Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy |
Meridiano de Sangue é um western, mas um western visceralmente oposto ao que conhecemos dos filmes de Hollywood e dos incorretos bangue-bangues de espaguete italiano. Não há honra, muito menos heroísmo ou dignidade entre os personagens, e essa ausência de códigos de conduta sequer é questionada ao longo da narrativa. Ninguém sente remorsos ou problematiza o sofrimento do outro pela simples razão de que não existe “o outro”. Meridiano de Sangue: uma injeção de testosterona na literatura Maicon Tenfen Não deixa de ser curioso que dois dos maiores best sellers desta década possam ser lidos como panfletos feministas: os três longos volumes da trilogia Milênio, do sueco Stieg Larsson, e o polêmico O Código Da Vinci, de Dan Brown. No primeiro caso, temos um narrador politicamente correto (e chato!) acostumado a interromper a ação para apresentar dados estatísticos capazes de provar que as mulheres nórdicas ainda são vítimas de violência; no segundo, muito mais ambicioso, somos apresentados a uma narrativa concebida com o firme propósito de revisar a história do cristianismo e nela destacar o papel das lideranças femininas. Nada estranho nisso. Junto a enredos bem amarrados e um texto que “desça redondo”, dotar os personagens de discursos consagrados na atualidade é imprescindível a um romance de sucesso. Essa constatação, entretanto, nos leva a uma pergunta que, devido ao policiamento ideológico atualmente promovido pela academia, está prenhe de ludismo e perigo simultâneos: visto que a retórica das minorias não contaminou apenas os best sellers, mas também uma literatura que se pretenda mais culta e elevada, é justo que questionemos se ainda existiria um romancista disposto a tratar do universo masculino sem a ressalva de dúvidas, culpas e crises de identidade. Em outras palavras: alguém ainda tem coragem de escrever sobre a essência de uma figura tão difamada como o Homem Branco Ocidental, mas escrever com sinceridade, sem paliativos, sem temer rótulos degradantes, do mesmo modo e com o mesmo desprendimento que hoje se escreve sobre as mulheres, os negros e os gays? A resposta é sim, e esse romancista se chama Cormac McCarthy. Apesar de ser publicado há décadas no nosso idioma, McCarthy nunca foi muito conhecido no Brasil. Sempre que se falava nas tendências contemporâneas do romance americano, ocasião em que nomes como Philip Roth, John Updike e Paul Auster são obrigatórios, o de McCarthy ficava escondido pela expressão “e outros”. Essa realidade se inverteu com o sucesso do filme Onde Os Fracos Não Têm Vez, dos Irmãos Coen, baseado num livro nada homônimo de McCarthy. (Nos Estados Unidos, tanto o título do filme quanto do livro é No Country For Old Men. Aqui, enquanto o romance se chama Onde Os Velhos Não Têm Vez, os distribuidores do filme, sabe Deus por quê, substituíram o “Velhos” por um genérico “Fracos”). Naturalmente, os Oscar arrematados pelos Coen foram benéficos a McCarthy e seus leitores. Junto ao livro que deu origem ao filme, edições mais caprichadas dos seus romances ficaram ao alcance das nossas mãos. É o caso de A Estrada, espécie de ficção científica que remonta a trajetória de um pai e um filho em meio ao caos pós-nuclear, e do coringa da coleção, o romance mais denso e representativo de McCarthy, livro que há muito só podia ser encontrado nos sebos (com sorte) ou importado de Portugal: Meridiano de Sangue (Alfaguara/Objetiva, 352 págs.). Desde que o crítico Harold Bloom ombreou McCarthy com Melville e Faulkner no que tange à canônica tradição do romance americano, Meridiano de Sangue tornou-se um artigo de primeira necessidade até agora distante dos leitores brasileiros. Essa recente abundância de boas edições somada às adaptações cinematográficas (A Estrada também chegará aos cinemas nos próximos meses) e ao Prêmio Pulitzer há