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Quem tem medo de Ana Cristina Cesar Imprimir E-mail

fotoNeste ensaio a mestranda em Literatura, Cristiane Roveda Gonçalves, propõe uma breve análise dos exercícios e procedimentos de escrita poética de Ana Cristina Cesar através da série de poemas conhecidos como “gatografia”, publicados em Inéditos e Dispersos em 1998. A série é composta por 12 poemas sendo que em 7 deles Ana C. faz referência explícita ao longo poema Invenção de Orfeu de Jorge de Lima.

Quem tem medo de Ana Cristina Cesar?

Cristiane Roveda Gonçalves
(Mestranda em Literatura/UFSC)

fotoEste ensaio propõe uma breve análise dos exercícios e procedimentos de escrita poética de Ana Cristina Cesar através da série de poemas conhecidos como “gatografia”, publicados em Inéditos e Dispersos em 1998. A série é composta por 12 poemas sendo que em 7 deles Ana C. faz referência explícita ao longo poema Invenção de Orfeu de Jorge de Lima. A pergunta “Quem tem medo de Ana Cristina Cesar?” cria uma problemática em torno de uma poeta dita marginal que, no entanto bebe na fonte da literatura moderna clássica, e dela se apropria para resignificar a linguagem poética.

Ana Cristina Cesar é um dos principais exemplos de poeta, com sucesso de crítica e de público, da segunda metade do século XX. Nascida em 1952 e oriunda de uma família que lhe dera condições para entrar na vida acadêmica, muito jovem já conhecia a Europa e as grandes obras de literatura universal. Leitora de Baudelaire, Eliot, Drummond a poeta, também os interpretava, traduzia e analisava, ao ponto de reescrevê-los.

Em vida Ana Cristina publicou três livros de maneira independente e em 1982 a editora Brasiliense publica a reunião dos pequenos livros em uma edição chamada A Teus pés. Sua obra vem sendo publicada postumamente pelos curadores de seu acervo pessoal. No final dos anos da década de 80 Ana Cristina Cesar já era considerada pela crítica como a melhor poeta de sua geração, para Maria Lucia Camargo a fortuna crítica da obra de Ana Cristina

evidencia dois aspectos relevantes e contraditórios: de um lado o consenso quanto ao valor de sua obra, (...) de outro a ausência de um trabalho crítico mais abrangente e aprofundado, que busque entender o lugar, a especificidade e o sentido dessa poética.1

Retoma-se assim a pergunta título deste ensaio: Quem tem medo de Ana Cristina Cesar? Como podemos ler sua poética desligando-a do monumento que se funda a partir de sua morte precoce?

Em Inéditos e dispersos publicado em 1998, sem o olhar crítico da autora, pode-se perceber que seus textos não são poemas acabados. Os poemas e anotações em prosa podem ser lidos como procedimentos e exercícios poéticos. Entre os poemas publicados por data, encontra-se uma série conhecida como “Gatografia”, todos são datados no dia 2 de outubro de 1972 e ao final de 7 deles há a expressão “d’après Jorge de Lima”, além de referenciar alguns poemas do livro Invenção de Orfeu. Escritos na biblioteca da PUC, os poemas, aqui chamados de exercícios poéticos, demonstram característica marcante de Ana Cristina o conhecimento da literatura clássica.

A poesia de Ana C. num primeiro momento pode ser lida como uma experiência de escrita imediata, quase que intuitiva. O tom confessional de diários, cartas, bilhetes e poemas fragmentados induz o leitor a criar uma atmosfera juvenil e pouco complexa, porém nesse jogo com o cotidiano a poeta revela extrema consciência de que a poesia é um trabalho de linguagem. Ana Cristina busca em autores da literatura clássica moderna a interlocução pra seus textos. O poeta escreve por influência e também pode influenciar um novo modo de ler o poeta já lido.

Com apenas um livro publicado pelos meios oficiais, Ana passa a ter sua obra amplamente pesquisada através da publicação de seus textos inéditos, e talvez inacabados. Há então a busca pela decifração e a procura de pistas e rastros em seus escritos que revelem o sentimento que move o poeta. Para Mario Faustino o poeta seria

aquele homem que, capaz de receber os fenômenos naturais e sociais de modo especialmente sintéticos, e também capaz de exprimir em palavras organicamente relacionadas, essa visão totalizadora de um mundo e de uma época.2

Assim apresenta-se Ana Cristina em todo o pequeno A teus pés. A poeta é sintética, mas ao mesmo tempo totalizadora, expressa o  sentimento do mundo em um poema sem título ou ainda nos declara todas as suas principais referências e predileções em literatura em um índice onomástico.

