O Hobbit – Uma análise geral do prelúdio de O Senhor dos Anéis |
Neste ensaio o acadêmico de Letras, Eduardo Schiller, analisa o romance “O Hobbit”, de John Ronald Revel Tolkien sob a perspectiva estrutural e psicanalítica. Após um breve resumo da obra, Schiller procura compreender a constituição psicológica dos principais personagens da obra e sua inserção na estrutura narrativa do romance. O Hobbit – Uma análise geral do prelúdio de O Senhor dos Anéis Eduardo Schiller Lá e de Volta Outra Vez Bilbo Bolseiro1 vivia em uma toca hobbit2, o que significava uma toca confortável, “um túnel muito confortável, sem fumaça, com paredes revestidas e com o chão ladrilhado e atapetado, com cadeiras de madeira polida e montes e montes de cabides para chapéus e casacos.” (O Hobbit, p. 1)3 no flanco da Colina ao lado do rio Água. Vivia uma vida traquila e segura, como todo hobbit deveria viver. Quando surge Gandalf, o mago, porém o hobbit já pensa não ser nada bom ter a presença de alguém que induz jovens tranquilos a aceitarem partir em aventuras, que não por acaso um desses jovens foi o avô materno de Bilbo - conhecido como o velho Tûk - e é justamente esse o motivo de Gandalf ter vindo do outro lado do Água visitar o pequeno hobbit. Sem saber por que, Bilbo acaba convidando o mago para um chá na quarta-feira. Entretanto o mago vem acompanhado de treze anões, que vão entrando em sua casa e se dirigindo à mesa, servindo-se do chá sem nem perguntar se podem ficar ou se são bem vindos. Depois de terminarem o chá e acabarem com grande parte das despensas de Bilbo, antes fartas das melhores bebidas e comidas que um hobbit pode ter em sua toca, o mago e os treze anões contam seus planos de levar Bilbo em uma aventura para recuperar o tesouro perdido de Thror, guardado agora por Smaug, o magnífico “um enorme dragão vermelho-dourado” (O Hobbit, p. 210). Bilbo seria “contratado” como um ladrão na jornada deles até a montanha solitária, onde agora dormia Smaug sobre o tesouro. O lado Bolseiro de seu sangue dizia para que ele não fosse junto em algo tão arriscado, o que era até um absurdo de se pensar em uma resposta positiva vinda de um hobbit, porém em suas veias também corria o sangue dos Tûk e ele partiu em direção às Terras Ermas, onde ficava a Montanha Solitária, sobre um pônei juntamente com Gandalf e os treze anões. A aventura começa e Bilbo e seus amigos tem de adentrar as Terras Ermas, onde enfrentam muitos desafios, primeiramente se deparam com três trolls, que quase conseguem devorar ao hobbit e aos treze anões, mas Gandalf chega no último instante conjurando a luz do dia e assim transformando os trolls em pedra. Os trolls [...] precisam entrar debaixo da terra antes que amanheça, caso contrário retornam ao material das montanhas, de que são feitos e nunca mais conseguem se mexer. (O Hobbit, p. 39). Em seguida chegaram a Valfenda, na última casa amiga, onde Gandalf encontrou seu amigo Elrond, que decifrou o mapa do tesouro de Thror, escrito em letras-da-lua e que quase ninguém poderia lê-las. Atravessando Valfenda, o hobbit, o mago e os anões deveriam passar pelas Montanhas Sombrias, onde sabiam que os gigantes habitavam a parte exterior e os orcs a parte interior. Não aguentando as tempestades e gigantes na trilha no lado de fora, Bilbo e seus companheiros resolvem acampar em uma pequena gruta. A gruta era um portão para o lugar onde os orcs habitavam, então foram logo capturados pelos orcs e, é claro, salvos por Gandalf, que acaba matando o senhor dos orcs com uma espada feita por elfos propriamente para matar orcs. Porém a morte de seu senhor deixa os orcs enfurecidos e os heróis agora tem de fugir do labirinto dentro da montanha. O mago e os treze anões lutam com os orcs, fugindo e protegendo Bilbo, que acaba caindo e batendo a cabeça no chão, sendo deixado para trás por seus amigos por causa da intensa escuridão. O mago e os treze anões fogem do interior da montanha dos orcs, porém Bilbo fica lá dentro, sozinho, perdido e inconsciente. Ao acordar, Bilbo não entende muito bem o que aconteceu e percebe que