Como se constrói um vilão: a trajetória de Briony Tallis em Reparação |
Neste artigo a jornalista Caroline dos Passos analisa a personagem Briony Tallis, uma das protagonistas do romance “Reparação”, do escritor britânico Ian McEwan, com o objetivo de mostrar como esta personagem assume o arquétipo de vilã na história. Como se constrói um vilão: a trajetória de Briony Tallis em Reparação Caroline dos Passos Por isso, como se segurasse diante de si uma lança e um escudo protector, exclamou, Só o Senhor é Deus. O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um para o que morre e outro para o mata, um deus para o condenado e outro para o carrasco. 1. Introdução Desde as narrativas mais simples, como as lendas e primeiras histórias em quadrinhos, a textos mais elaborados, como os romances, os vilões dão sabor e costuram as histórias, promovem os conflitos e atormentam a trajetória do herói. Lex Luthor, Rainha de Copas, Lady Macbeth, Clare Quilty, Capitão Gancho, Loredano, por exemplo, fazem parte da essência da obra a que pertencem tanto quanto os protagonistas. No entanto, embora reconheça a existência e a importância dos vilões na literatura, a academia pouco se interessa em estudá-los. Faço esta afirmação pela dificuldade em encontrar textos acadêmicos com esta temática. Veio daí o interesse em tratar do assunto no artigo de conclusão do curso de pós-graduação em Estudos Literários. Joseph Campbell, em “O herói de mil faces” (2007), descreve todas as fases pelas quais passam protagonistas de narrativas religiosas, contos de fadas e do folclore de várias culturas. Na primeira parte do livro, intitulada “A aventura do herói”, o autor descreve os passos para a iniciação do herói, etapa que o insere na aventura. Neste momento é que as provações são impostas diante do protagonista. Caminhando além do que CAMPBELL (2007) escreveu, poderia dizer que o vilão dos romances participa ativamente desta etapa, ou seja, contribui para a redenção, sucesso ou até mesmo o fracasso do herói. Não é a toa que, nos anos 1930, os jovens Jerry Siegel e Joe Shuster perceberam que as histórias do Super-Homem ganhariam muito mais ação com a inclusão de um ingrediente que dificultaria a jornada do herói: a criptonita. O objeto tornou-se o primeiro antagonista nos quadrinhos do “homem de ferro”. Depois, um ultra-humanóide tentava conquistar o mundo e vencer o herói a todo custo. Lex Luthor apareceu apenas em 1940, mas se tornou um símbolo entre os vilões. Para Christopher Vogler, em “A jornada do escritor” (2006, p. 124-125), “uma história é tão boa quanto seu vilão, porque um inimigo forte obriga o herói a crescer no desafio”. Embasada na teoria estruturalista, formalismo russo, principalmente nas considerações de Tzvetan Todorov, e na obra de CAMPBELL e VOGLER, busco desvendar os caminhos percorridos por uma personagem complexa: Briony Tallis, antagonista do romance “Reparação”, do inglês Ian McEwan. Publicado em 2001, o livro narra uma história de amor destruída - assim como a vida de seus protagonistas - por um capricho de uma pré-adolescente mimada e intransigente. Determinada a trilhar os passos de um vilão na literatura neste artigo, encontrei em Briony uma personagem estimuladora e complexa. Ascendente a escritora, a menina encara o mundo como uma obra literária e sente-se no direito de promover ações que interferem diretamente no destino dos outros personagens. Além disso, o romance todo trata sobre a culpa egocêntrica da menina, que escreve o livro (MCEWAN “credita” “Reparação” a Brinoy Tallis) como uma redenção de si mesma - sobrepujando o bem-estar dos personagens a quem prejudicou. Em inglês, a obra é intitulada “Atonement” que significa também “compensação” e “redenção”. O egoísmo está entre as principais características de um vilão. O livro apresenta uma estrutura diferenciada dos romances do século XIX. MCEWAN preocupou-se em mostrar vários pontos de vista de um mesmo fato em cada capítulo. O autor torna cada personagem central da trama protagonista de uma cena, mesmo com narrador em terceira pessoa. Na verdade, no último capítulo, revela-se a verdadeira autora da história: a inventiva Briony, que assume o papel de “narrador = personagem (TODOROV, 1977, p. 237)”. A caracterização da personagem como vilã ocorre ao longo do texto. Percebe-se que ela cumpre as etapas que a livram de ser estigmatizada como uma heroína. Ela se encaixa no que VOGLER (2006, p. 123) chama de “sombra”, ou seja, alguém disposto a derrotar o herói, mesmo que nas entrelinhas. 