Gregory Haertel: “Não acho que a literatura muda o mundo” |
Médico psiquiatra e especialista em Sexualidade Humana, Gregory Haertel publicou em 2008 seu primeiro romance, intitulado “Aguardo”. No teatro é autor de “A parte doente” (2005), “Sujos” (2006), “Volúpia” (2008), “Renato, o menino que era rato” (2008) e “Passarópolis” (2010), uma adaptação do texto “As aves”, de Aristófanes; além de outras peças escritas em co-autoria, como “Amálgama” (2008) e “A sede do santo” (2010). Nesta entrevista Gregory fala da sua história e influências culturais, sua opção pela medicina, o encontro com a dramaturgia e seu processo de criação literária.
Gregory Haertel: “Não acho que a literatura muda o mundo” Em fevereiro de 2010 o Sarau Eletrônico entrevistou o escritor Gregory Branco Haertel. Médico psiquiatra e especialista em Sexualidade Humana, sua primeira inserção no cenário cultural se dá através da publicação de alguns dos seus poemas no encarte do CD “Waves”(1998) , de Luis e Luciane Beduschi. Depois integrou, como compositor e violonista, a banda “Azul Madeira”, que em 2004 lançou o CD “Minha Fatia”. No teatro, escreveu “A parte doente” (2005), “Sujos” (2006), “Volúpia” (2008), “Renato, o menino que era rato” (2008) e “Passarópolis” (2010), uma adaptação do texto “As aves”, de Aristófanes; além de outras peças escritas em co-autoria, como “Amálgama” (2008) e “A sede do santo” (2010). Ainda em 2008, Gregory Haertel lança seu primeiro romance, intitulado “Aguardo”. (Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Daniel Rautenberg) Quem é Gregory Haertel? Onde nasceu? Teve uma infância feliz? Nasci em Florianópolis em 1974, mas só nasci lá. Meus pais moravam em Blumenau, mas como uma tia minha morava em Criciúma, eles quiseram que eu nascesse em Criciúma. Porém acabei nascendo no meio do caminho. Então nasci em Florianópolis, mas poucos dias depois vim para Blumenau. Apesar daquilo que está escrito no documento de Identidade, sempre me considerei blumenauense, mesmo! Venho de uma família de classe média, onde meus pais são dentistas, meu avô por parte de pai era dentista, meu irmão também é. Tive uma infância bem legal, meus pais sempre tiveram um bom relacionamento. Morava no bairro Itoupava Norte, próximo ao Guarani Esporte Clube, onde o consultório dentário dos meus pais ficava junto à casa onde morávamos. No começo tínhamos uma outra casa, mas não me lembro dela. Havia na tua família alguém que cultivava a literatura, ou outras manifestações artísticas? Como são teus primeiros contatos com as atividades culturais? Bem, eu não sei. Tenho uma tia, que mora em São Paulo, que é médica e gosta muito de arte, e ela me perguntou isso algumas vezes. Meus pais não têm o hábito de ler literatura, ou de ir ao teatro. Mas desde pequeno tive uma formação religiosa. Meus pais fazem parte, até hoje, da Igreja Presbiteriana, e lá na igreja existia o hábito de leitura, de hermenêutica, de exegese da Bíblia, e talvez esse tenha sido o ponta-pé inicial para o hábito da leitura. Mas eu me lembro que desde pequeno, desde os dez ou onze anos, sempre gostei muito de ler. Fora da realidade da minha família. Onde estudaste? Estudei no Santo Antônio, que agora é o Colégio Bom Jesus, até o terceiro ano do Científico. Tive alguns professores que me marcaram bastante. Lembro-me da professora Cidália, de português, fantástica, que trabalhava muito com literatura e sempre me incentivou bastante. Acho que foi no primeiro ou no segundo Científico, tínhamos as aulas de redação. Já naquela época eu era meio rebelde, apesar de ser um aluno muito bom em termos de notas. Tinha sempre aquela coisa de redação de como foi o final de ano, e eu sempre fazia redação sobre aquilo que eu queria, sempre contra os temas que eram dados, e essa professora sempre apoiou muito isso. Estávamos em um colégio de padres, mas eu escrevia palavrão nos textos. “Professora, por que ele pode escrever isso?” “Deixa ele escrever porque tá legal.” Então sempre tive esse incentivo. Família presbiteriana... Bem, quando assistimos as tuas peças e, especialmente, em “Aguardo”, onde há trechos em que a ironia em relação à religiosidade, principalmente ao protestantismo e aos cacoetes da religião, é muito grande, fica a questão: como foi a tua relação com a religião. Havia um conflito? Sempre existiu um conflito bem grande em relação à religião. Muitas vezes de aproximação importante e muitas vezes de uma crítica bem feroz. Isso até os meus vinte e poucos anos. Dali para frente houve um distanciamento bastante grande em relação a isso. Minha família toda, principalmente por parte de mãe, é extremamente religiosa. Eu me lembro que desde pequeno já tinha uma história com a Bíblia, tanto com as coisas boas, como com as coisas ruins da religião, o pecado etc... Isso foi bem marcante. Dentro da própria igreja acabei me envolvendo com pessoas cujo pensamento afrontava o pensamento dos pastores. Fazíamos a exegese da Bíblia para ver o que realmente estava sendo falado, e não uma leitura fanática do texto. Mas essa aproximação e essa briga sempre existiu. Por algum tempo tens toda uma vida dentro da comunidade religiosa, e depois começas a te afastar. Houve algum fato que desencadeou isso? Não tem nenhum fato marcante. A dúvida em relação às crenças, verdades e certezas é uma coisa que foi me acompanhando durante todo esse período. Muitas vezes eu acabava entrando – e hoje vejo