está perto de um lago, ao se levantar acaba tocando no que parecia ser um anel – a escuridão era muito intensa e acabara de acordar, era impossível ver qualquer objeto naquela circunstância -, coloca-o no bolso sem dar muita importância e segue até a borda do lago. Do lago vê dois olhos brilhantes se aproximando lentamente, fixados intrigantemente nele. Ao chegar mais perto, Bilbo percebeu que era uma figura deformada do que poderia ter sido um dia um homem dentro de um barco, vindo até ele. Era Gollum, uma criatura que vivia no lago e se alimentava da carne de qualquer ser, por mais asqueroso que pudesse ser. Gollum vê Bilbo e fica intrigado por um hobbit estar ali, nas profundezas da escuridão. Por sorte do hobbit, Gollum não estava com fome e não o devorara, porém Gollum decide fazer um jogo de adivinhas, dizendo que se Bilbo errar alguma, então seria devorado. Bilbo pede então que se Gollum errar, deve mostrar-lhe a saída. O jogo das adivinhas começa e nenhum dos dois erra por muito tempo, Gollum fica cansado com a brincadeira sem fim e quando decide que vai devorá-lo, o hobbit põe a mão no bolso e se pergunta o que tinha ali dentro. Gollum entende tudo como uma adivinha e enlouquece por não saber responder, tenta três vezes, mas não acerta. Bilbo se aproveita da situação e exige que Gollum o leve até a saída. Porém neste momento Gollum percebe a falta algo que lhe pertencia, algo que chamava de precioso, e fica furiosamente curioso para saber o que seria que o hobbit teria em seu bolso, Bilbo não o responde e então Gollum volta o mais rápido que pode a sua ilha no meio do lago para averiguar se o seu precioso estava no lugar onde deveria estar e seguro. Bilbo aproveita este momento para fugir, e Gollum ao chegar na ilha percebe o que havia acontecido “- Onde está? Onde está? – Bilbo o ouvia gritar. – Ssumiu4, meu preciosso, sumiu, sumiu! Droga e praga, meu preciosso sumiu!” (O Hobbit, p. 81), correndo o mais rápido que podia para alcançar o hobbit e recuperar o seu precioso. No momento em que fugia de Gollum, Bilbo cai e ao cair com a mão no bolso o anel escorrega entrando em seu dedo. Bilbo caído vê Gollum passando direto e o segue por tempo suficiente para entender que não estava sendo visto e é no final do caminho até a saída que Gollum acaba revelando, ao falar sozinho que o anel, o seu precioso, ao ser colocado no dedo torna o usuário invisível. Com isso, o hobbit acha o caminho até a saída e chega até seus amigos. O que faz com que seja melhor reconhecido pelos anões que antes o desprezavam e não o achavam muito útil. O anel, porém, ficou em segredo. Depois de saírem das Montanhas Sombrias, ao anoitecer, o hobbit e seus amigos foram atacados por wargs, que desta vez pareciam que conseguiriam devorar os heróis desta aventura, quando surgiram no céu as águias, antigas amigas de Gandalf e grandes inimigas dos wargs, e salvaram o hobbit e seus amigos e os deixaram em segurança para que pudessem partir e chegar até a cabana de Beorn. Beorn era mais um dos antigos amigos que Gandalf fizera em suas aventuras tão comuns para um mago. Ficaram muitos dias no conforto da cabana de Beorn até partirem para a parte mais difícil, até agora, de sua aventura. Sem a ajuda do mago, o hobbit e os treze anões deveriam atravessar a Floresta das Trevas, cuja escuridão interior era tão intensa como o breu, praticamente nada poderia ser visto ali dentro. Muitos perigos tiveram que ser enfrentados dentro da floresta, tiveram que matar aranhas gigantes, atravessar rios com água negra e enfeitiçada, até que antes de chegarem ao fim da trilha, foram aprisionados pelos elfos da floresta, que se sentiram ameaçados por eles por estarem dentro da Floresta das Trevas, apenas Bilbo não é capturado, pois usa o anel para ficar livre, apesar de entrar nos domínios dos elfos da floresta para ajudar seus amigos a fugir. Os anões tem de fugir dentro de barris que eram jogados rio abaixo, o que os faz parar na cidade do Lago, onde vivem os homens, aqueles que conhecem a lenda do rei Thror sob a montanha, avô de Thorin, o anão mais