2. O formalismo russo Entre 1914 e 1915, um grupo de jovens estudantes da Academia de Ciências – Círculo Linguístico de Moscou uniu-se com a ideia de recusar a todo o tipo de interpretação extraliterária na análise textual (TOLEDO, 1973, p. 9). A primeira publicação relacionada à teoria foi “A ressurreição da palavra”, de Vítor Chklovski, em 1914. O texto foi o prenúncio para Óssip Brik organizar a coletânea “Poética”, em 1916. Cerca de um ano depois, surgiu a Associação para o Estudo da Linguagem Poética (Óbchchestvo por Izutchéniu Poetítcheskovo Iaziká) da qual partiram as principais contribuições do formalismo. Os formalistas defendiam o estudo da literariedade, ou seja, a análise dos aspectos que servem para classificar determinada obra como literatura. Para isso, prendiam-se à forma textual, reconhecendo a importância de demais aspectos - como o contexto histórico e social -, porém deixando-os de lado na pesquisa. A filosofia, a sociologia, a psicologia, etc., não poderiam servir de ponto de partida para a abordagem da obra literária. Ela poderia conter esta ou aquela filosofia, refletir esta ou aquela opinião pública, mas, do ponto de vista do estudo literário, o que importava era o priom, ou processo, isto é, o princípio da organização da obra como produto estético, jamais um fator externo (TOLEDO, 1973, p. 9). Considerando legítimas as contribuições dos autores desta escola, opto pela linha adotada pelo linguista búlgaro Tzvetan Todorov apenas para tornar a análise mais clara e embasar os textos de Joseph Cambell e Christopher Vogler, que também servem de guia para a formulação deste artigo. No texto “As categorias da narrativa”, publicado no livro “Análise Estrutural da Narrativa - Seleção de Ensaios da Revista ‘Communications’”, o autor explica que “em lugar de projetar a obra sobre um outro tipo de discurso, ela é projetada às virtualidades do discurso literário, que o tornam possível” (TODOROV, 1977, p. 209), compreendendo os estudos literários como uma ciência da literatura. Neste sentido, Todorov divide a análise em conceitos que facilitarão dissecar o discurso literário do livro e reconhecer Briony como a vilã de “Reparação”. Estão entre as mais importantes noções na proposta do autor: o sentido e a interpretação de uma obra. Aspectos extremamente importantes para isolar a obra de qualquer outro tipo de discurso, restringindo a análise à literariedade. O que o autor quer destacar é que é preciso deixar de lado a psicologia, o contexto histórico em que a ficção foi escrita ou qualquer outro fator externo para prender-se ao que é propriamente literário (TODOROV, 1977, p. 210). Para TODOROV, todo e qualquer elemento de uma obra tem um sentido ou função. Uma descrição e a forma da narrativa, por exemplo, fazem parte da construção de um personagem. “O sentido de um monólogo pode caracterizar um personagem” (TODOROV, 1977, p. 210), explica o autor, citando em seguida Flaubert, que afirma que nada é gratuito em seus livros. Todo recurso utilizado pelo escritor implicará uma ação na história que está sendo lida. Em “Reparação“, McEwan escreve capítulos em terceira e primeira pessoa, faz a descrição minuciosa do sofrimento de Robbie antes de morrer e narra sob diferentes ângulos uma mesma cena, isso sem falar da entrega da autoria do livro a um deles - da mesma forma que Machado de Assis em “Memórias póstumas de Brás Cubas”. São estas opções que fazem toda a diferença na construção de um discurso literário. A interpretação, no entanto, é independente do autor e está ligada diretamente ao leitor. “A interpretação de um elemento da obra é diferente segundo a personalidade do crítico, suas posições ideológicas” (TODOROV, 1977, p. 210). Da mesma forma que o sentido, cada ação ou recurso tem seu significado que será interpretado de acordo com os aspectos culturais, ideológicos, morais de quem as lê. Consciente desta diferenciação e feita a leitura do artigo de TODOROV, defino o ponto que será primordial neste artigo: como as relações de Briony com a irmã Cecília e o empregado da casa, Robbie, demonstram seu caráter como vilã. Nas palavras de TODOROV: “(...) um tipo de personagem (...) caracterizado exaustivamente por suas relações com os outros personagens” (TODOROV, 1977, p. 221). 