Nesta perspectiva encontram-se rastros da poesia de Jorge de Lima na poética de Ana C., em determinados aspectos tanto a poesia de Ana Cristina quanto a de Jorge de Lima são tradadas como herméticas. Para o próprio Lima

há poesia que se explica e poesia que não se explica, [...] mas, desde que há superação de inteligível em um ar de misterioso venha banhar o poema, como explicá-lo? Jamais. Aí não podem mais atuar os processos racionais e inteligíveis, mas somente os processos intuíveis.3

Ana Cristina, uma poeta fora de lugar

Com uma dicção própria Ana C. estava muito próxima das marcas de sua época. Apresenta uma linguagem aparentemente desleixada, ao mesmo tempo em que está muito distante da poesia como concepção da espontaneidade. A escrita da poesia através dos gêneros confessionais dá a falsa ideia de abandono da biblioteca, fato que é facilmente constatado, através das referências implícitas e muitas vezes, visivelmente marcadas em sua poesia. O Índice Onomástico publicado em A teus pés é contundente no que tange às referências literárias de Ana C.

Ana C. lê e se apropria da tradição lírica moderna através dos poetas que utilizam a temática do “eu”, busca os poetas discursivos, como os brasileiros Bandeira, Mário de Andrade, Drummond, Murilo Mendes e Jorge de Lima. Porém como escreve nos anos da década de 70 encontra-se num lugar instável. Está entre a tradição clássica da biblioteca e a cultura de massa que se instala com vigor no final da ditadura militar. Desloca para um outro tempo os poetas clássicos, Ana Cristina é um poeta exilado na cidade. É uma poeta que frequenta bibliotecas e delas rouba o que de melhor existe transferindo o fruto do seu roubo para sua poesia.

Em seu A Teus pés, único livro publicado em vida, Ana C. se coloca em uma linha de tradição clássica, criando assim um impasse com os poetas marginais seus contemporâneos. Em depoimento Ana apresenta sua poesia e a coloca em seu devido lugar: “a poesia moderna. É uma poesia que se lanceta. Ela é toda cheia de arestas, é angulosa, não tem um desenvolvimento coerente, linear”4. Ana Cristina é, portanto uma poeta moderna e romântica ao mesmo tempo. Enquanto os amigos e companheiros poetas e escritores são chamados de poetas marginais Ana C. escreve sobre o sentimento individual, utilizando a temática do “eu” e do amor.

Ana C. preocupa-se com o desaparecimento do poema, quer saber quem é o seu interlocutor, pergunta-se: Há um outro? Há uma palavra não falada? Na busca pelas respostas Ana se coloca fora da tradição marginal que se funda nos anos da década de 70 e faz a opção por ficar à margem, na linha de tradição clássica, mas não colada a essa tradição e sim relendo com uma nova significação. Ao contrário dos poetas marginais que apresentavam uma preocupação com o mundo, que possuíam um tom moralizante em seus poemas, que estavam refletindo o capitalismo e a cultura de massa, Ana Cristina escrevia preocupada com a intimidade, com o mínimo, com o segredo, com aquilo que só é possível tocar por dentro: Hoje acordei com uma coceira no hímen5. O peso do mundo pesa em Ana C.

Exercícios e procedimentos poéticos

Ao revisitar a poesia lírica moderna Ana Cristina põem em movimento os textos clássicos. Relê desconstruindo os monumentos da literatura, dá novo significado, realiza deslocamentos que alteram a dicção, recorta o poema e o resignifica. Ana C. assume então o projeto de escrever a partir da leitura.

A prática da tradução alimenta sua poesia. Em seus exercícios de tradução estabelece diálogo com o autor através de uma linguagem coloquial, informal quase íntima. O mito da originalidade é desfeito por Ana Cristina, que escreve sua poesia nas marcas de outros poetas, sem, no entanto deixar de ser original. Em sua poesia desafia o leitor a encontrar pistas que remetam a outros textos, é a tentativa do apagamento das autorias, a morte do autor de Foucault. Em contrapartida recupera a imagem do autor monumento, valorizando os textos clássicos.

A angústia de ser original e o peso da influências são evidentes em seus exercícios poéticos conhecidos como gatografia, “o nome morto vira lápide, falsa sensação de eternidade”6, assim Ana escreve em um dos poemas datados em 2 de outubro de 1972  propondo, quem sabe, uma reflexão sobre os monumentos da literatura que só se tornam monumentos a partir de suas lápides, da morte. Para Mario Faustino, Jorge de Lima era o maior, mais vasto, o mais importante e o mais original dos poetas brasileiros, além de ter a vantagem de estar morto. Assim também é a leitura dos poemas de Ana Cristina, ela se torna um monumento literário a partir de seu desaparecimento.