pouco angariado por McCarthy significam que ele finalmente passará à esquerda da expressão “e outros”? Para a crítica, talvez. Para os leitores? Embora conte histórias agitadas, com personagens fortes e cenas memoráveis, a literatura de McCarthy — ao contrário de um Paul Auster, por exemplo — não possui nenhum facilitador comum aos best sellers, ou seja, não se vale de um texto que “desça redondo” e tampouco dá importância aos discursos da moda. Por causa de um estilo quase bíblico que abusa do polissíndeto e das constantes descrições de carnificinas, não é muito fácil embarcar na obra de McCarthy. Vencida a resistência inicial, todavia, basta virar as páginas e cavalgar no rumo do horizonte. Sim, Meridiano de Sangue é um western, mas um western visceralmente oposto ao que conhecemos dos filmes de Hollywood e dos incorretos bangue-bangues de espaguete italiano. Não há honra, muito menos heroísmo ou dignidade entre os personagens, e essa ausência de códigos de conduta sequer é questionada ao longo da narrativa. Ninguém sente remorsos ou problematiza o sofrimento do outro pela simples razão de que não existe “o outro”. Existe apenas a necessidade de matar, uma necessidade que nem sempre está clara para quem puxa o gatilho e coleciona os escalpos das vítimas. Praticamente não encontramos mulheres no livro, do mesmo modo que não encontramos condições minimamente civilizadas de mediar antagonismos. A violência e a morte são as únicas possibilidades de troca e resolução de conflitos. Embora possua traços de romance histórico, já que McCarthy amparou-se em amplo material de pesquisa para escrevê-lo, Meridiano de Sangue mais parece um bildungsroman às avessas, um romance de formação — ou de deformação, no caso — em que o protagonista passa da juventude à maturidade e, antes de encontrar uma filosofia ou o “sentido da vida”, depara-se com um vazio profundo e incontornável (e o pior: sem se dar conta disso, deixando todas as angústias para o leitor). Desde a primeira página, acompanhamos a trajetória de um personagem identificado apenas como Kid, garoto de 15 anos que foge de casa e torna-se um vadio a caminho do sul. Estamos em 1849-1850. Com o apoio logístico e financeiro de autoridades texanas e mexicanas, forças paramilitares são enviadas para escalpelar a maior quantidade possível dos índios que vivem no sudoeste dos EUA. O objetivo da missão é vago, talvez liberar a área para o garimpo de ouro, mas nada disso diz respeito a Kid, que logo se engaja numa das tropas, liderada pelo mercenário Glanton e por uma das figuras mais enigmáticas de toda a obra de McCarthy: o albino e imberbe Juiz Holden, símbolo do Mal Absoluto, pistoleiro que dança e toca rabeca e afirma que nunca dorme e nunca vai morrer. Matar é o destino do grupo, matar aos outros e a si mesmos, matar primeiro os índios, depois os mexicanos e, numa guinada catártica, os próprios homens que os contrataram para o massacre. Épico com os sinais trocados, Meridiano de Sangue tematiza a adolescência de uma nação que cresceu por meios e motivos equivocados. Depois de lê-lo, fica mais fácil compreender as diversas expedições punitivas que os Estados Unidos promoveram ao redor do mundo, especialmente a loucura da Era Bush. Tudo é relatado com uma ambiguidade desconcertante, e esse é o grande mérito do romance. Culto e apocalíptico, o narrador criado por McCarthy permanece acima dos acontecimentos, não julga, não interfere, não sofre nem se espanta com a redundância das chacinas. Se aprova ou não a barbárie, isso fica por conta do leitor, mas é fato que não se dá ao trabalho de polinizar a trama com correção política, nem mesmo pela boca dos personagens. Seria um erro confundir essa sinceridade narrativa com machismo ou chauvinismo. Testosterona, entretanto, é o que não falta a Meridiano de Sangue. |
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