3. Os passos de um herói Em um romance, quais elementos determinam o destino de um personagem? Os atos que ele pratica, seus objetivos e a influência no rumo de outros personagens estão entre os pontos que o qualificam como herói, vilão ou helper – aquele que “ajuda” o herói. Parto da ideia comungada por CAMPBELL e Carl G. Jung de que os personagens representam arquétipos, ou seja, “refletem aspectos diferentes da mente humana – que nossas personalidades se dividem nesses personagens, para desempenhar drama de nossas vidas”. Jung acredita que estes modelos nascem do inconsciente coletivo, por isso, “a maioria dos mitos (e histórias construídas sobre o modelo mitológico) tem o sinal de verdade psicológica” (TOLEDO, 1973, p. 49). A partir dos estágios de narrativas míticas que CAMPBELL escreveu em “O herói de mil faces” e, baseado em outros autores do Estruturalismo e Formalismo, como Vladimir Propp, Vogler criou um guia prático e o publicou em 1998. “A jornada do escritor” serve como um parâmetro para escritores e acadêmicos. No livro, o roteirista de filme “hollywoodianos” relata os passos de um herói – aos moldes de arquétipos - e outros elementos que correspondem a uma narrativa. O autor divide a jornada do protagonista em 12 estágios. O vilão é citado nos estágios: seis, “Testes, Aliados, Inimigos”(TOLEDO, 1973, p. 204-254); sete, “Aproximação da Caverna Oculta”; oito, “Provação”; e 10, “Caminho de volta”. No capítulo seis, Vogler apresenta as impressões do herói prestes a encontra-se com o vilão, personagem que fará o protagonista passar por testes e mudanças até chegar ao fim de sua jornada. As inimizades incluem os vilões ou antagonistas das histórias ou seus subalternos. Os inimigos podem desempenhar funções de outros arquétipos, como a Sombra, o Pícaro, o Guardião de Limiar e, às vezes, o Arauto. (VOGLER, 2006, p. 207-208). O capítulo seguinte desenvolve a ideia de que herói deve ultrapassar obstáculos para chegar ao seu destino. Ao chegar neste estágio, entra em um “Mundo Especial”, onde pode ser surpreendido por ilusões. Na maioria das vezes, é papel do vilão despistar ou atrapalhar o inimigo com artifícios diversos. VOGLER (2006) usa o exemplo do Mágico de Oz, no qual Dorothy, o Leão, o Espantalho e o Homem de Lata são adormecidos pela Bruxa Malvada. Nesta mesma etapa, o herói precisa estar atento a um confronto com o adversário. Mesmo passando por um momento de isolamento, pode ser perturbado pela Sombra. Afinal, o Mundo Especial está próximo ao Território Xamanístico, que é habitado por ajudantes do vilão e é terreno conhecido dele. É o passo anterior à Caverna Oculta, ponto do romance onde o herói fará suas reflexões e encontrará a si mesmo antes de seguir até o fim da jornada. “Mensagem: quando se aproximam da Caverna Oculta, os heróis devem saber que estão no território do xamã, na linha que separa a vida da morte” (VOGLER, 2006, p. 221). A aproximação entre inimigos também faz parte desta etapa. É quando o vilão percebe que só conseguirá a vitória se derrotar definitivamente o oponente. Este é um dos momentos dramáticos da história. Cabe ao herói infiltrar-se entre o adversário e enganá-lo. “Este aspecto da Aproximação nos ensina que devemos entrar na cabeça de quem atrapalha nosso caminho. Se os entendermos, fica muito mais fácil passar por eles ou absorver sua energia” (VOGLER, 2006, p. 225-226). Embora consiga fugir, resta o confronto com os ajudantes do vilão, no qual o herói deve se desvencilhar do Mundo Xamanístico e partir para a Provação. O encontro com o verdadeiro vilão ocorre neste