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Mindlin, um mecenas que não fazia nada sem alegria Imprimir E-mail

por Antonio Gonçalves Filho, para o jornal O Estado de S. Paulo

 O ex-libris de José Mindlin, selo pessoal que o bibliófilo colocou em sua coleção de livros raros, não poderia identificar melhor quem foi o empresário, intelectual e acadêmico morto neste domingo, 28, em São Paulo, aos 95 anos, após prolongada doença: "Je ne fait rien sans gayeté" (Não faço nada sem alegria).

De fato, quem teve o privilégio de conhecer e conviver com Mindlin, sabe que caiu bem na vida do maior colecionador de livros do Brasil a escolha dessa máxima de Montaigne, retirada de seus Ensaios (do qual sua biblioteca tem um raríssimo exemplar, de 1588, que pertenceu ao crítico Saint-Beuve). Talvez a única coisa que fez sem alegria foi deixar este mundo sem ver concluído o prédio da Brasiliana USP, projeto acadêmico da Universidade de São Paulo que reúne a maior coleção de livros e documentos sobre o Brasil, um moderno edifício de 20 mil metros quadrados na Cidade Universitária sob a responsabilidade da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, órgão da Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP.
 
Sonho maior do bibliófilo, a coleção Brasiliana, composta por 17 mil títulos (ou 40 mil volumes) de literatura e manuscritos históricos doados pelo colecionador, é o maior legado deixado por Mindlin além da herança ética que o Brasil recebe desse empresário, jornalista, ex-secretário de Cultura de São Paulo e membro das academias Brasileira e Paulista de Letras. Desde adolescente avesso ao autoritarismo, Mindlin começou sua carreira jornalística aos 15 anos como redator do Estado, driblando a censura durante a Revolução de 1930. Da sala de Julio de Mesquita, então diretor do jornal, ele transmitia instruções para a sucursal do Rio - em inglês, para confundir a escuta telefônica. Outro exemplo de sua conduta ética foi o pedido de demissão do cargo de secretário de Cultura do governo Paulo Egydio quando o jornalista Vladimir Herzog foi morto pela ditadura militar, em outubro de 1975.
 
Posteriormente, ao ser convidado pelo governo civil de Fernando Collor para ocupar o cargo de ministro da Fazenda, Mindlin, traumatizado com cargos públicos, declinou da oferta, ocupando-se de sua biblioteca de 40 mil títulos, que manteve por mais de sete décadas com a ajuda de sua mulher Guita e, após a morte desta, em 2006, por mais quatro anos até ficar doente. Instalada em sua casa no Brooklin, na qual morou por mais de 60 anos, a biblioteca era o grande orgulho de Mindlin. Nela repousam raridades como a primeira edição de Os Lusíadas, de 1572, um original do padre Antonio Vieira, os originais de Sagarana, de Guimarães Rosa, corrigidos à mão pelo autor, além do primeiro livro que Mindlin comprou num sebo quando tinha 13 anos, Discurso sobre a História Universal, escrito em 1740 pelo bispo francês Jacob Bossuet. Oito décadas depois, outros 40 mil livros juntaram-se ao exemplar raro de Bossuet, muitos deles já disponíveis para consulta pública na Brasiliana Digital, a biblioteca virtual desenvolvida com o acervo físico doado pelo empresário à USP em 2006.
 
Mindlin não colecionava livros raros por fetiche. Queria dividir o prazer da leitura com milhares de pessoas. Mesmo como empresário, que transformou a Metal Leve de uma pequena fábrica de pistões, nos anos 1950, numa empresa gigantesca do setor de autopeças, Mindlin buscou o ideal de uma gestão democrática em que os operários pudessem ter voz ativa nas discussões sobre seu destino. Com a globalização, a Metal Leve não sobreviveu ao assédio do capital estrangeiro e, em 1996, foi comprada por sua maior concorrente, a alemã Mahle. O empresário, então com 82 anos, mais da metade dedicados à Metal Leve, não se aposentou, participando dos conselhos de administração de grupos - O Estado de S. Paulo, entre eles - ou de instituições como a Sociedade de Cultura Artística, da qual seu pai foi um dos fundadores.
 