isso – mais fundo na igreja e no pensamento religioso para tentar entender o que existia de tão forte nessa busca por alguma coisa. Mas a dúvida, o ceticismo, sempre caminhavam junto. Era um problema de fé, e não tanto de religião... Sim, com certeza. A minha “briga” é sempre com a fé e as manifestações religiosas, independente do que venham a ser. Tanto com igrejas e com as sociedades que se criam a partir da fé, quanto com a própria fé mesmo. E isso se estende à política? Também. Na verdade isso se estende a quase tudo. Quando penso em ser humano, em relacionamentos, em igreja, em política, meu olhar é sempre muito cético. Tá, existe um jogo, vamos jogá-lo, mas esse jogo foi a gente que criou e só dá para viver desse jeito. Já que estamos falando de fé e religião, vou antecipar uma pergunta a respeito do teu romance Aguardo, mais especificamente sobre um personagem teu, o Cleiton, que fala da questão do gene. Outro dia, lendo teu blog “Rosetas e espinhos”, vi lá a descrição de quem é Gregory. Ali colocas um trecho do teu romance que se aplica ao personagem Cleiton, onde este diz da incapacidade de se revoltar, de que isso só pode ser genético. Por que te aproprias do Cleiton para te definires em teu espaço pessoal virtual? Nunca tinha pensado nisso. Nunca tinha parado para fazer a relação entre o personagem Cleiton e o motivo de ter colocado isso no perfil do blog. Mas acho que muitas vezes acabamos lutando contra uma coisa natural, que são essas dúvidas, esse ceticismo, e querendo acreditar em verdades quando isso não é o normal da vida da gente. Nós nos arvoramos de certezas e verdades para tornar a vida mais palatável, mas não sinto que isto seja assim na realidade. Disseste que começaste a ler muito jovem. Quais as lembranças de leitura que tens dessa época? Quando eu era bem adolescente, lembro-me de minha mãe me incentivando bastante, comprando umas coleções como a série “Vagalume”, que tinha títulos como “O escaravelho do Diabo”. Então me lembro que minha mãe me dava vários desses livros, e eu pedia para ganhar isso. Não queria ganhar roupa, não queria ganhar nada, queria ganhar livro. Depois comecei a ler mais ficção, e me lembro da série Duna, de quando tinha quatorze anos, com livros de ficção científica. A partir daí fui me interessando por outras coisas, e foi muito solitária essa busca. Nunca foi de amigos dizendo “tal coisa é legal”. Sempre foi de pesquisar, procurar, uma leitura me levava a outro autor, e assim as coisas foram caminhando. Enchia o saco de um autor, então passava para outro. Depois me lembro de Saramago, de quando eu estava na faculdade.. O primeiro livro que li dele foi o “Ensaio sobre a cegueira”, que achei maravilhoso e entrei numa de ler tudo que eu via do Saramago pela frente, até que cansei. Depois comecei a ler Dostoievski, que é um autor que me acompanha até hoje e do qual gosto muito. Tive uma fase de gostar muito do Faulkner, tudo que tinha de tradução eu acabava comprando, e às vezes comprava duas traduções pra confirmar o que estava acontecendo. Então sempre fui muito de gostar de um autor e segui-lo até a hora em que cansasse. Dentre os brasileiros, lembro-me que gostei muito de Hilda Hilst, e gosto ainda. Raduan Nassar... Lia tudo que tinha e passava para outro autor. Apesar de teres dito que tua família é ligada profissionalmente à saúde, não necessariamente filho de dentistas vai se formar psiquiatra. O que te levou a escolher a medicina e, na medicina, a psiquiatria? Até o último semestre antes de me inscrever no vestibular eu não tinha a menor ideia daquilo que queria fazer. Tinha passado um monte de coisas bem díspares pela minha cabeça. Resolvi fazer medicina por uma questão bem prática: na medicina posso fazer um monte de coisas, tenho vários caminhos a seguir ali dentro. E acredito que, também, por ter uma proximidade familiar com isso. Tenho alguns tios médicos, então as conversas familiares acabavam girando em torno de assuntos da saúde. Foi uma escolha pouco pensada, tinha uns 17 anos, mas da qual não me arrependo nem um pouco. Foi uma decisão impulsiva, no último momento decidi “vou fazer isso”. Quando cheguei na quarta fase de medicina, no segundo ano, pensei seriamente em largar o curso: “não é isso que eu quero, não quero ficar na frente de um microscópio, não quero ficar fazendo pesquisa, tem muitas outras coisas das quais gosto”. E o que me interessou muito foram as pessoas, as motivações das pessoas e o que leva a gente a fazer determinadas coisas. Nesse período, no segundo ano da faculdade, com 18 ou 19 anos, ainda tive o ímpeto religioso de pensar: “meu Deus, será que não é uma coisa mais religiosa que devo estar procurando?” Conversei com algumas pessoas, com alguns familiares, e antes de fazer a inscrição para o terceiro ano da faculdade eu disse: “vou continuar mais um pouco para ver o que acontece”. Foi aí que tive contato com a parte de psicologia médica e psiquiatria na faculdade e me apaixonei por isso. “Não, vou fazer medicina pra fazer isso!” Houve durante muito tempo um desinteresse meu por cirurgia e coisas que fossem mais medicina e menos gente, e um interesse muito grande por essas coisas de pensamento. Lembro-me que nessa época de faculdade, enquanto muitos dos meus amigos faziam plantões, eu estava fazendo curso de literatura do século XX, tocando... Estava fazendo umas coisas que não tinham nada a ver com o curso. O que