velho entre os treze. O hobbit e os anões são bem recebidos e se preparam para ir até a Montanha Solitária, do qual agora estão muito perto. Ao chegarem ao portão dianteiro da montanha, já percebem o enxofre exalado através de fumaça vinda do dragão. Não há como entrar sem ser notado pelo dragão, até que Bilbo se lembra das escritas em letras-da-lua no mapa de Thror e acaba decifrando a adivinha para abrir uma passagem secreta até a desolação de Smaug, onde guarda o tesouro. Bilbo tem de entrar sozinho, e para isso usa o anel e fica invisível. Ao chegar até o salão principal, Bilbo vê Smaug, o dragão percebe sua presença e então os dois iniciam uma conversa. Bilbo não revela sua identidade – o que deixa o dragão perplexo – e conversa com o dragão em uma linguagem o mais parecido possível da do dragão, para que assim pudesse ganhar tempo e descobrir o máximo que pode do dragão. Durante a conversa Smaug se mostrou convencido de seu poder e força – Estou revestido na parte de cima e na parte de baixo com escamas de ferro e resistentes pedras preciosas. Nenhuma lâmina pode atravessar meu corpo. E foi esse convencimento que se tornou o ponto fraco de Smaug, pois no momento em que ele rolou pelo chão para mostrar a grandiosidade das pedras preciosas em seu corpo, foi que Bilbo descobriu que havia um bom pedaço no lado esquerdo do peito descoberto e vulnerável. Tendo esta preciosa informação, o hobbit foge da desolação de Smaug para contar a seus treze companheiros sobre o que havia descoberto. Na conversa, Smaug percebe que o ladrão – assim chamava Bilbo por não saber sua identidade nem sua aparência – foi ajudado pelos homens da cidade do Lago. Enfurecido, parte direto em direção ao Lago, buscando a destruição e o sofrimento dos homens. O dragão surge ao céu da cidade do Lago, atirando fogo a tudo e a todos que aparecem em seu caminho, trazendo morte e desgraça a muitas pessoas. Por sorte, quando Bilbo conta a seus companheiros sobre o ponto fraco de Smaug, um tordo ouvia sua conversa “Esses pássaros viviam muito e eram de uma raça mágica [...]. Os Homens de Valle tinham o dom de entender sua língua, e usavam-nos como mensageiros junto aos Homens do Lago” (O Hobbit, p. 222), e logo voara até o Lago, pousando perto de Bard, o homem que liderava a batalha contra Smaug, iniciando uma conversa. Para seu espanto, Bard entendia o que o tordo dizia, pois ele “era descendente distante de Girion, Senhor do Valle” (O Hobbit, p. 242), portanto Bard pode ver o ponto fraco do dragão e com um arco e uma flecha negra, vinda das forjas do Rei sob a montanha, derrotou o temível dragão. Ao entrar no porão da Montanha Solitária, onde agora estava apenas o tesouro de Thror, Bilbo e seus treze companheiros contemplam todas as riquezas guardadas ali. A notícia da morte de Smaug se espalha por todas as Terras Ermas e os homens do lago, juntamente com os elfos da floresta, se dirigem até a entrada da Montanha Solitária para reivindicar o tesouro ou pelo menos parte do tesouro. Thorin, o líder entre os anões é tomado pela ganância e não pretende dividir sequer uma moeda com os homens e os elfos. Uma guerra está prestes a se iniciar pela posse do tesouro de Thror, o Rei sob a montanha. Durante a noite, enquanto todos os treze anões dormiam, Bilbo sai discretamente da montanha para conversar com os homens e elfos. Ao conversar com Bard e o Senhor Élfico, Bilbo declara deixar sua parte do tesouro para eles, porém a parte do tesouro que Bilbo escolheu – e guardou em seu bolso antes mesmo de pedir se podia ou não pegar - foi a pedra preferida de Thorin, a pedra de Arken, cujo valor é maior que todo o ouro junto. Ao voltar a montanha antes que o sol nascesse, Bilbo percebe que Gandalf está, disfarçadamente, junto com os homens e os elfos e é aí que percebe que realmente fez a coisa certa. No outro dia, Bard, o Senhor Élfico e Gandalf chegam às portas da montanha com a pedra Arken, dispostos a negociá-la com Thorin. Porém Thorin chamara um exército de anões da Colina de Ferro, e do outro lado se postava o exército dos homens e dos