Filho de um dentista judeu de origem russa, apaixonado por música e pintura, Mindlin herdou a paixão pela cultura do pai, que costumava receber em casa escritores como Mário de Andrade. Esse contato próximo com grandes estudiosos dos problemas brasileiros o transformou em farejador de raridades ao topar, ainda adolescente, em Paris, com o clássico História do Brasil, a narrativa de frei Vicente de Salvador, de 1627, que o fez se interessar pelo passado do País. Desde então, obcecado pela ideia de construir a maior biblioteca dedicada a estudos brasileiros, aproveitava todo tempo livre em sua viagens internacionais para garimpar títulos que nem a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro sonhou em ter no acervo. Seu sacrifício pessoal rendeu ótimos títulos publicados com a ajuda de sua biblioteca, entre eles os volumes da História da Vida Privada no Brasil, cujo conteúdo foi pesquisado na casa do Brooklin, frequentada pelos maiores intelectuais do País.
 
Mecenas, Mindlin, um dos articuladores da Fundação Vitae, que concedia bolsas para a realização de projetos culturais, ele publicou livros de grandes amigos poetas, como Carlos Drummond de Andrade, e artistas visuais como a gravadora Renina Katz. Seu acervo de obras em papel tem peças raras de artistas como Goeldi, Lescoschek, Lívio Abramo e Iberê Camargo. Mindlin costumava dizer que essa escolha se devia mais à mulher Guita, com quem teve 70 anos de vida em comum. Seu negócio mesmo era a leitura, hábito que, infelizmente, foi obrigado a abandonar nos últimos anos por problemas de saúde. Antes que seus olhos enfraquecessem, ele leu, porém, mais de cinco vezes sua obra preferida, os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, da qual guardava uma raríssima primeira edição francesa. Depois de Proust, Balzac ocupou sua imaginação por mais tempo. Em sua inúmeras visitas ao órgão do Banco do Brasil responsável pelas importações, o empresário da Metal Leve, obrigado a longas horas de espera nos corredores, devorou quase toda A Comédia Humana.
 
Nascido em São Paulo, em 1914, Mindlin estudou Direito na USP e fez cursos de extensão universitária na Universidade de Columbia, em Nova York. Aos 32 anos, financiado por um empresário, conseguiu um sócio e fundou a livraria Parthenon, em São Paulo, especializada em livros raros. A guerra havia acabado há um ano e famílias europeias descapitalizadas se desfaziam de seu patrimônio artístico e literário. Foi assim que Mindlin trouxe para o Brasil muitas raridades que colocou à venda na Parthenon, sempre avisando o comprador que poderia procurá-lo no futuro, caso quisesse se desfazer do livro. O conflito entre vendedor e colecionador cresceu com o tempo. Mindlin não resistiu e foi atrás de todos as obras raras vendidas, recomprando-as para sua biblioteca particular quando virou empresário.
 
Foi quando vendeu a Metal Leve, dirigida por durante 46 anos, que o empresário começou a pensar no futuro de sua biblioteca. Inspirado no modelo da John Cater Brown Library, de Providence (Rhode Island), que também começou como coleção particular e hoje é uma das maiores do mundo em documentos raros sobre a América, Mindlin, que integrava o conselho da biblioteca, pensou em fazer um acordo com a USP para transferir seu acervo. Parte dessa história está contada no livro Memórias Esparsas de uma Biblioteca, um dos três volumes que Mindlin dedicou à maior coleção privada do Brasil - os outros dois são Uma Vida entre Livros e Destaques da Biblioteca de Guita e José Mindlin.
 
Sempre procurado por pesquisadores brasileiros e estrangeiros atrás de suas raridades bibliográficas, Mindlin, um cidadão do mundo que dominava seis línguas, foi um dos primeiros empresários a atravessar a Cortina de Ferro durante a Guerra Fria, tentando aproximar o Brasil de países como a extinta União Soviética. Teve também um papel fundamental no processo de redemocratização do País ao assinar, durante a ditadura, um manifesto pela abertura política junto a outros oito empresários.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,mindlin-um-mecenas-que-nao-fazia-nada-sem-alegria,517348,0.htm

 
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