ouvias nesse tempo? Eu gostava muito de Tom Waits, de rock inglês não tradicional, Cowboy Junkies, Lou Reed, Neil Young... Música brasileira, na época, era pouca coisa. Gostava de Paulinho da Viola... Sempre algo mais melancólico, introspectivo. Onde cursaste a faculdade? Fiz a faculdade na Federal, em Florianópolis. Terminei a faculdade e passei um ano fazendo estágio em um hospital psiquiátrico lá em Curitiba, o Pinel, que era um hospital com um viés bem psicanalítico. Depois disso fui para o Juqueri, em Franco da Rocha, São Paulo, fiz dois anos de residência em psiquiatria, fiz uma pós-graduação em sexualidade humana na USP e depois voltei para Blumenau. E o psiquiatra se infiltra no autor no momento da produção artística, seja esta da dramaturgia ou do romance? Há, em tua obra, essa presença do psiquiatra? Sempre tendo a falar que não, mas as pessoas falam que sim. Então não sei. A psiquiatria clínica, que exerço enquanto profissão, é muito menos profunda que uma psicanálise ou uma psicologia, já que é muito mais voltada a doenças e tratamentos medicamentosos. Por isso acho que não acaba tendo muita relação. Agora, os dois tratam de gente, então talvez as pessoas tenham um pouco de razão nisso. A partir de que momento começas a te interessar pelo teatro? Fui casado durante sete anos com a Paula Braun, que é atriz de teatro. Moramos juntos em São Paulo, na época em que eu fazia residência e ela fazia curso de teatro. Então ali comecei a entrar um pouco mais em contato com o que era o teatro. Até aquela época acho que se eu tivesse assistido três ou quatro peças na minha vida era muito. E lá em São Paulo tive a oportunidade de ver algumas peças que me marcaram muito. Uma peça chamada “Apocalipse 1,11”, do Teatro da Vertigem, que é uma companhia de teatro que trabalha em espaços alternativos e essa peça, se não me engano, foi apresentada em um presídio desativado. Era uma peça bem impactante, bem pesada, uma coisa que nunca tinha visto. Teatro para mim era aquele palco italiano, as pessoas vão lá e fica quase que uma novela ao vivo. Aquilo me marcou bastante. Comecei a ter contato então com o trabalho de alguns diretores, como Antunes Filho e outras pessoas de São Paulo que tinham um trabalho bem sério de pesquisa e fazer teatral, diferente daquilo que a gente está acostumado a ver no dia a dia. Quando Paula e eu viemos a Blumenau, ela logo entrou na “Cia Carona” e montaram “Os Camaradas”. Então acabei tendo um contato grande com todo o pessoal da companhia. Depois de “Os Camaradas”, que foi um sucesso grande, muito elogiado, a “Cia Carona” passou um período sem a produção de uma coisa nova. Eles estavam pesquisando muito material, mas acabaram não produzindo efetivamente nada. Até que receberam um convite do SESC de São Paulo para levarem algum material para ser mostrado lá. Eles não tinham nada, nenhum texto montado, e era para o mês seguinte. “A gente vai levar ‘Os Camaradas’”. “Não, ‘Os Camaradas’ a gente já viu, já passou por aqui. Queremos alguma coisa nova de vocês.” O Pépe propôs então se eles poderiam mandar um trabalho em processo, que nem existia. Nisso o Pépe já tinha lido alguns contos meus que estavam guardados na gaveta e a Paula mostrou para ele, que achou muito legal. Ele resolveu então me chamar para ajudar na montagem do texto para levar no mês seguinte a São Paulo. Levamos então “A parte doente”, que foram alguns monólogos recortados, e foi muito bem recebido em São Paulo, mesmo sendo um trabalho em processo. E dali pra frente continuou essa parceria. Interessante isso que dizes, tanto no que diz respeito a ser médico, quanto escritor e dramaturgo. O Pierre Bourdieu tem um texto em que ele justamente quebra com essa ideia de que você nasce predisposto a algo. Geralmente quando entrevistamos alguém, escutamos: “sempre quis ser isso, sempre quis ser aquilo”. No teu caso parece que as coisas vão acontecendo por acaso. Penso que as decisões que a gente toma na vida, na grande maioria das vezes, não são tomadas pela gente. Não é a gente que efetivamente toma uma decisão. Eu me lembro que quando estava escrevendo “Aguardo”, no final do livro fiquei pensando: “por que estou escrevendo isso aqui? Por que tem um rio levando as pessoas, a enchente e um monte de coisas?” E acho que é muito disso, das pessoas serem obrigadas por situações externas a tomarem um caminho que não é necessariamente o caminho que elas querem tomar, mas que precisam tomar por situações externas. E eu penso muito isso. Na verdade estamos limitados por questões práticas da vida. A vida vai levando a gente, e a gente fazendo o possível para se adequar a isso. Que não tem nada a ver com destino... Que não tem nada a ver com destino! São questões que se colocam na realidade. Decidi ir para São Paulo. Chegando lá, tive contato com o teatro. Podia não dar bola para isso, mas acabei entrando porque foi uma porta que me foi aberta. Meu olho podia não ter se voltado para isso que acontecia. Me parece que a gente toma decisões, sim, porém limitadas. Não são decisões totalmente conscientes. E onde te sentes mais a vontade, quando estás produzindo para o teatro ou quando estás produzindo com o objetivo de transformar aquilo em livro? São duas coisas bem diferentes. Quando escrevo, e na verdade escrevo desde a minha adolescência, sempre foi uma coisa muito minha. Nunca escrevi para alguém ler. Eu mostrava para dois ou três amigos, guardava