquelas, na contracapa do livro, já lepidópteros alados metamorfoseados em cor sobre o fundo negro. A Terra de Neuert é vazia, vaga, mas cheia de borboletas.

 
< Anterior   Próximo >

Artigos já publicados

“o remorso de baltazar serapião”

capa“a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só o diabo e gente a arder tinha destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo do mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.” É assim que inicia o romance “o remorso de baltazar serapião”, do autor português Valter Hugo Mãe e que o Sarau Eletrônico comenta.

Leia mais...