elfos. Quando Gandalf se põe ao meio dos dois exércitos e o céu escurece, dos montes distantes vêm orcs montados em wargs, furiosos e dispostos a vencer esta nova guerra. Os anões se juntam aos homens e aos elfos e esta guerra inesperada chamada de a Batalha dos cinco exércitos foi terrível. Por fim, as forças do bem ainda tiveram ajuda das águias e de Beorn, e o mal foi destruído e a paz reinou nas Terras Ermas. Porém os anões Thorin, Fili e Kili morreram diante da batalha. Valle e a montanha foram reconstruídas e Bilbo pode voltar para casa, no caminho de volta contou com a ajuda de Gandalf e de Beorn. Bilbo passou a viver sua vida de uma forma diferente, ainda tranquila, porém diferente. A parte do tesouro que acabou ganhando lhe deu um pouco mais de luxo e conforto em sua toca hobbit. O anel mágico permaneceu em segredo. Bilbo escreveu suas memórias e as intitulou “Lá e de Volta Outra Vez, as Férias de um Hobbit” (O Hobbit, p. 295-296). O pequeno hobbit foi reconhecido entre os homens, os elfos e os anões, e apesar de ser considerado pelos outros hobbits como esquisito, Bilbo “foi muito feliz até o fim de sua vida; que foi extraordinariamente longa.” (O Hobbit, p. 295). Principais personagens e nações na Terra-média e o que há por trás dos seus símbolos * O lado do Bem Os Hobbits – Bilbo Bolseiro O que é um hobbit? “Um povo pequeno, com cerca de metade de nossa altura, e menores que os anões barbados.” (O Hobbit, p. 2). Os hobbits são como pessoas pacíficas, ou talvez medrosas, que gostam de viver em segurança e conforto. Os hobbits são todos muito parecidos uns com os outros, tendo características gerais muito próprias. Os hobbits não têm barba. Não possuem nenhum ou quase nenhum poder mágico, com exceção daquele tipo corriqueiro de mágica que os ajuda a desaparecer silenciosa e rapidamente quando pessoas grandes e estúpidas como vocês e eu se aproximam de modo desajeitado [...]. Eles têm tendência a serem gordos no abdome; vestem-se com cores vivas (principalmente verde e amarelo), não usam sapatos porque seus pés já têm uma sola natural semelhante a couro, e também pêlos espessos e castanhos parecidos com os cabelos da cabeça (que são encaracolados); têm dedos morenos, longos e ágeis, rostos amigáveis, e dão gargalhadas profundas e deliciosas (especialmente depois de jantarem, o que fazem duas vezes ao dia quando podem). (O Hobbit, p. 2). Hobbits podem se locomover agilmente sem serem percebidos, e é essa agilidade e discrição que faz com que - ao se arriscarem, o que é muito incomum vindo de um hobbit – sejam ótimos ladrões. Um hobbit é um personagem plano5, porém, a partir do momento em que sabemos que Bilbo Bolseiro é filho de Beladona Tûk e, - portanto tem sangue Tûk em suas veias - tudo o que ele pensa, sente e pode acabar fazendo dentro do desenrolar de O Hobbit se torna imprevisível, sendo classificado então como um personagem redondo6. A psicanálise está relaciona com a linguagem. “O sujeito diz mais do que pensa e do que quer dizer; a fala tem a propriedade de ser inevitavelmente ambígua.” (CASTRO, 1986, p. 5). Bilbo Bolseiro, no primeiro capítulo do romance, simplesmente nega o fato de ser útil o suficiente, como diz Gandalf, em uma aventura em busca de um tesouro perdido, nega também o fato do sangue dos Tûk correr em suas veias e fazer com que queira correr riscos e descobrir os desafios do mundo a fora. O fenômeno da denegação, em que algo dito negativamente, diz Freud, deve ser entendido como uma afirmação, é um momento privilegiado no qual toda a multivocidade da linguagem se evidencia (CASTRO, 1986, p. 5). A denegação é um modo de dizer a verdade do inconsciente. O “não” é um elemento em que revela conteúdos do inconsciente, que de outra forma não se revelariam. Caso Bilbo não tivesse feito questão de negar a ida à aventura atrás do tesouro, não seria possível saber da vontade dele sem ser o autor do romance. Então, no inconsciente e na sua representação verbal, o “sim” e o “não” têm essencialmente o mesmo significado. “nesse fenômeno [...] o inconsciente se oculta e se mostra ao