estágio, descrito no oitavo capítulo do livro de Vogler. É a hora do herói mostrar seu poder e vencer a Sombra. Neste combate, ele pode morrer para renascer no momento seguinte. O autor de “A Jornada do Escritor” alerta que esta etapa não deve ser confundida com o clímax da história. Trata-se de um ponto de crise que vai dar origem à mudança do protagonista para o estágio final do romance ou filme – o autor escreve para os dois formatos. No momento seguinte, ocorre a morte do vilão, tarefa nem um pouco fácil para o herói. O antagonista deve escapar para o terceiro ato, mas algum de seus aliados pode morrer. Este momento representa o começo da luta contra os próprios medos do protagonista. Afinal, “um vilão pode ser um personagem externo mas, num sentido mais amplo, essas palavras todas representam as possibilidades negativas do próprio herói. Em outras palavras, o maior adversário do herói é a sua própria Sombra” (VOGLER, 2006, p. 239-240). O vilão ressurge mais forte na retaliação, que ocorre durante a etapa do “Caminho de volta” (VOGLER, 2006, p. 271) do herói. Um ponto importante a ser lembrado é o de que todo vilão é herói de suas histórias (VOGLER, 2006, p. 242). É o caso de Briony Tallis. Embora tenha claramente a função de sombra, ela é a protagonista de “Reparação“. A personagem sente inveja de sua irmã Cecilia, acumula sentimentos reprimidos a respeito de Robbie, confunde realidade com fantasia e interfere na trajetória dos outros personagens. 4. A fonte, o bilhete e a biblioteca “Reparação” conta a história de Briony e Cecilia Tallis e Robbie Turner. Em uma tarde do verão inglês de 1935, no dia mais quente do ano, a caçula da família Tallis, Briony, assiste da janela de seu quarto a uma cena surpreendente. Sua irmã Cecilia tira a roupa, fica apenas de combinação e mergulha na fonte instalada no jardim da mansão. Com ela, está o filho da arrumadeira, Robbie. Para a menina, é como se ele estivesse dando alguma ordem para a irmã. Briony não entende o que está acontecendo, mas percebe a tensão nos movimentos da irmã que, após sair da água, marcha rispidamente em direção à casa. Horas mais tarde, a menina é incumbida por Robbie a entregar à Cecília o que seria uma carta de amor. Ele se engana e coloca no envelope uma declaração obscena aos olhos da garota, que lê o bilhete, intrigada com os acontecimentos daquela tarde. Na sucessão de eventos, a menina reconstrói a imagem do rapaz, com quem convive desde que nasceu. Ela entrega a carta à Cecilia, que corresponde aos sentimentos do rapaz. Antes do jantar, na biblioteca da mansão, o casal se entrega ao desejo e acaba sendo flagrado por Briony. O julgamento final da menina - e que determinará o destino dos três personagens - ocorre à noite durante a ceia, quando a prima de Cecília e Briony é atacada por um dos homens que estava na casa da família Tallis. Mesmo sem ter visto sequer a penumbra do estuprador, Briony jura que Robbie foi o autor do crime. O depoimento da garota é decisivo para a condenação do jovem e ele é preso. Cecília e Robbie, que começavam o relacionamento naquela noite, são separados. Enquanto que Briony, segura de si, orgulha-se de ter salvado a irmã e a prima. ‘Foi Robbie, não foi?’ O psicopata. Ela queria pronunciar a palavra. Lola não disse nada e permaneceu imóvel. Briony repetiu a frase, mas dessa vez sem nenhum tom de pergunta. Era a afirmação de um fato. ‘Foi o Robbie’. (...) Briony disse outra vez. Simplesmente. ‘Robbie’. (MCEWAN, p. 201). 5. Os passos da vilã 5.1. A motivação “Reparação” é dividido em quatro momentos. Na primeira parte, Ian McEwan apresenta Briony Tallis, uma pré-adolescente de 13 anos. Escritora aspirante, orgulha-se de suas peças e da própria inventividade. Nas palavras de MCEWAN, “Briony era uma dessas crianças possuídas pelo desejo de que o mundo seja exatamente como elas querem” (p. 13). Interessante lembrar que, neste ponto do livro, o leitor ignora o fato de que a “verdadeira” autora do romance é a própria menina, envelhecida. Por isso, esta frase diz muito sobre Briony e serve para mais do que a qualificar como uma criança mimada. Afinal, ela