na gaveta e deixava lá. Por quê? Porque sempre tive um pensamento de que a literatura e as coisas são muito para mim, não são para os outros. Se os outros se interessarem e gostarem, ótimo; se não se interessarem e não gostarem, não vai mudar meu jeito de fazer também. Sempre foi uma coisa muito minha! Sentia a necessidade de fazer aquilo. Era até uma necessidade meio masoquista, quando o que se está fazendo não é uma coisa prazerosa de se estar fazendo. Torna-se prazerosa quando você vê o resultado, depois. É trabalhoso, difícil! Então tenho pilhas de coisas de desde a minha adolescência guardadas lá. E esse fazer sempre foi uma coisa minha, tanto que “Aguardo” demorou muito tempo até eu resolver escrever e publicar. E o teatro não! O teatro é uma coisa feita totalmente para os outros. Não existe teatro real sem público e sem o olhar do público. Então são coisas muito diferentes! Sempre fui muito descritivo na minha literatura, de sensações, de repercussões de coisas pequenas que aconteciam e as grandes questões emocionais que aconteciam a partir disso. E no teatro não é assim, é o oposto. A gente tem que colocar a situação e deixar as situações virem a partir disso; salvo quando dramas existenciais ou monólogos, onde você vai colocar o que a pessoa está pensando. Na maioria do teatro é pelas situações que se vai chegar a esse pensamento. E tem algum dramaturgo em específico que, hoje, influencia-te quando vais escrever uma peça? Assistindo as tuas peças e lendo a respeito delas, coloca-se que trabalhas muito a partir de um grupo. Há os atores e todo um trabalho que faz com que haja uma construção coletiva. Entretanto há o autor, que é Gregory Haertel, que vai dar um rumo para aquilo ali, que vai disciplinar aquela indisciplina de vontades e tudo mais que é o trabalho dos atores. Nesse processo, existe algum dramaturgo que leste e que te ajuda a pensar uma peça? Vou falar uma coisa que vai ficar estranho. Acho chatíssimo ler peça de teatro! Das poucas coisas que li, Nelson Rodrigues gosto muito, Beckett gosto muito, até porque Beckett acho que é muito mais de se ler do que se ver encenado. Mas teatro gosto de ver, não gosto de ler. Então acho que não. A questão do Teatro da Vertigem, do pessoal de São Paulo, é muito interessante, e eu nunca li um texto deles. Alguns grupos brasileiros, como o Grupo XIX de Teatro, que trouxe Hysteria e Hygiene para Blumenau e que só vi em cena, nunca vi escrito. Então não tenho esse hábito de ler peça teatral. Interessante citares Samuel Beckett. “Aguardo” não é escatológico, não possui uma linearidade, é um livro que brinca com a ideia do tempo. E tem um trecho do livro, ainda no começo, que me lembra muito “Esperando Godot”, que é quando Adriana fala das tatuíras. Que a vida das tatuíras se resume a fazer buracos na areia para serem descobertas pelo mar, quando então voltam a fazer buracos na areia. E a personagem lembra disso enquanto vê o dono da padaria, todos os dias, cumprimentando e varrendo a calçada, ou seja, que é um pouco do Godot, que é um pouco do universo de Beckett. Então há realmente essa influência? Existe, e acho que é muito mais de pensamento mesmo... Essa questão dos fazeres repetitivos que a gente não se dá conta que está fazendo, e acaba voltando, e das motivações... “Por que a gente faz isso?” A tatuíra está lá cavando, e vai fazer de novo, e sempre com a mesma vontade, sempre com o mesmo ânimo. Essa é uma coisa que acho muito interessante. Literatura fazes para ti. Quando entrevistamos Adolfo Boos Júnior, perguntei a ele: “e o leitor?” Boos é um autor muito influenciado por William Faulkner. E ele respondeu algo como “o leitor que se dane! Não tenho que me rebaixar ao nível do leitor, mas o leitor deve se elevar ao nível do texto.” Quando tu fazes teatro, tens em mente teu público, visualizas um público ideal para aquela peça, e enquanto escritor não? Nunca pensei em quem vai ler o meu texto. Mas pensas em quem vai assistir? Penso. Penso que pessoas vão assistir e de que maneira isso vai mexer com essas pessoas. Nunca no sentido de agradar! Mas no sentido de? No sentido de mexer. Que seja impactante. Na verdade acho que é muito mais interessante mexer e ser impactante, da pessoa sentir aquilo profundamente, do que gostar e dizer “ai que bonito”. Então sempre penso que podem não gostar nada, mas que a pessoa veja e diga “mexeu comigo de alguma maneira”. Eu concordo com o Boos, em literatura, o público que se dane! Se tiver cinco pessoas que leiam, que entendam, que sintam essa empatia emocional, para mim está ótimo. Se não tiver ninguém, fiz minha parte, que está guardadinha na gaveta. Todas as tuas peças sempre tiveram uma boa repercussão, pelo menos naquilo que podemos imaginar de uma pequena aldeia como é Blumenau, de uma crítica possível nessa pequena aldeia. Mas de repente surge “Volúpia”. “Volúpia” é uma peça que mexe com a sexualidade, com a sociedade de consumo, com o tempo presente, com a moral local, com a moral não local. Como foi o processo de montagem dessa peça? Foi um processo super conturbado. Depois de “A parte doente” tive uma experiência com o Pépe, com a peça “Sujos”, com o “Grupo K”, uma experiência bem legal e bem pontual porque já vieram com bastante material pronto, com textos do Plínio Marcos e trabalhando com mendigos. Peguei aquilo e resolvi escrever um texto a partir do que eles já tinham. Então foi um trabalho mais