mesmo tempo.” (CASTRO, 1986, p. 12). Nos outros hobbits do Condado, podemos perceber o juízo de condenação “operação ou atitude pela qual o indivíduo, ao tomar consciência de um desejo, a si mesmo proíbe sua realização, principalmente por razões morais ou de oportunidade.” (CASTRO, 1986, p. 12). Por serem pequenos e não serem providos de grande força, bravura e coragem, mesmo que um hobbit – a menos que ele venha da linhagem dos Tûk – venha a ter o desejo de se aventurar enfrentando orcs e procurando tesouros, não teriam muito sucesso. Além de que não precisam disso, pois se podem viver tranquilamente na Colina, seguros em suas tocas de despensas cheias e salas arrumadas, por que se arriscariam? Mas faz com que condenem um hobbit que faça tudo o que eles não podem fazer, condenam e o chamam de esquisito, pois Bilbo está realizando o desejo possivelmente recalcado deles. A realização da sombra conceitua-se como os “aspectos de nossa personalidade [inconsciente] que, por várias razões, havíamos preferido não olhar muito de perto” (JUNG, 1987, p. 168). Bilbo no fundo sentia uma pequena vontade de seguir com os treze anões em sua viagem, mas, até que cedesse de vez e deixasse que seu desejo de ter uma aventura o dominasse, reprimia o desejo inicialmente. Podemos ver claramente em Bilbo Bolseiro a reviravolta no processo de individuação em sua vida. Bilbo vivia basicamente no mundo dos prazeres, pois como tinha uma grande e bela toca hobbit e uma boa quantia em dinheiro deixada de herança por seus pais já falecidos, o pequeno hobbit não precisava fazer muita coisa para viver. Vivia aproveitando sua vida, tendo grandes desjejuns, com mesas e despensas fartas de comida e bebida a seu gosto. É aí então que aparecem Gandalf e os treze anões, convocando-o para uma aventura que mudaria sua vida e o levaria para o lado das responsabilidades no seu processo de individuação, tornando Bilbo equilibrado entre os prazeres e as responsabilidades, fazendo com que o processo de individuação se concretize, Bilbo se torne um adulto – apesar de seus cinquenta e poucos anos – e ele possa no final viver feliz para sempre. Os Magos – Gandalf Pelo acúmulo excessivo de atributos físicos, facilitando a sua identificação, Gandalf poderia ser classificado com um personagem estereótipo “um velho com um cajado. Usava um chapéu azul, alto e pontudo, uma capa cinzenta comprida, um cachecol prateado sobre o qual sua longa barba branca caía até embaixo da cintura, e imensas botas pretas” (O Hobbit, p. 4), porém não possui ações que sempre condizem com “papel” que assume, nem tem sua personalidade estável. Então pode-se dizer que Gandalf, na classificação quanto ao personagem na estrutura do romance, está entre um personagem esteriótipo e com tendência a redondo. Chamados pelos homens de magos, porém originalmente intitulados Istari, eram “espíritos mais antigos que o próprio Mundo e a primeira raça [...] no diminuto mundo da Terra-média na Terceira Era eles foram proibidos de mostrar seu poder [...] estavam limitados à forma humana e aos poderes que pudessem ser encontrados dentro do mundo mortal.”7. No romance, Gandalf é o manipulador de todas as tramas, tudo acontece a partir dos planos e orientações do mago. “Ao simbolizar a um só tempo os três mundos – Deus, pelo signo do Infinito, o homem e a diversidade do Universo -, ele é em tudo o ponto de partida, com todas as riquezas ambivalentes” (CHEVALIER; CHEERBANT, 1988, p. 583). Gandalf foi inicialmente um espírito antigo, que teve que assumir a forma humana e certamente representa melhor do que qualquer outro personagem o signo da imortalidade e do infinito, porém pelo fato de estar na forma humana, tem de saber como é ser o homem, podendo sofrer o mesmo que um. Mas, tem os poderes de um mago, e usufrui dos poderes da natureza e os acessíveis a ele. No romance, assim como explica a sua simbologia, o mago foi o ponto de partida para a mudança na vida de Bilbo e para a aventura dos treze anões e o hobbit em busca ao tesouro de Thror. “Histórias e aventuras brotavam por todo lado, onde quer