escreve um livro para se eximir da culpa, recria uma fantasia na qual suas ações libertam outros personagens da infelicidade. Para TODOROV (p. 221), o desejo dos personagens é uma das relações básicas em um drama. A vontade de consertar erros do passado estaria enquadrada nas atitudes que definem um herói. No caso de Briony, no entanto, a vontade não sai da sua imaginação. Ela não tem coragem e assiste à morte da irmã e de Robbie sem revelar que estava enganada. É o que TODOROV chama da diferença entre “Ser e Parecer” (p. 224). O fato de Brinoy tentar mudar pode parecer que ela chegou, atendeu ao chamado à aventura e deu início à “travessia do primeiro limiar” (VOGLER, p. 194) - ou seja, ela quer seguir seu objetivo, reparar o mal feito, mas isso não ocorre. Falta o comprometimento da personagem em ultrapassar o primeiro liminar - ela sequer reencontra a irmã. Este passo para a construção do arquétipo de um herói não se concretiza. Voltando ao início, na primeira parte da história, Briony é a articulista principal do romance. Como a família Tallis apoia a menina e não retira as acusações contra Robbie, Cecilia foge de casa para se tornar enfermeira em Londres. McEwan narra os episódios da fonte, do bilhete e da biblioteca na perspectiva dos três principais envolvidos. Cabe destacar que o sentido do recurso é uma das formas de evidenciar a “verdadeira” autoria de “Reparação”. Como Briony - a “autora” do romance não encontra mais Cecilia ou Robbie depois dele ser preso, esta é a única parte que pode ser considerada “real” no universo fantasioso da menina, pois contém situações em comum com os outros protagonistas. É como se Briony quisesse mostrar ao leitor qual parte não foi inventada por ela, embora não tenha conversado com o casal após os acontecimentos ou, na condição infantil, tivesse capacidade de interpretar os sentimentos complexos de rejeição e atração que Robbie e Cecilia sentiram. O episódio da fonte serve de passagem da infância para a juventude, como se percebe neste trecho: No momento exato em que a cabeça de sua irmã irrompeu na superfície - graças a Deus! - Briony pela primeira vez se deu conta, de modo ainda tímido, de que para ela agora não poderia mais haver castelos nem princesas como nas histórias de fada, e sim estranheza do aqui e agora, o que se passava entre as pessoas, as pessoas comuns que ela conhecia, e o poder que uma tinha sobre a outra, e como era difícil entender tudo errado, completamente errado. (p. 53) Considero este o primeiro ponto de virada da personagem. Daqui, ela poderia seguir os passos para se tornar heroína ou vilã. O fato dela ser uma criança mimada seria um argumento frágil, afinal, a irmã dela - a heroína - compartilha desta característica. Além disso, poderia ser encarada como uma anti-heroína (VOGLER, p. 83) por protagonizar a maioria das ações no romance. Portanto, há ainda outras evidências que a colocam no papel de vilã ou sombra, como é denominado em “Jornada do Escritor“. 5.2. O Chamado à Aventura A evidência mais concreta que coloca Briony no papel de vilã é a repetição dos atos da personagem. TODOROV (p. 213) define que a repetição é uma das formas de dar sentido às ações e outros elementos da narrativa. O autor escreve que “Todos os comentários sobre a ‘técnica’ da narrativa apoiam-se sobre uma simples observação: em toda a obra, existe uma tendência à repetição que concerne à ação, aos personagens ou mesmo a detalhes da descrição”. Briony declina em vários momentos em seu objetivo: quando criança, não ouve os apelos da irmã de que ela estaria mentindo no depoimento do estupro; na adolescência opta pelo trabalho braçal como enfermeira para equiparar-se à irmã. Apesar de fazer uma tentativa, não insiste em encontrar Cecilia para reverter o seu depoimento. Cala-se quando descobre que a prima acaba se casando com o verdadeiro criminoso. Por fim, escreve um livro após os principais personagens estarem todos mortos (ela mesma está velha e quase sem memória): episódios que serão melhor descritos nos parágrafos seguintes deste artigo. Se o autor optasse por transformá-la em heroína, o primeiro estágio a ser ultrapassado por Briony seria o “Chamado à Aventura“ (VOGLER, p. 161). Neste passo, seriam impostas situações que a levariam a efetivamente reparar o mal feito. Mas isso não ocorre. Ela prefere a culpa e a vergonha a se redimir perante Cecilia e Robbie. “A culpa refinava os métodos de tortura que ela se infligia, enfiando uma a uma as contas dos detalhes [daquela madrugada de verão] num fio eterno, um rosário que ela passaria o resto da vida dedilhando” (MCEWAN, 2008, p. 209). 