“Estação das chuvas”, de José Eduardo Agualusa |
Estação das Chuvas é um romance típico de seu tempo e contexto. Discute uma Angola que se procura construir e afirmar à luz de uma unidade artificialmente construída pelas mãos europeias e, justamente por este seu aspecto sociológico, sem entretanto se tornar panfletário, merece leitura atenta e o coloca na estante de uma literatura pós-colonial que, se não pretende oferecer respostas, problematiza e estimula o debate. A “Estação das chuvas” de Agualusa Viegas Fernandes da Costa “... a poesia surgiu entre a juventude como o mais óbvio caminho de afirmação cultural: ‘tiravam-nos tudo, a dignidade, as terras, os homens. E no fim o próprio rosto. (...) Tiravam-nos todo o passado e nós olhávamos em volta e não éramos capazes de compreender o mundo. Então começamos a escrever poesia. A poesia era o destino irreparável, naquela época, para um estudante angolano. (...) Os jovens poetas tinham a consciência do seu papel messiânico. ‘Escrevíamos para a história’. – Falas da personagem Lídia ao Narrador. O angolano José Eduardo Agualusa pode ser inserido na segunda geração de escritores africanos pós-coloniais. Ou seja, uma geração de autores que problematiza o projeto de identidade nacional, construído a partir dos processos de independência dos países africanos, em oposição a uma primeira geração, que tratava o tema sob uma perspectiva heróica e maniqueísta. Nascido em 1960, Agualusa estava adolescente quando Angola passou pelo tumultuado e complexo processo de independência política de Portugal, acontecido em novembro de 1975, e que jogou o país em uma guerra civil que perdurou até o ano de 2002. Portanto, quando publica “Estação das Chuvas”, lançado originalmente pela editora portuguesa Dom Quixote em 1996, Angola era um país devastado pela guerra civil que confrontava o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Total Independência de Angola (UNITA). Outro grupo que protagonizou a disputa pela independência e pelo poder angolano foi a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Tais grupos político-militares alinhavam-se segundo os interesses internacionais próprios do contexto da Guerra Fria. Assim, enquanto o MPLA recebia apoio da União Soviética e de Cuba, Estados Unidos e África do Sul apoiavam a UNITA e a FNLA. Outros países, como Inglaterra, Zaire, Portugal e China também se envolveram no conflito. Não bastassem os diferentes interesses políticos, econômicos e ideológicos que significavam os diversos apoios internacionais aos movimentos de resistência nacionalista e/ou de guerrilha, a complexidade se manifestava dentro de cada grupo, já que não havia uma unidade ideológica. Se é possível afirmarmos que o MPLA representava o marxismo-leninismo, também é verdadeiro que este Movimento abrigava divergências poderosas em suas fileiras, o que acabava transformando aliados em inimigos. É neste contexto politicamente confuso do processo de independência angolano e seus desdobramentos que “Estação das Chuvas”, flertando com a historiografia e a ficção, situa sua fabulação. Assim como em um quadro cubista, onde a apreensão de uma realidade – cujos sentidos só nos permitem um conhecimento fragmentado – nunca é completa; também Agualusa nos dá a conhecer, indiciária e fragmentadamente, a história das lutas pela construção de uma identidade nacional angolana a partir dos relatos da personagem Lídia, poeta, historiadora e militante do MPLA que mesmo após o processo de independência, conheceu a prisão e o exílio. Relatos que nos chegam por meio da voz de um narrador, também personagem, também militante político do MPLA, que entrevistou Lídia e reuniu um pouco dos seus textos e correspondência. A narrativa de “Estação das Chuvas” constrói-se, portanto, de uma forma não linear, fragmentada, ora nos indícios legados por Lídia, ora nas rememorações do Narrador, ora nos diálogos dos demais personagens, e o quadro desdobrado ante os olhos do leitor torna-se assim multifacetado, próprio de uma nação construída à força das balas e do