fácil de ser feito e que eu adoro! Gosto muito da peça! Depois surgiu “Volúpia”. E a ideia da “Cia Carona” sempre foi a de fazer um trabalho onde todo mundo estivesse inserido e que fosse a cara de todo mundo. Para o “Volúpia” eles resolveram partir do nada. Na prática as coisas nem sempre são dessa maneira, porque sempre tem alguém que guia e também alguma coisa que acontece. Depois de algum tempo surgiu novamente a questão da sexualidade, que já tinha sido trabalhada em “A parte doente”, mas que a gente pensou que talvez merecesse um mergulho maior. Mas mesmo assim a gente queria que isso partisse dos atores. Então o Pépe e eu nos encontramos várias vezes durante um mês e bolamos uma coisa que chamamos de caixa de estímulos – a gente que deu esse nome. Nós colocamos dentro dessas caixas, que eram individualizadas para cada um dos atores, filmes de circuito, filmes pornográficos, textos de autores conhecidos dentro de uma literatura mais erótica, alguns textos meus, estímulos que poderiam ser sabonetes e outras coisas, roupas ou peças de roupas. A gente criou essas caixinhas de estímulos e resolveu fazer uma coisa que fosse atrativa para os atores, que foi criar um personagem fictício que se comunicava por e-mail, o Volupiana. Ele dizia para eles, “olha, tal dia você vai ter que sair de casa e chegar em tal local do Centro, com uma senha, e fica ali que alguma coisa vai acontecer.” A gente contratou um motoboy que foi até o local onde esses atores estavam, cada um em seu local e cada um sem saber dos outros, para receber a caixa de estímulos. Eles falavam a senha, recebiam a caixa de estímulos, e chegando em casa já tinham um novo e-mail desse Volupiana dizendo, “na próxima semana traz alguma coisa tua a partir disso que tem na caixa.” E daí começaram a surgir essas cenas. No começo, depois disso tudo, a gente saiu para fazer um retiro. Ficamos três dias fora para trabalhar em cima daquilo que os atores estavam pensando. E muitas das cenas que existem na peça surgiram dali. Partes pequenas, como a personagem da Sabrina Moura ouvindo uma música e se masturbando. O personagem do Léo Kufner enrolado num plástico-filme fumando. São tudo coisas que eles trouxeram e que a gente falava, “isso é muito legal, muito interessante”. Começamos então a criar em cima dessas coisas, a juntar essas histórias, quem são esses personagens, o que está acontecendo ali. Existiram três retiros, três fases desse processo. Um, nessa parte inicial em que eles recebiam e traziam alguma coisa. Outro, uns três meses depois, onde a gente perguntou para os atores o que era sexo e amor para eles. Cada um escreveu um texto, e lendo o que os atores falavam, escrevi um texto a partir disso, que acabou sendo o texto que o escritor fala no microfone, sobre as limitações, e do quanto a pessoa se joga na relação, e se se joga profundamente sem saber onde isso vai dar pode acontecer uma coisa terrível, e se não se joga também está deixando de viver uma coisa que é importante. Então isso já existia como embrião nos textos que eles trouxeram. E num outro momento foi juntar todo esse material e tentar criar alguma coisa que tivesse uma história, um começo, meio e fim, não necessariamente nessa ordem, mas com alguma coisa que tivesse um atrativo para as pessoas que fossem ver. Então foi um trabalho grande, com muita discussão. Tinha noites que a gente sentava à mesa e dizia, “não quero falar sobre isso”, mas existia muito debate. “O que nós estamos falando? Agora nós temos essa peça pronta, e o que ela diz?” “Ah, mas tem que dizer alguma coisa específica? A gente pode deixar esse jogo de impressões?” E na tua opinião, tem que dizer alguma coisa? Na minha opinião, não. Existia uma preocupação muito grande em como as pessoas receberiam isso, no sentido de, “mas eles estão falando mal de sexo, então?”; “eles estão achando que nós temos que fazer qualquer coisa?” Minha opinião pessoal é dane-se o que as pessoas estão pensando. Se elas saírem pensando alguma coisa e forem refletir sobre as coisas, ótimo! Que a gente tem que vir com algum tipo de inquisição, isso é uma coisa que todo mundo da companhia concorda. O teatro não é para ser educativo, no sentido de “isso tem que ser assim”. Mas tem que ser alguma coisa que movimente internamente as pessoas. De alguma forma fica a impressão de que há um moralismo na peça. A peça tem cenas de estupro e tal, e tem também as cenas que flertam um pouco com o discurso sobre a sexualidade atual, em que tudo é permissível dentro de um casal no sentido de você ampliar suas experiências. E há um momento em que uma das personagens masculinas se dá conta de que aquilo tudo também não o satisfaz mais. Então, para mim, enquanto espectator da peça, fica a impressão de que o sexo também não vai dar as respostas ou a liberdade que se espera. Nesse sentido, fica a impressão de um certo moralismo. O moralismo do qual falas, não me parece moralismo no sentido banal de “isto é errado e é pecado”, por exemplo. Mas me parece algo do tipo, “realmente, talvez isso não traga as respostas, ou talvez não existam as respostas”. A questão é muito mais de: existem essas respostas? Se a gente entrar numa religião, numa vida sexual, encontramos essas respostas? Acho que esse questionamento é muito rico. Estamos buscando respostas para quê, exatamente? A gente precisa ter respostas? As coisas precisam dar respostas para a gente? Eu acho que