5.3. Aproximação da Caverna Oculta e a teoria A segunda parte do livro é dedicada ao romance de Cecília e Robbie. Como autora, Briony imagina o sofrimento de Robbie como soldado e pela distância da amada. Basicamente, “Reparação” se divide em um segundo livro. A metalinguagem transforma o capítulo em um romance do século XIX. A longa espera do herói pela amada, a troca de cartas, o amor que prevalece à raiva e adversidades do passado servem para salvar a vilã da expiação. A menina, que na primeira parte do livro, havia desistido das fábulas para compor uma narrativa adulta - a percepção da cena na fonte e seus desdobramentos - agora recorre ao romantismo utilizando arquétipos e estágios descritos por CAMPBELL e VOGLER. A “autora” se dedica à construção de um herói. Robbie Tuner é o bravo soldado que sofreu uma injustiça no passado. Atende ao chamado e opta por ir para a guerra para vencer medos e obstáculos. Ele não está sozinho. Tem a companhia de dois helpers, dois soldados desgarrados de seu grupo que tomaram o cabo Turner como líder. Ele é o homem das decisões, o justo que salva crianças de bombardeios. Está no mundo especial, a França em guerra, e carrega consigo a dor de uma ferida de combate e o pedido de Cecilia para que ele volte. Resumindo, a “autora” o transforma em herói. Ali havia vales cobertos de árvores, riachos, choupos ensolarados que niguém poderia tirar dele, a menos que o matassem. E havia esperança. Vou esperar por você. Volte. [grifos do autor] Havia uma possibilidade, de voltar. Em seu bolso levava a última carta dela, com o endereço novo. Era por isso que ele precisava sobreviver, usar sua astúcia e evitar as estradas principais onde os bombardeiros, voando em círculos, aguardavam suas presas como aves de rapina. (MCEWAN, 2002, p. 243). Briony descreve a Cecilia como uma mulher forte, capaz de vencer a vergonha causada pela menina para reencontrar seu amor. Ela se desliga da família, desiste das riquezas e vai trabalhar como enfermeira. Vive em um apartamento pequeno e barato no subúrbio de Londres. Como Robbie é diagnosticado como um homem com “excesso mórbido de sexualidade” (MCEWAN, 2002, p. 245), apenas a mãe dele pode visitá-lo. Enquanto Robbie está na prisão, o único meio de Cecilia manter contato com ele é através de cartas. Briony fantasia que nem a distância ou a raiva de Robbie por ter sido preso inocentemente poderiam separar o casal. Cecilia ignora a vilã da história, que investe em cartas para recuperar a confiança da irmã. As tentativas de redenção, no entanto, não passam de ficção, como será demonstrado no final do livro. Em uma das cartas endereçadas a Robbie, Cecilia demonstra o desprezo pela irmã: “Preferiram acreditar no depoimento de uma menina boba e histérica. Aliás, até a estimularam, impedindo que voltasse atrás. Ela só tinha treze anos, eu sei, mas não quero nunca mais falar dela” (MCEWAN, 2002, p. 251). Anos depois, já na juventude, Briony manifesta o desejo de se encontrar com Cecilia, mas não revela o motivo, forçando a aproximação da caverna oculta1 (VOGLER, 2006, p. 212). No texto em que a irmã mais velha relata ao amado sobre os propósitos da garota, imaginando que Briony quisesse reverter o depoimento e ajudar a inocentar Robbie, Cecilia reafirma a característica principal desta vilã: “Talvez ela não esteja pretendendo o que eu imagino, ou não esteja preparada para levar a coisa até o fim. Não esqueça que ela é uma sonhadora” (MCEWAN, 2002, p. 254). Mais uma vez, escrever, no caso de Briony, não passa de uma tentativa de parecer heroína, disfarçando-se como o arquétipo do camaleão2. É neste capítulo também