As suspeitas do sr. Whicher, de Kate Summerscale |
O escritor e doutor em Literatura Maicon Tenfen resenha “As suspeitas do sr. Whicher”, livro reportagem escrito por Kate Summerscale. A obra narra a história real de um dos crimes mais chocantes da Inglaterra vitoriana e do detetive que inspirou grandes mestres da literatura, como Charles Dickens e Arthur Conan Doyle. As suspeitas do sr. Whicher
Maicon Tenfen Inglaterra, 1860. O cenário é uma idílica mansão em Road Hill, pequena cidade ao sul do país. Os personagens são numerosos: partindo de um patriarca ligado ao setor industrial que mora com a esposa e sete filhos – quatro do primeiro e três do segundo casamento – chegaremos aos criados e aos vizinhos sedentos de comentários sobre a vida alheia. Como uma sombra que se estende sobre todos, ainda temos a moral e os rígidos costumes da era vitoriana. Espécie de regra nesses casos, o clima de normalidade cai por terra da forma mais violenta possível. Ao amanhecer do dia 30 de junho, os habitantes da mansão percebem que o berço do menino Saville está vazio. Com apenas três anos, ele já aprendeu a transpor o pequeno obstáculo que o separa da liberdade. Por isso os adultos demoram a se dar conta da tragédia. A babá pensa que o garoto está no quarto da mãe, e a mãe, que acaba de acordar ao lado do marido, pensa que o filho está sob os cuidados da babá. Quando finalmente entendem que Saville não se encontra em nenhum dos cômodos da casa, o desespero se apodera da família e dos agregados. Acaso o menino foi sequestrado? Mas por quê? E por quem? A hipótese é descartada momentos depois, quando o corpo da criança é encontrado numa latrina nos fundos da propriedade. Está com o rosto coberto de sangue, os olhos escurecidos e a garganta cortada de orelha a orelha. “A cabecinha quase foi arrancada”, disse uma das pessoas que viu o cadáver. Os elementos até aqui descritos são tão típicos e funcionais que dificilmente escaparemos da sensação de termos pela frente um romance policial. Por incrível que pareça, porém, o assassinato de Saville aconteceu de verdade. Divulgado nos jornais da época, fez com que os cidadãos de todo um país se mobilizassem em teorias e especulações para resolver o mistério. O caso atravessou décadas e chegou aos nossos dias. Com base no inquérito e em inúmeros periódicos que noticiaram o desdobramento do caso, a escritora e jornalista britânica Kate Summerscale recompôs o crime no livro As suspeitas do sr. Whicher, espécie de reportagem histórica cujo subtítulo em português, autoexplicativo, lança uma isca para o tom policialesco do relato: A história real de um dos crimes mais chocantes da Inglaterra vitoriana e do detetive que inspirou Charles Dickens e Arthur Conan Doyle. Eis uma das teses defendidas no livro: o caso Road Hill ajudou a fundamentar os elementos de um dos gêneros mais populares da literatura moderna. Com efeito, a pesquisa de Summerscale nos apresenta um assassinato hediondo, vários suspeitos, um investigador brilhante, pistas falsas e revelações inesperadas, ou seja, tudo o que poderíamos encontrar num romance policial. A única diferença – e esse é o grande atrativo da obra – é que não estamos lidando com ficção, mas com a mais improvável das realidades. A correta dosagem de citações bibliográficas, as descrições de fotografias antigas, as transcrições de fragmentos de cartas e relatórios, tudo contribui para dar espanto e calor à narrativa. Quem seria capaz de cometer tamanha monstruosidade contra uma criança? Um desconhecido que entrou na mansão durante a noite? Um dos muitos criados da casa? Um membro da família? Antes de responder essas perguntas, seria necessário determinar o local exato em que a morte ocorreu, além do método do assassino. O menino foi estrangulado enquanto estava no berço ou teve o pescoço cortado a caminho da latrina? E a mancha de sangue encontrada na camisola de uma das irmãs de Saville? Produto das regras mensais da adolescente ou contato com os ferimentos do menino? A partir de um determinado instante, parece que todos os habitantes da mansão possuem algum envolvimento com o crime. Como era de se esperar, a polícia local não possui preparo técnico adequado para lidar com o caso, muito menos ético, já que as autoridades, por pura conveniência, evitam interrogar os pais e os irmãos de Saville, reservando sua desconfiança à criadagem e aos vizinhos pobres. Desse ponto em diante, Sommerscale e seu livro se tornam mais ambiciosos. Mais do que desvendar os lances e as motivações de um infanticídio, pretendem revelar muitos dos preconceitos que condicionavam o funcionamento de uma sociedade claramente dividida entre nobres e plebeus. Esse objetivo é amplificado quando chega de Londres o Whicher do título, de longe a figura mais notável do livro. Filho de lavradores que prestou concurso para a polícia aos 22 anos, Jack Whicher progrediu na carreira e acabou se tornando membro da primeira equipe de detetives profissionais formada pela Scotland Yard. Naquela época, policiais à paisana não eram comuns na Inglaterra, cujo povo, conforme enfatizado no livro, “tinha horror à vigilância”. Desse modo, alcunhas como espião e bisbilhoteiro rapidamente caíam sobre os agentes que se infiltravam nas multidões para desvendar estupros e assassinatos (na realidade, como sugere Sommerscale, policiais disfarçados podiam ser excelentes repressores das classes subalternas). Mas Whicher, descrito como o perfeito protótipo de um Holmes ou um Dupin, não parece interessado em fazer pose com o título de detetive. Assim que desembarca em Road Hill arregaça as mangas e se empenha numa investigação profunda, escrutinando o cenário do crime e interrogando todas as pessoas ligadas à vítima, fossem ricas ou pobres. Como resultado, logo fez com que segredos inconvenientes viessem à tona, e segredos que, no mais das vezes, pouco ou nada tinham a ver com o assassinato de Saville. Por trás de uma cortina de harmonia e felicidade campestre, surge o retrato de uma época pródiga em esconder suas mazelas coletivas e individuais. Apesar da esmerada pesquisa iconográfica e da presença dos retratos de praticamente todos os membros da família de Saville, os leitores da primeira edição inglesa ficaram sem conhecer o rosto de Whicher. Graças à contribuição de um leitor, a foto do detetive passou a figurar nas edições posteriores, inclusive a brasileira. Não deixa de ser um exercício interessante imaginar as cenas que esse herói do pensamento dedutivo, com olhos “tão claros que beiram a transparência”, protagonizou. Além dos percalços impostos pelo status quo e pelo constante e impiedoso julgamento da opinião pública, uma série infinda de hipóteses, intuições e equívocos tomou conta de sua vida até o desvendamento do caso – um desvendamento tão contraditório e surpreendente quanto o desfecho de um romance policial. As suspeitas do sr. Whicher não é um livro necessariamente indicado a quem gosta de tramas policiais, mas, ao contrário, a quem não gosta e acha que as novelas de detetive jamais aconteceriam na vida real. |
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