que ele fosse, da maneira mais extraordinária.” (O Hobbit, p. 3) Os Anões - Thorin, Balin, Dwalin, Fili, Kili, Dori, Nori, Ori, Oin, Gloin, Bifur, Bofur e Bombur Exceto pelo fato de no final de sua aventura, mudarem em relação ao reconhecimento pela grandiosidade de Bilbo Bolseiro, os anões são personagens de densidade psicológica plana, pois dificilmente alguma ideia muda em suas cabeças. Os anões também são estereótipos da própria figura do anão, podendo ser ligado com os anões de A branca de neve e os sete anões, que são de baixa estatura, usam tocas coloridas, tem a barba grande e são ótimos mineiros, facilmente atraídos por tesouros. Os anões “estão ligados às grutas, às cavernas nos flancos das montanhas” (CHEVALIER; CHEERBANT, 1988, p. 49). Thorin, o líder dos treze anões, era filho de Thrain, que era filho de Thror, o rei sob a montanha postumamente chamada de Montanha Solitária. O que deixa claro que Thorin era o herdeiro do tesouro guardado por Smaug. Quando o assunto é tesouro, riquezas, e principalmente em se tratando das riquezas de seus ancestrais, os anões mudam rigorosamente suas atitudes “Thorin passara muitas horas junto ao tesouro, e a avidez pelas riquezas dominava-o” (O Hobbit, p. 257), desde com inimigos até com amigos. “Os anões são também a imagem de desejos pervertidos.” (CHEVALIER; CHEERBANT, 1988, p. 50). Depois da morte de Smaug, e de chegarem ao interior da Montanha Solitária, a perversão e a ganância dominaram a natureza de anão de Thorin, ele poderia fazer mal a qualquer um que pudesse querer tomar seu tesouro. Por essas más virtudes ele quase provoca uma guerra contra homens e elfos. Os elfos nasceram das luzes das estrelas. Os elfos são essencialmente os seres da natureza, compartilham seus poderes com os homens. “Eru, o Único, a quem os Elfos conhecem como Ilúvatar, criou a mais bela raça que já existiu. Ilúvatar declarou que os Elfos teriam e fariam mais beleza que qualquer criatura terrestre, e a eles serão destinadas as maiores felicidades e tristezas”8. São belos e estão sempre dançando e transmitindo alegria às pessoas. Alguns dos elfos que aparecem no romance, a princípio parecem ser malvados, pois aprisionam os treze anões por muitos dias em seu reino. Porém os elfos da floresta têm um certo mau presságio em relação a anões, portanto acharam que estavam rodeando seu reino para lhes fazer mal. Diferente dos hobbit, do mago e do anão, não há nenhum elfo que esteja entre os personagens principais, portanto torna-se difícil aprofundarmos o psicológico dos elfos. Porém pode-se notar, assim como nos anões, em uma proporção menor, a ganância por poder ter um tesouro lendário. “Se o Rei dos Elfos tinha um fraco, era por tesouros, especialmente prata e pedras brancas, e, embora seu estoque fosse rico, estava sempre ávido por mais, já que ainda não detinha um tesouro tão grande como o dos grandes Reis Élficos de antigamente.” (O Hobbit, p. 163) Os Homens – Bard Os homens nasceram da luz do sol. No mundo de Tolkien, os homens são seres inferiores, pois não possuem nenhum tipo de poder mágico, não possuem grande força nem nobreza de espírito, são mortais e facilmente derrotados. Os homens são uma raça um pouco deixada de lado, que apenas existe ainda por se multiplicar rapidamente. Porém entre muitos desses homens inferiores existe Bard, um homem como qualquer outro, porém batalhador, corajoso, astuto e honesto. Ele lidera parte da batalha dos cinco exércitos e é com seu arco e flecha que mata Smaug, o terrível dragão. “– Eu sou Bard e por minha mão o dragão foi morto e seu tesouro libertado” (O Hobbit, p. 256) * O lado do Mau, os Monstros Os Trolls – Bert, Tom e William Os trolls, assim como os hobbits, são seres criados por Tolkien. Eles são como ogros maiores do que um grande homem, com o rosto meio deformado e enormes e disformes pernas. Não possuem bons modos e usam um linguajar sujo. Três pessoas muito grandes sentadas em volta de uma fogueira muito grande [...]