existe esse flerte mesmo com a permissividade e a não-permissividade, mas me parece que nenhuma das duas coisas traz respostas. Nem a permissividade, nem a não-permissividade. Tá, e a pergunta: o que a gente faz, então? Sei lá, cada um faz o que quiser! Acho que querer uma resposta acaba diminuindo todas as questões da vida da gente. Quando penso em moralismo, penso muito isso: isso é certo, isso não é. O que acho interessante é pensar: tudo é certo, tudo é legal, tudo é permitido, mas tudo que a gente fizer tem por trás as coisas reais. “Volúpia” teve uma recepção muito boa no Festival de Teatro de Curitiba, tanto de público quanto de crítica. Em Blumenau, lembro-me, fui assistir à estreia e percebi que alguns atores estavam bastante nervosos com o fato de apresentarem a peça aqui na cidade. E a peça chocou. Muita gente assistiu e houve diversas sessões. Mas o que mais me chama a atenção é que a tua peça seguinte é infantil. Ou seja, já tinhas tratado de temas sociais, como em “Sujos”, tratando dos fetiches e da sexualidade, é o caso de “Volúpia”, e de repente escreves “Renato, o menino que era rato”. Como é essa experiência de saíres de um universo teatral mais denso, pesado, underground até, e de repente fazer uma peça infantil? Novamente vem aquela questão de ser meio levado, das coisas acontecerem. A “Cia. Carona” já estava há algum tempo querendo montar uma peça infantil, e tinham pensado no “Pequeno Príncipe” e em alguns outros textos. De repente precisaram da peça e me falaram, “Gregory, vem cá e vamos ver o que dá para fazer.” E o “Renato” foi um texto muito meu, no sentido de eu escrever e chegar com o texto para eles. Algumas coisas foram mudadas, depois, com as cenas, a gente vendo como ficava. Mas o desenrolar, o começo, meio e fim, o desenvolvimento daquilo que acontecia, já tinha no texto. Bem diferente de “A parte doente” e de “Volúpia”. E foi uma experiência super nova! Nunca vi teatro infantil, nunca me interessei por teatro infantil, e achei legal trabalhar com questões como a perda, e novamente com um certo ceticismo para com a vida cotidiana, como um personagem que fica rindo o tempo inteiro e acha tudo maravilhoso, e a criança enche o saco daquilo porque vê que tudo não é ficar rindo o tempo inteiro. Trabalhar questões adultas dentro de uma linguagem infantil. Vamos falar um pouco sobre o romance? Apesar de não se chamar Blumenau, Aguardo lembra muito Blumenau. O fundador da cidade tinha como sobrenome “Aguardo”; Aguardo é cortada por um rio; Aguardo é tomada por cheias; Aguardo tem um povo que gosta de fofocas, enfim... A primeira pergunta é: por que Aguardo? Como nasce esse texto? Eu não me lembro o que veio antes, mas eu tinha vontade de escrever um romance numa cidade, num local específico. Eu estava conversando com o Arno, um ex-integrante da “Cia. Carona”, não sei se por msn, e num determinado momento ele colocou, “então tá, estou no aguardo”. Esse “estou no aguardo” me pareceu um nome interessante. Porque a cidade, como um todo, parece-me que está muito na espera das coisas acontecerem. O que motiva, o que desenrola a história, é o rio e não as pessoas. Então está todo mundo deixando as coisas acontecerem para ver no que vai dar lá na frente. E achei que o nome combinava muito com isso, com uma cidade que se mobiliza numa enchente. Uma cidade parada onde as coisas são obrigatoriamente mexidas pelas águas. Então escrevi para o Arno, “posso pegar esse nome, Aguardo, e botar no livro?” “Põe aí que vai ser legal...” Foi daí que o nome da cidade ficou Aguardo. Acho que já tinha algumas coisas escritas do começo do livro e achei que o nome ficou legal. Se tu me permites, gostaria de fazer umas inferências. Blumenau é uma cidade doente, e acredito que talvez como toda cidade. Está comprovado, entretanto, que somos grandes consumidores de fluoxetina, por exemplo. Não seria essa tua experiência com a cidade, com as pessoas que literalmente sofrem com suas psicoses, que vai fazer com que cries os personagens de “Aguardo”? Porque os personagens de “Aguardo” são todos insatisfeitos, doentes. O Cleiton, por exemplo, que me chama muito a atenção, é um personagem que, como em “Volúpia”, tem tudo e ao mesmo tempo não tem nada, ele vive um casamento frustrado, tem a melhor esposa do mundo que é, também, a pior esposa do mundo. A Adriana com uma vida que deu totalmente errado... Enfim, não haveria algum tipo de reflexo das tuas experiências enquanto médico nesta cidade [Blumenau]? Jogando bem aberto, acho que tem muito mais a ver comigo, enquanto pessoa, enquanto insatisfação com as coisas, enquanto ceticismo, do que com pessoas que eu vejo e que me falam coisas. Uma vez falei em uma entrevista que todos os personagens têm muito de mim quando escrevo, e meu pai veio dizer, “meu Deus, o que foi que eu fiz?” (RISOS) Só consigo escrever alguma coisa se eu já tiver sentido ou passado emocionalmente por aquilo. É lógico que não penso em me matar, nada disso, mas essas insatisfações têm muito a ver com esse ceticismo. As coisas da vida estão ótimas, mas é só isso? Como nos personagens de “Volúpia” que dizem “a gente está saindo, transando, mas é só isso que a gente vai ter?” Essa insatisfação eu acho que é uma coisa que me move muito e que aparece nesses personagens. Então acho que é muito menos uma coisa do outro do que minha mesmo. Não são os personagens que são doentes, mas talvez eu seja muito