que Robbie sustenta uma teoria para justificar o fato de Briony tê-lo acusado. Dois anos antes de ser preso, enquanto os dois estavam em uma barragem, a menina perguntou se ele a salvaria se ela se afogasse e se jogou no rio. Robbie a salvou. Foi quando Briony disse que o amava. Na conclusão do herói, o motivo das atitudes da vilã: “Na sua [de Briony] imaginação, ele traíra o amor dela ao preferir a irmã. Então, na biblioteca, a confirmação de seus piores temores, quando toda a fantasia caiu por terra. Primeiro, decepção e desespero; depois um ressentimento cada vez maior” (MCEWAN, 2002, p. 280). Para VOGLER (2006, p. 124), uma sombra ou vilão pode surgir de um amor. Nem sempre os motivos que levam o vilão ao combate contra o herói têm uma gênese forte. Um motivo fútil, como um amor não correspondido e a inveja da irmã, pode estimular a sombra a prejudicar o herói. É o que ocorre neste caso. Pelo menos, é o que Briony, como “autora”, diz ao leitor, usando Robbie como voz. 5.4. O “eu” verdadeiro e a Provação O livro segue para a juventude da vilã. Na terceira parte do romance, é explorado o fato de a vilã de “Reparação” ter desistido da carreira de escritora para se torna enfermeira no mesmo hospital que a irmã começou a trabalhar quando abandonou a mansão. Briony depara-se com o “Mundo Especial”, onde também é humanizada ao se deparar com a morte de soldados - que a fazem lembrar de Robbie. A menina mimada agora se torna uma adolescente inexpressiva e obediente. Cumpre rigorosamente as tarefas que lhe são dadas no hospital. Escreve à noite, escondida. Tem apenas uma amiga, mas nunca se confidencia com ela. Na ausência do arquétipo do helper ou mentor3 - recurso bastante comum nos romances -, MCEWAN opta por reduzir ao diário a única companhia da personagem e é também o objeto que esconde a verdadeira face de Briony e não o que ela aparenta ser. O caderno de pensamentos de Briony é um instrumento da narrativa. Como o próprio narrador revela “Ali, por trás do crachá e do uniforme [na gaveta], estava seu eu verdadeiro guardado em segredo, acumulando-se em silêncio” (MCEWAN, p. 334). A escrita ganha maior poder do que qualquer outra ação no romance. Aqui, o registro de sua história no diário vira símbolo da covardia da personagem. É assim que nasce “Reparação” na mente de Briony. É ali que ficam estagnados os passos que um herói deveria seguir. Além disso, o objeto demonstra mais uma vez a arrogância da vilã. Por escrever, considera-se acima das outras enfermeiras e de outros personagens da história. “Naquele momento, o diário preservava sua dignidade: ela parecia uma estagiária de enfermagem, mas na verdade era uma escritora importante disfarçada” (MCEWAN, p. 335). É também neste capítulo que a vilã está a caminho da Provação (VOGLER, 2006, p. 229). Ela se encontra com a heroína e o herói e tenta salvá-lo (vale lembrar que isto ocorre apenas na imaginação de Briony). Ao encontrar o casal, a vilã percebe o verdadeiro motivo de seus atos contra Robbie. Ela sente ciúmes da irmã e sente falta da maneira como ela a tratava quando criança. Agora, em sua fantasia, Cecilia tratava Robbie da mesma maneira, enquanto para ela sobrava apenas o desprezo. Ao encontrá-los, ela parte em rumo à reparação, que seria a Recompensa (VOGLER, 2006, p. 253) da jornada. Mas este estágio não ocorre. 5.5. A verdade O último capítulo do livro mostra Briony idosa, aos 67 anos, diagnosticada com demência vascular, uma doença que a fará perder a memória aos poucos. É seu aniversário e ela receberá uma homenagem na antiga manção Tallis. Agora a casa é um hotel de luxo. Briony se tornou escritora e sente raiva de que Lola Marhsal, a prima mais velha que havia sido estuprada, está mais jovem que ela e casada com o verdadeiro autor do crime. Agora encontraria um dos irmãos de Lola, que estava promovendo a festa. Depois de assistir a uma apresentação de “Arabella em Apuros”, a peça que ela havia escrito para apresentar naquela noite de verão de 1935, a vilã fala sobre o último livro que deverá publicar. Ela começou a escrever “Reparação” em 1940 e levou 59 anos para concluí-lo. Não