. Mas eram trolls. Obviamente trolls. Até Bilbo, apesar de sua vida pacata, podia perceber isso: pelas grandes caras pesadas, pelo tamanho, pelo formato de suas pernas, para não falar no linguajar, que estava longe de ser adequado para uma sala de visitas, muito longe. (O Hobbit, p. 33) Os Trolls são feitos de terra e é a ela que devem voltar ao nascer do sol, ou então são transformados em terra imóvel para sempre. Os Orcs e Gollum “Na tradição bíblica, o monstro [...] possui as características do disforme, do caótico, do tenebroso, do abissal. O monstro aparece, portanto, como desordenado, destituído de proporções” (CHEVALIER; CHEERBANT, 1988, p. 615). Dos primeiros elfos nascidos das luzes das estrelas, muitos deles foram capturados e jogados às masmorras na escuridão eterna, onde permaneceram até se tornarem irreconhecíveis, disformes, malvados e cruéis. Os orcs se tornaram um exército do senhor do escuro. Os orcs participaram da batalha dos cinco exércitos, onde lutaram - entre outros - contra os elfos, que odiavam os orcs, justamente por serem uma deformação de sua mesma espécie. “Os elfos foram os primeiros a atacar. Seu ódio pelos orcs é frio e amargo. Suas lanças e espadas brilhavam no escuro com um clarão de chama fria, tal mortal era a ira das mãos que as empunhavam” (O Hobbit, p. 275) No entanto Gollum também é uma representação de monstro por deformação e destituição de proporções. Gollum, de nome inicial Smeagol, antes de sua deformação era um hobbit, assim como Bilbo Bolseiro, e é nesse momento em que encontra o anel mágico no fundo de um lago. O anel dá poderes às pessoas proporcionalmente, por isso não lhe deu muitos poderes, assim como não deu muito a Bilbo, e com o passar dos anos – centenas – Gollum ficou deformado e passou a viver isoladamente na beira do lago, no interior das montanhas sombrias. O anel lhe consumira completamente e sua vida passara a ser em função do anel. “O monstro simboliza o guardião de um tesouro [...] o conjunto das dificuldades a serem vencidas” (CHEVALIER; CHEERBANT, 1988, p. 615). De certa forma Gollum pode ser considerado como o obstáculo a ser superado para que Bilbo pudesse adquirir o anel mágico, podendo assim merecê-lo. Os Dragões – Smaug “Havia um dragão especialmente ganancioso, forte e mau, chamado Smaug.” (O Hobbit, p. 22). Dragões são criaturas parecidas com enormes lagartos, com magníficas e assustadoras asas de morcego gigante, seu sopro pode exalar fogo. A menos que sejam feridos até a morte, dragões são de natureza imortal. E Smaug era assim, porém era protegido com escamas de ferro e pedras preciosas, tornando-se impenetrável. Sem falar em sua ganância e obsessão em possuir e poder morar sobre o maior tesouro que puder ter. “Dragões roubam jóias e ouro, você sabe, dos homens, dos elfos e dos anões, onde quer que possam encontrá-los; e guardam o que roubaram durante toda a sua vida” (O Hobbit, p. 22). Essa obsessão por tesouros pode não ser alguma opção do próprio dragão e pode ser interpretada através de sua simbologia, que diz que “O dragão nos aparece essencialmente como um guardião severo [...]. Ele é, na verdade, o guardião dos tesouros ocultos, e, como tal, o adversário deve ser eliminado para se ter acesso a eles.” (CHEVALIER; CHEERBANT, 1988, p. 349). Além disso, também, pode-se ligar a maldade do Smaug à simbologia do dragão “como um símbolo do mal e das tendências demoníacas” (CHEVALIER; CHEERBANT, 1988, p. 359). Romance de ação - como tudo funciona para que as coisas aconteçam na viagem do pequeno hobbit “Em cada romance devem acontecer coisas e numa certa ordem” (MUIR, 1975, p. 6). Em O Hobbit, tudo acontece de forma sucessiva, Bilbo e seus amigos têm de chegar até a Montanha Solitária, e até lá eles precisam enfrentar cada etapa de cada lugar onde passam, cada lugar é um desafio que deve ser superado para que os heróis possam prosseguir em seu caminho rumo ao objetivo final. Os acontecimentos na história se desenvolvem mais a cada etapa da aventura de Bilbo, cada experiência do que acontece aos heróis faz com que cresçam psicologicamente, deixando o romance mais interessante “a curiosidade é obviamente intensificada, se os eventos