discurso. Principalmente à força do discurso, pantanoso, móvel, mas consciente de que um país nasce muito mais da palavra do que do concreto. Nesta perspectiva da palavra, de uma nação que se constrói a partir do discurso (ou dos discursos), José Eduardo Agualusa, em “Estação das Chuvas”, propõe a reflexão para além do político-ideológico, abrangendo o identitário, não apenas nacional, bem como o étnico, e o papel dos intelectuais nesse processo, tal qual apresentado na epígrafe com que iniciamos este texto. Lídia – a personagem – tinha consciência do seu papel enquanto intelectual engajada cuja função era produzir documentos artísticos que pudessem testemunhar a construção de uma nação, apesar de tudo, híbrida. De um hibridismo que conflitava com muitos dos discursos nacionalistas, racializados que eram. É nesta perspectiva que a personagem, quando convidada a participar de uma antologia intitulada “Caderno de poesia negra de expressão portuguesa”, responde: “Aquilo que eu escrevo não tem especialmente a ver com o mundo negro. Tem a ver com o meu mundo, que é tanto negro quanto branco. E sobretudo é o meu mundo! Se quiseres incluir trabalhos meus muda o nome da antologia para ‘Caderno de poetas negros’, mas ainda assim será um disparate, como fazer um ‘Caderno de poetas altos’ ou uma ‘Coletânea de poesia de mulheres obesas’.” E a consciência de Lídia a respeito do hibridismo cultural de que é consequência, em si e de seu país, torna-se ainda mais claro quando afirma: “todos nós pertencemos a uma outra África que habita também nas Antilhas, no Brasil, em Cabo Verde ou em São Tomé, uma mistura da África profunda e da velha Europa colonial. Pretender o contrário é uma fraude.” Se, por um lado, Agualusa apresenta uma personagem consciente de seu hibridismo, por outro reconhece a existência de protagonistas que se pretendem “puros” ou, ainda, personagens que poderíamos qualificar na condição de “colonizadores de boa vontade”. O “colonizador de boa vontade” (conceito desenvolvido pelo escritor tunisiano Albert Memmi) reconhece o direito à autodeterminação de uma nação colonizada, e até luta por este direito; entretanto, será sempre um colonizador. Em “Estação das Chuvas” o personagem Mário de Andrade desconfia dos angolanos brancos, no que era acompanhado por Lídia. Segundo o narrador, “ambos sabiam que os brancos gostavam de participar nas iniciativas culturais, mas só até um certo ponto, e raramente estavam dispostos a prescindir dos seus privilégios de raça e de classe” – são estes angolanos brancos identificados na condição de “colonizadores de boa vontade”. Também os defensores de uma identidade cultural não hibridizada são retratados por Agualusa, que os ironiza, como no caso de Antoine Ninganessa. Segundo o narrador, Antoine “estava sempre a dizer que as pessoas deviam deixar de imitar os brancos e ninguém devia vestir calças ou camisas, ninguém devia comer em pratos de alumínio, ninguém podia utilizar papel higiênico. As vezes exaltava-se e gritava que era preciso fazer tudo ao contrário dos portugueses. E então ele dava o exemplo e começava a andar para trás, como um caranguejo, ou sentava-se numa cadeira com as pernas dobradas ao contrário e virava a cabeça para as costas e falava não pela boca mas pelo ânus”. A força da ironia no trecho que apresentamos aqui torna clara a posição do autor José Eduardo Agualusa a respeito do seu entendimento de identidade cultural. Lídia, a escritora híbrida que, entretanto, não se descuida do seu papel ante a construção de uma nação, é a heroína da história. “Estação das chuvas” é um romance típico de seu tempo e contexto. Discute uma Angola que se procura construir e afirmar à luz de uma unidade artificialmente construída pelas mãos europeias e, justamente por este seu aspecto sociológico, sem entretanto se tornar panfletário (longe disso), merece leitura atenta e o coloca na estante de uma literatura pós-colonial que, se não pretende oferecer respostas, problematiza e estimula o debate. |
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