mais doente dentro dessa história. Por outro lado, em todas as cidades em que convivi, São Paulo, Curitiba, Franco da Rocha, sempre acabei lidando com pessoas que estavam dentro de situações difíceis, com quadros psiquiátricos. Então essa insatisfação é Blumenau, mas eu acho que Blumenau é todas as cidades. São Paulo é Blumenau, São Paulo é Aguardo. Acho que se fizermos um raio X, todas as cidades vão ter um pouco disso. Sobre a estrutura de “Aguardo”. Cada capítulo é um personagem, talvez cada capítulo poderia ser entendido como um pequeno conto, mas que depois vão se amarrando. Quanto à temporalidade, como já dissemos, ele não possui uma linearidade, brincando com passado, futuro. É a coisa da memória, já que nossa memória é caótica. Tu pensaste essa estrutura, ou ela foi nascendo conforme ias escrevendo? Escrevi o primeiro capítulo, que foi o da Adriana, acabei o capítulo e disse, “e agora, o que faço daqui pra frente?” Daquele primeiro capítulo fiz uma minicronologia: o que tinha acontecido, onde a Adriana estava. Aí disse, “esse personagem do Cleiton me interessa, então agora vou falar dele.” E sempre que terminava um capítulo ficava pensando, “meu Deus, e agora para onde é que vai isso?” Então esses cruzamentos, apesar de serem todos cronológicos e todos baterem em termos de data, foram muito aleatórios e muito da vontade de contar alguma coisa a mais de algum personagem que tinha aparecido antes. E por mais que existisse essa coisa aleatória, eu não sabia onde queria chegar no final do livro. Eu me lembro que existia sempre um cuidado muito grande com a forma de escrever. Então eu acabava um capítulo e pensava, “vou escrever em primeira pessoa? Vou cruzar ele com um parágrafo escrito em primeira pessoa e contar a história em um passado remoto, ou vou escrevê-lo em terceira pessoa e cruzá-lo com alguma coisa mais recente?” Então existia muito cuidado com a forma dentro de cada capítulo. Existia um cuidado com a forma, com as figuras de linguagem, com as metáforas. Não me lembro qual o capítulo, mas onde as metáforas estão muito ligadas com comida – se não me engano é na morte do filho da Adriana... Acho que é no capítulo do Ricardo, em que ele cai como um purê. Eu queria trabalhar um pouco com essa questão da comida e ser um pouco irônico com o trecho do menino ter caído pela janela e ter morrido, e comparar isso com comida, com uma coisa muito do dia-a-dia. Então essas coisas foram pensadas, mas o livro aconteceu muito por si. Fui sendo levado por isso. Recentemente assisti “O Anticristo”, de Lars von Trier, e a cena em que a criança cai da janela no momento em que os pais transam remeteu-me imediatamente a “Aguardo”. Eu também, quando vi a cena, disse, “putz, que legal!” Primeiro porque é uma cena maravilhosa, acho o filme fantástico, adoro Lars von Trier e achei a forma como a cena foi conduzida, lindíssima! Em 02 de dezembro de 2008, no teu blog, escreveste: “Escreveria aqui ‘até 2009’, mas desisto. Não escreverei. Espero, em breve, ter algo que mereça ser escrito. Escrever, por enquanto, me parece tão fútil quanto uma bunda bonita. Me despeço sem beijos.” Isso foi logo depois da enchente. “Escrever me parece algo fútil” diante da dimensão da dor humana. Poderias falar algo sobre isto? Foi um período em que a cidade e as pessoas que eu conhecia estavam sofrendo muito. Comigo e com pessoas muito próximas não chegou a acontecer nada grave, mas com muitos conhecidos sim. E me parecia que a coisa real, “o que a gente pode fazer pra mudar essa situação”, era muito mais importante do que ficar pensando em que rima vou usar, como vou estruturar um texto, como vou trabalhar com ritmo de texto. Isso me parecia tão pequeno na época, e eu sentava para escrever e falava, “eu sentando para escrever e aconteceu tudo isso!” Sabia que ia ser temporário, que logo eu novamente teria vontade de estar escrevendo, mas que naquele momento aquilo parecia um desrespeito com as pessoas, com tudo que estava acontecendo. Entretanto as coisas continuam acontecendo e continuas escrevendo. Para que escrever então? Nunca consegui responder isso. Não sei! Tem aqueles livrinhos de “por que escrevo” e tal, e posso até estar enganado na citação, mas se não me engano foi o Raduan Nassar que disse, quando perguntaram a ele por que escrevia, escrevo porque escrevo. Não quero mudar o mundo, não acho que o mundo vai ficar melhor porque estou escrevendo. Não sei! É quase um clichê falar isso, mas escrevo porque sinto vontade de escrever, como sinto vontade de ver um filme. Seria muito difícil passar muito tempo sem escrever. Conseguiria passar muito tempo sem publicar, mas ficar sem escrever, da forma como venho fazendo, deixando na gaveta, não vejo como. Agora, realmente, não acho que a literatura muda o mundo, não acho que deixa o mundo melhor, acho que às vezes deixa o mundo mais complicado. Mas não consigo imaginar um mundo que não tenha isso. Tua produção intelectual, principalmente no teatro e na literatura, é local, como toda arte, tem um pé no regional, mas também ultrapassa essas fronteiras. A pergunta, entretanto, é sobre o regional. Como tu vês o momento artístico e cultural no Vale do Itajaí, em Santa Catarina? É complicado. Sempre fui pouco ligado às questões políticas. Sempre fui muito mais ligado às dificuldades e dramas pessoais, do que aos dramas políticos. Sempre me interessou mais a pessoa do que a sociedade. Mas acho