seguem uma linha” (MUIR, 1975, p. 8). “O romance de ação, por forçar o leitor a sofrer algumas vezes e porque seu objetivo principal é agradar, deve terminar bem.” (MUIR, 1975, p. 8). Na jornada até a desolação de Smaug, esse sofrimento acontece a cada etapa que superam, cada parte por onde Bilbo e seus amigos passam é como se fosse um romance de ação vencido, pois após esse sofrimento as coisas sempre terminam bem. “Em um romance de ação, um evento trivial terá conseqüências inesperadas” (MUIR, 1975, p. 9). A perda de Bilbo no interior da Montanha é um momento trivial da história, onde pela primeira vez o hobbit está no maior perigo que já esteve em sua vida e tem de se virar sozinho. Provando sua competência, o hobbit dá um jeito nisso tudo e de brinde ainda leva um anel mágico que para Tolkien rende mais três romances e uma trama inimaginavelmente complexa e surpreendente. Mas esse é apenas um exemplo dentro de muitos dentro do livro. Esse exemplo, juntamente com todas as etapas da aventura se entreligam e formam uma cadeia de acontecimentos ligados uns aos outros: “Será tramada uma teia inextricável em aparência que mais tarde será deslindada por milagre. Na ação, em sua complicação e resolução, nosso interesse é captado” (MUIR, 1975, p. 9). “A ação é o principal, a reação dos personagens a ela é incidental e sempre de modo a socorrer o enredo. Os atores em geral têm personalidades tais e tanta personalidade quanto a ação exige.” (MUIR, 1975, p. 9) Bilbo precisou ser um hobbit e um bom ladrão – silencioso, ágil, astuto, inteligente, virtuoso – para que eles pudessem ter chegado até a Montanha Solitária e ter enganado Smaug, e até decifrado a entrada do grande salão e encontrado o ponto fraco do dragão. E o final seria trágico se Bilbo não fosse bom o suficiente para iluminar a mente dos povos élficos e anões para que não guerreassem por ouro, pois se não tivesse feito isso, no momento em que os orcs, montados sobre os wargs, chegassem para a guerra, certamente os homens, os elfos, os anões e o herói hobbit, Bilbo Bolseiro, teriam morrido em batalha e a Terra-média permaneceria no escuro até o resto de seus dias. “É indispensável, que exista um fugir da vida no romance de ação; mas é também indispensável que a fuga seja segura. Não deve apenas ser emocionante, deve ser temporária também. O herói, tendo se divertido bastante, deve retornar à segurança e à ordem” (MUIR, 1975, p. 10). Bilbo foge de sua tranquila vida e vai à sua grande aventura, totalmente longe de qualquer realidade que já teve, e para seu agrado, tudo termina bem e ele pode voltar a sua toca hobbit e desfrutar de seus desjejuns de mesa farta. “No seu decorrer, o romance de ação em geral afligirá morte a certos personagens subsidiários; os malvados serão massacrados e mesmo alguns dos bons poderão ser sacrificados sem dano, desde que o herói volte à paz e à prosperidade depois de suas férias tumultuosas.” (MUIR, 1975, p. 10). Ao final da batalha dos cinco exércitos - apesar do bem ter vencido, os orcs e wargs serem aniquilados e Bilbo voltar à sua segura e confortável toca hobbit – os anões Thorin, Fili e Kili acabam mortos. “O enredo, em suma, está de acordo com nossos desejos” (MUIR, 1975, p. 10). No início do romance, Bilbo não se parece nem um pouco com um personagem de uma história que irá nos agradar, pois nele não há a vontade de se aventurar e nos proporcionar aquela história que queremos ver. Aquela história que jamais iremos viver, pois no romance ela pode acontecer livremente, pois sabemos que no final tudo dará certo. Diferente da vida real, que não é nada fantástica, nem há magos para nos ajudar. “Exterioriza nossa vontade natural de viver perigosamente e contudo estar a salvo [...], é antes uma fantasia do desejo do que um quadro da vida” (MUIR, 1975, p. 10). Referências Bibliográficas BRAIT, Beth. A personagem. 5. ed. São Paulo : Ática, 1993. 95p. (Princípios, v.3). 1Ver p. 6, Principais personagens e nações na Terra-média e o que há por trás dos seus símbolos. |
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