A sonoridade do olhar |
O escritor Rodrigo Oliveira apresenta “Esculpir a Luz”, livro de poemas do escritor curitibano M. R. Mello, produzido artesanalmente pela editora Cozinha Experimental. A poesia de M. R. Mello destaca-se pela sonoridade e por sua peculiar construção vocabular. A Sonoridade do Olhar: Vislumbres de Esculpir a Luz - o olho e outros exílios - de m.r. mello. Rodrigo Oliveira “poema nenhum, jamais, nasceu A luz esculpida pelo som. O reverberar do fonema, que rasga o olho como uma lâmina d’Um Cão Andaluz. Que ao mesmo tempo em que cega, vara e abre o olho. Rasga o véu e liberta o olhar. Estar cego é ter o olhar liberto. “Estar cego é estar grávido de luz”. Esculpir a Luz, de m.r. mello detém-se sobre esse novo olhar. Ou sobre as possibilidades de novos olhares, às vezes despercebidos, como uma nota que vibra sutil, prenúncio da orquestra. Entre esses dois tons, esses dois prismas — da luz e do som, do olhar e do ouvir — descortina-se o livro de estreia do poeta curitibano. O texto contemporâneo encerra-se, enquanto objeto, sob um discurso anacrônico. Em dias de e-book readers, tablet pcs e indústria cultural, a obra apresenta-se artesanal. As pontas dos dedos podem percorrer a capa dura recoberta pelo tecido negro serigrafado, as páginas de gramatura generosa, os acabamentos impecáveis montados manualmente, volume a volume, pela Editora Cozinha Experimental (um vídeo do processo de montagem artesanal pode ser visto aqui). O prefácio de Mayla Goerisch, ilustradora da obra, adverte: os poemas de m.r. mello devem-se “ler, ler em voz alta”. Mais uma vez o leitor é alertado à sonoridade de Esculpir a Luz. Viremos a página e passemos ao índice. O mero vislumbrar dos nomes dos poemas lembra o descerrar de cortinas que revela a orquestra perfilada: “Chorar de rir e vice-versos para trompa e oboé”, “Rapsódia da nostalgia”, “Pianíssimo”, “Batuque indigesto sobre a nova engenharia dos versos”, para não citar outros. É a batuta do maestro ordenando um último instante de silêncio, seguido pela entrada dos primeiros instrumentos. A sinfonia começa com “Allegro tropíssimo para violoncelo, bandolim e cuíca”: “o poeta desentoca As notas aos poucos se sobrepõe, envolvendo o leitor com uma suave melodia ditada pelos fonemas cuidadosamente aliterados, pelo ritmo. O leitor se queda “(como se uma fruta aberta em suas mãos caísse E como melodia, Esculpir a Luz é envolvente. Tocante com notas de nostalgia aqui e ali. Mas tocante, acima de tudo, por ser humano. “nenhuma tragédia é mais Em “Rapsódia da Nostalgia” esse sentimento talvez se torne mais abrangente, com uma mistura de saudosismos compartilhados e não vividos, que relembra uma juventude fugida e um crepúsculo irremediável. Recorda que “adolescência / é língua tropeçando em língua”, “e a vida um lençol de tulipas / sons e silêncios colhidos sem pressa”. “Um ócio que desossa a alma” (p. 23-24) Em contraste, augúrio de que “então, será, já não seremos A mesma nota ressoa em “Auto-imolação do silêncio para vinil”, que resgata madrugadas “entre trapos e catraias Ao tom nostálgico acrescenta-se o lírico “Apologia prosaica ao lirismo bronco-dilatador”. Intimista, lembra o arco passando leve e baixinho pelas cordas dormentes de um violino: “o meu amor tem um cheirinho verde de grama molhada O poema percorre aromas vários de “coisas muitas / que eu ainda nem cheirei, o amanhã, quem sabe”. Como que reforçando a ótica de novos e inesperados olhares, quase convocando o olfato à obra, para se somar ao tato da capa em tecido e à audição constantemente provocada pelo cantarolar das sílabas de mello. Fazendo eco às memórias e à sensibilidade, vale nota também “Estudo memorialírico para relicário pagão”, que lembra que “os velhos possuem segredos atrás das dentaduras” e convidam a enfiar a morte numa gaveta. Em “Pianíssimo”, talvez, a proposta temática do livro se apresente de forma mais evidente: “Estar cego é reinaugurar O metapoético “Trabalho de parto” mais uma vez retoma a força oral de Esculpir a Luz: “parto como Esclarece: “porque poema nenhum, jamais, nasceu / de parto normal” e continua: “e assim, no cesariano contato e encerra: “e o poema oscila, excitado / como as ondas de um eletrocardiograma” (p.67). "Trabalho de Parto" ressalta ainda outra característica do texto de m.r.mello (assim mesmo, sempre em minúsculas, à e.e. cummings). Com aparições especialmente marcantes nesse poema, mas com incisões aqui e ali por toda a obra, encontramos termos que seriam mais esperados em relatórios médicos do que em poemas: "parto como ou "no percurso quase prosaico Excertos como esses, "em que o cárdio esparge ideias pela carótida" (p.67) parecem ecoar os versos de Augusto dos Anjos. Os termos científicos que povoam os poemas de “EU”, do autor de Versos Íntimos, provocam certa tensão em uma leitura cheia de contrastes entre forma e conteúdo. Ainda que os poemas de m.r. mello não se atenham à métrica clássica como os de dos Anjos, “Esculpir a Luz” aponta experiência similar. Experiência enriquecida pelo inserir dos vocábulos científicos tanto em imagens tétricas como líricas. O olhar sobre o fazer poético retorna em “Breve discurso em defesa da indecência”, que dialoga com o pop e o erudito, com o poema e a poesia. “Um poema”, lemos, “no mais das vezes / não vale nada”. E lembramos que as rimas (“oh, Camões!”) podem ser ricas, senão nas penas, então nas picas, “na cadência bonita da / foda”. m.r. mello alterna constante do complexo e do erudito (do técnico, até), ao ordinário e ao vulgar. Do lírico ao prosaico, esculpindo o som e, mais do que ele, a vibração. Explorando a forma do fonema e a tessitura do poema. Testando o retinir de cada fio da trama poética como se fosse uma teia. Uma teia tecida em cordas de violino. |
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