que do ano passado para cá existiu uma movimentação dos artistas no sentido de produção, no sentido de mostrar o quanto a arte é necessário e o quanto pode trazer de benefícios para as pessoas – esse é um pensamento bem contrário ao que tenho. Mas existiu uma movimentação nesse sentido, e que foi muito interessante por ver que existe uma produção grande na cidade. Eu não sabia que existiam tantos escritores e músicos que estavam produzindo tanta coisa aqui na cidade. Desde o ano passado, desde o momento em que todo mundo se reuniu em função do descontentamento com as políticas de cultura da cidade, eu acho que isso trouxe uma união, o fato de saber que tem uma pessoa que faz, que pensa parecido e que quer fazer coisas contigo, isso trouxe uma coisa que nunca imaginei. Sempre fui muito fora disso tudo, e me senti muito em casa vendo essas outras pessoas. Acho que esse momento, até pela necessidade de se colocar politicamente, devido às questões que vinham acontecendo na cidade, trouxe uma maturidade para os artistas de Blumenau, e para mim, que nunca precisei lidar com isso, que foi bem importante. Para ti, hoje, quais seriam os escritores fundamentais? Thomas Bernhard, um austríaco que escreveu em língua alemã, extremamente niilista, extremamente crítico com a sociedade. Lobo Antunes, que para mim mudou toda estrutura formal do texto e criou um universo literário onde, ou a gente entra e aceita que aquelas são as regras do jogo dele, ou a gente não entra. Faulkner, que é mais antigo, que brincou com essas questões de monólogo e tempo. Dostoievski, sem dúvida, por essa questão de interioridade e impulsividade. Enrique Vila-Matas, escritor espanhol que cruza textos ficcionais com ensaios. Um escritor alemão já falecido chamado W. G. Sebald, que trabalha com ensaio, fotos, com textos que não são nem um pouco emocionais, no sentido de criar dramas, mas que levam a gente a enxergar as coisas de um jeito diferente. Na América Latina, Roberto Bolaño, que é fantástico! Parece que ele está brincando de escrever, e ele brinca com essa coisa de associações de escritores, de picuinhas entre escritores e trabalha com escritores reais como se fossem escritores imaginários. Juan Carlos Onetti, que é um escritor uruguaio, onde tem um texto ficcional que de repente passa a não fazer sentido nenhum. Muito interessante! Na verdade, sou um apaixonado por ler! Projetos futuros? O ano passado foi um ano em que fiquei mais produzindo coisas, escrevendo e tendo contato com várias pessoas. Esse ano devem sair algumas coisas. Tenho um livro novo, cujo nome provavelmente vai ser “A casa antiga”. É um livro que está praticamente pronto e que também acontece nessa cidade que se chama “Aguardo”, que eu optei por ser uma cidade mítica. Então, apesar de existir o nome “Aguardo”, existir uma enchente, a gente não tem como cruzar os fatos com o que aconteceu em meu livro anterior. Então tem esse livro. Tem uma adaptação, com o pessoal da “Cia. Carona”, baseado no texto “As aves”, de Aristófanes. Vai ser uma comédia de rua, uma coisa que a “Cia. Carona” nunca fez, e que eu também nunca fiz, mas que tem muito a ver com toda essa ebulição política da cidade. Então, a vontade de fazer isso veio muito de tudo que aconteceu no ano passado, de uma insatisfação com os políticos e com os políticos que existem dentro da gente. Por isso a gente resolver trabalhar com esse texto. Tem uma peça que eu escrevi e que o grupo “Detalhe”, de Indaial, está montando. Tem um musical, que estou escrevendo o texto, baseado no mito de Orfeu, do André Ricardo de Souza, que é maestro do Teatro Carlos Gomes. Ele está fazendo a música, e o Pépe deve dirigir. Tem um trabalho que eu e o Pochyua estamos fazendo juntos, que envolve música, texto e encenação. Tem uma peça, de Florianópolis, que o Renato Turnes vai dirigir e que o Daniel Olivetto vai atuar, um monólogo. Estou com um projeto, também, com a Mareike, minha noiva, que está produzindo um cd e eu estou fazendo algumas letras. Então tenho milhões de coisas para fazer. E sobra tempo para a medicina? Sobra. (RISOS) Aos poucos tento diminuir o tempo de consultório, mas é difícil. Mas quando escrevo um projeto mais específico, como os livros, eu saio, vou para o meio do mato, fico uns dias sozinho, sem falar com ninguém, para poder me organizar. E aí tenho horário para dormir, para comer e para escrever. Para terminarmos, onde te sentes mais próximo do ser humano? Na medicina ou na literatura? (SILÊNCIO LONGO) Essa vou ter que pensar um pouco. Eu ia te responder que não me sinto próximo do ser humano em nenhuma das duas coisas, até porque acho que as pessoas são muito maiores do que aquilo que elas apresentam e são na frente da gente. Acho que a literatura trás uma proximidade muito grande comigo, não sei se com as outras pessoas. E a medicina é diferente no sentido de eu precisar entender o que a pessoa está sentindo. Mas acho que nenhuma dessas duas coisas contém o que é a pessoa. Mais alguma consideração? Apenas dizer que trabalhar com o teatro, com as pessoas ligadas ao teatro, trouxe para mim um aprendizado que, acho, não teria de nenhuma outra forma. Nunca fui teórico de nada, nunca li teoria literária, nunca me interessei pela questão de como se faz a mágica da coisa. Mas a proximidade com todo pessoal da Cia. Carona e com o livro é o que me ensina mais. |
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