Antonio Rangel Bandeira afirma que Jorge de Lima passou a vida estreando. Assim também se comporta Ana Cristina, em seu projeto de aprendizagem evidencia certa irregularidade no fluxo de produção. Tanto Jorge de Lima quanto Ana Cristina são poetas da experimentação. Ao ler, e reescrever, Invenção de Orfeu a poeta deixa sua própria marca: o gato. Em nenhum momento Lima escreve sobre gatos, não menciona ou faz mera referência. No entanto Ana Cristina começa sua série de exercício falando da “denúncia gatográfica” e por ela vai trilhando seus saltos e também seu calar.

O livro a Invenção de Orfeu foi publicado em 1952, ano da morte de Jorge de Lima. O longo poema demorou 10 anos para ser escrito, pode ser considerado uma epopeia poética pela quase impossibilidade de explicá-lo. Jorge de Lima surge no cenário literário com influências do parnasianismo, no entanto ao decorrer de sua carreira como escritor vai abandonando a si próprio, partindo para uma escrita quase que automática, aos moldes surrealistas. Ao longo de sua carreira como escritor se percebe uma mudança de estilo. Passa de imitador de Whitman e Mario de Andrade para a experiência e modismo da poesia aos moldes cinematográficos. Alguns críticos afirmam que Jorge de Lima tem seu ápice em Invenção de Orfeu, no entanto sua morte acaba por erguer um monumento na literatura brasileira.

Ana Cristina de certo modo comporta-se como Jorge de Lima, buscando inspiração em diferentes correntes de estilo. Ana passa da tradução dos clássicos para a reescritura dos poemas. Talvez insatisfeita com a produção poética de seu tempo Ana salta como um felino para os versos de Jorge de Lima e de lá recolhe material para seus ensaios de poeta. Nos versos de Invenção de Orfeu procura despertar-se do sono dos ruídos , é experimentação com consciência de seus atos. Lima e seu longo poema são terreno fértil para a jovem poeta que busca inspiração para seus exercícios poéticos, é lá encontra espaço para a experimentação da linguagem poética.

Considerações finais

Nas palavras de Benjamin (2008, p.131) a tarefa mais urgente do escritor moderno: chegar à consciência de quão pobre ele é e de quanto precisa ser pobre para poder começar de novo. Assim se comporta Ana Cristina em seus procedimentos de exercícios poéticos, não tem medo de enfrentar o embate com os poetas maiores e é daqui que eu tiro versos, desta festa- com arbítrio8, lendo, traduzindo, decifrando que a poética vai se construindo.

A poesia de Ana Cristina é de confinamento, é íntima, é o corpo que se olha para dentro, não se lança ao mundo.

Não há na poesia de Ana C. a loucura pela decifração, é evidente que lá estão as referências aos poetas monumentais. Em Consideração do poema de Drummond (2004, p.21) podemos melhor entender o procedimento de escrita poética de Ana Cristina:

“As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.”

Ana propõe que não se decodifique, não se tente decifrar o poema, mas que o leitor faça uma travessia, percorrendo o texto, lançando-se ao poema.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008.
BOSI, Viviana. Orfeu e o gato: Jorge de Lima e Ana Cristina César, uma trajetória de releitura poética. In: Remante de males. Volume 20. Campinas: Unicamp, 2000.
CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos. Chapecó: Argos, 2003.
CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Ática, 1998.
_________________. Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999.
_________________. Inéditos e dispersos. São Paulo: Ática, 1998.
FAUSTINO, Mario. Poesia-Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976.
LIMA, Manoel Ricardo de. Como rasurar a paisagem. In: Poéticas do Olhar e outras leituras de poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Ediouro.


1CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos. Chapecó: Argos, 2003, p. 25.
2FAUSTINO, Mario. Poesia-Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 44.
3LIMA, Jorge. Hermetismo e poesia. In.: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p.54.
4Cesar, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999, p.261.
5Cesar, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Ática, 1998, p, 96.
6CESAR, Ana Cristina. Inéditos e dispersos. São Paulo: Ática, 1998, p. 63.
7CESAR, Ana Cristina. Inéditos e dispersos. São Paulo: Ática, 1998, p. 71.
8ANA, Cristina Cesar. Sete chaves.  In: A teus pés. São Paulo: Ática, 1998, p.40.

 
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