lançará o romance até a morte da prima e do criminoso. No entanto, ela revela ao leitor que inventou a história de amor entre Robbie e Cecilia através das cartas que ambos trocavam enquanto ele estava preso. O livro seria uma maneira de amenizar a culpa. Ao contrário do que se pode pensar, Briony não sente mais culpa. Sente-se realizada por ter concluído o livro. Robbie e Cecilia estão mortos e, para ela, não há mais o que fazer pelos dois. “Depois que eu morrer, e que os Marhsall morrerem, o romance for finalmente publicado, nós só existiremos como invenções minhas” (MCEWAN, 2006, p. 443). Não houve reaparação, recompensa, retorno com elixir. Todos estes passos são ignorados pela personagem. Com os heróis mortos, ela não espera nada mais. 6. Conclusão Briony Tallis é uma personagem complexa e difícil de ser analisada. Por vários momentos, há como se confundir ela como a heroína da história. A busca eterna pela redenção poderia ser sua aventura e a felicidade de Robbie e Cecília - mesmo que fictícia - a sua recompensa. Entretanto, é nas entrelinhas que a vilã surge. MCEWAN só revela ao leitor quem ela verdadeiramente é após a leitura completa de “Reparação”. Este é um dos grandes méritos deste livro. Ironicamente, a mudança da infância para a adolescência é o motivador das ações da personagem. O ponto de mudança e o de início. O sentimento de perda da irmã para o amante é o mote para a construção da vilã. Primeiro, ela tem um propósito: separar Cecilia de Robbie. Depois, parte para a Reparação ao perceber que a irmã não se sente grata por isso. O fato de MCEWAN ter cedido à Briony a autoria do livro sustenta ainda mais o papel dela como vilã. Manipuladora e detentora de toda a responsabilidade pelos fatos que ocorreriam com os outros personagens. Como escritora, ela segue os passos determinados por VOGLER (2006) e CAMPBELL (2007) para reconstruir o romance entre Cecília e Robbie e sua tentativa na ficção de reparar seu erro, mas como personagem não tem coragem para realizá-los. A diferença primordial entre Briony e um herói é o fato de saber que tipo de personagem ela é. Briony não está em busca de autoconhecimento, como é comum na trajetória de um herói. Isso fica claro quando, no último capítulo, não expressa arrependimento por não ter feito esforço real para mudar a história do casal. Em outros momentos do livro - quando narra a infância, por exemplo -, não deixa de se auto-construir como uma personagem inescrupulosa, pretensiosa e auto-suficiente. A covardia é sua maior característica. É este sentimento que a faz desistir de pedir perdão a Cecilia ou tentar salvar Robbie. Como escritora, ela sabe que é preciso se humanizar para se vestir de camaleão. Mas Cecilia percebe que o trabalho de Briony na enfermaria é apenas uma forma de expiação. A narrativa, no caso de “Reparação”, onde o narrador = igual personagem = autor do livro funcionou como discurso e trouxe à tona qualidades da vilania. Por estas razões, Briony foi uma personagem estimuladora. É uma vilã consciente das técnicas literárias. Se fosse real, ela saberia certamente como agir para fugir do estereótipo de vilã. Como TODOROV (1966, p. 229) explica “Os próprios personagens podem ter consciência destas regras [regras de ações da narrativa]”. E é assim com ela. Ela é vilã ao recriar o casal de heróis. Não tem mentor ou qualquer outro artifício para ajudá-la na jornada, a não ser a própria escrita. Mesmo sabendo o que poderia fazer para conseguir seu objetivo - redimir-se do erro - ela não o faz. Prefere escrever os passos ao criar coragem de segui-los. Ela nem chega à Caverna Oculta de fato. Desiste de encontrar a irmã. Prefere o ostracismo a assumir à família que errou. Briony pode fugir do modelo clássico, mas consegue o objetivo do qualquer vilão: destruir o herói. Referências bibliográficas CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007, 11a. edição. 1Na descrição de VOGLER (2006, p. 215), é o local ou momento no qual o herói tem seu embate final, onde irá se superar para chegar ao final da aventura, até seu objetivo. |
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