Poesia Quero-Quero |
Mais que um escrito, o livro “Guardião de datas”, de Helio Ferreira, é uma leitura do êxodo. Mais que uma estreia, a confirmação de um processo de autoria. E, ao mesmo tempo, muito menos daquilo com que nos podem brindar os rótulos literários, vendidos a granel no mercado das letras, por ser “apenas” poesia. É desta forma que o jornalista Ben-Hur Demeneck inicia o prefácio do livro de estreia deste poeta paranaense, e que o Sarau Eletrônico publica na íntegra. Poesia Quero-Quero Ben-Hur Demeneck
“Descobri na pele a verdade:/ quem muito lê fica pouco;/ nunca mais descansa”. Esse excerto de um dos poemas de Hélio Ferreira sintetiza o estilo desta obra e da relação entre autor-leitor que ele é. Nas páginas seguintes, poemas sobre amor, solidão, morte, infância – com suas brincadeiras de pátio e de rua. Aquilo que se repete entre os vates ao longo dos séculos, mas tal qual a taça da fábula árabe, sempre volta a se encher de pedras preciosas. Em particular, um ambiente típico do interior brasileiro. Não importa que seja do Paraná, pois a divisão entre metrópoles e interior consegue explicar mais do que se soubesse em qual ente da federação se está. Da mesma forma que as cidades médias se parecem entre si de modo constrangedor, em sua luta entre provincianismo e as lufadas de cosmopolitismo. A gaveta prendeu os originais por mais de cinco anos. Se parece motivo suficiente para aguçar a curiosidade dos colegas jornalistas, acodem as palavras de Paulo Hecker Filho – “para o poeta basta o que escreve,/ o poema dá sentido à sua vida”. Ao acompanhar esta publicação temperada na espera, tenho a convicção de que, entre os “poetas menores” e os “poetas” dos versos de Hecker, Ferreira demorou para se perceber membro do segundo grupo, embora sempre soubesse não pertencer ao primeiro. Neste livro, há apenas poesia e nada mais. A não ser que se queira reconhecer nessa coreografia linguística umas marcas históricas. Decantação custosa, por mais tempo que se deixe sedimentar essa mistura de tantos elementos. Uma obra escrita a partir de experiências mundanas, concretas, mas que apontam para o que é humanamente compartilhado. Ela nos conduz a um estado atemporal, a um capricho em fazer da areia da ampulheta apenas aqui-agora. O salto no vazio desse artífice, porém, tem como pano de fundo o final dos anos 1970 e a década de 1980 (a “carruagem que perdeu o condutor”). Um movimento allegro ma non troppo que transforma o espaço e as relações humanas de um mundo agrário dominado pelo sistema comunitário dos faxinais que sucumbe ao agronegócio, a uma economia sem rosto conhecido, ausente da confiança mínima dada pelos olhos nos olhos. E lá se vão os migrantes se adaptar aos subúrbios com características mistas de campo, na paisagem, nos costumes dos novos residentes e na poeira em suspensão enquanto o vento dos acontecimentos balança as palmeiras. Adiante, apenas poesia e nada mais. Em Guardião de datas, além dos sinais de um êxodo administrado em estatísticas, há aquele que passa indiferente a elas – o existencial. Esse nasce da consciência de que não existe a terra natal e de que falta para si um lugar de retorno. Há versos em que a infância se apresenta como um ponto de partida da linguagem, das imagens inteiras, da indiferença à morte – ou como diria o autor em entrevista: “uma época em que eu não possuía um desconforto metafísico”. Em contrapartida, a “foice invisível” aparecerá pelos versos como elemento da vida. Nesse meio-tempo, evoca-se a desconcertante realidade já revelada por Walt Whitman nos versos – “Uma criança disse: ‘O que é a relva?’, trazendo um tufo nas suas mãos. O que dizer a ela? Sei tanto quanto ela o que é a relva.” A poesia veste bem a roupa de coisa in-útil, argumentara o autor de Caprichos e relaxos. Feita a lembrança, os versos de Guardião de datas fazem vibrar a nossa cultura por ser um testemunho consistente do letramento nessa América Latina complexa, de autores universais coexistentes com taxas elevadas de analfabetismo absoluto e funcional. Dados de 2009 apontam que o Brasil possui 14 milhões de analfabetos, o equivalente a 9,7% da população acima de 15 anos (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Pnad/ IBGE). E 15% dos brasileiros entre 15 e 24 anos podem ser classificados de analfabetos funcionais (Inaf,- Indicador de Analfabetismo Funcional – pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro). Este livro consegue documentar sentimentalmente o processo de formação de um leitor. Porta voz de uma cultura iletrada O autor tinha tudo para se contentar com a oralidade. Ele é primogênito de uma família de cinco irmãos, todos saídos de uma comunidade marcada por valores camponeses. Se os tempos preferiram alardear um aforismo de Jean-Jacques Rousseau, de que a sociedade corrompe o homem, ora se esquece do quanto o mundo rural tende a flertar com tabus religiosos, superstições, a identificar o trabalho braçal como único reconhecimento possível pelos pares, oportunidade e tanto para vicejarem exemplos de anti-intelectualismo. Em certos lugares, chega-se a ter a Bíblia como leitura central, uma régua narrativa que mais serve de palmatória que para a milimetragem. Nesse furacão por que passou, o autor conseguiu acompanhar desde dentro o barulho da ventania, com um livro sob os olhos. Entusiasmo erguido nos primeiros anos, por narrativas faladas, quando ouve os contos fantasiosos de Nhô Adélio, um camponês do faxinal d’Os Góes, cidade de Palmeira (PR). Ou os dizeres do enciclopédico “tiu Fidirico”, que seria ótimo jornalista se tivesse oportunidade de estudar. Por horas a fio, acompanhava causos suficientes para levar os lobisomens e as visagens a circularem livremente na sua imaginação de piá. Num mundo tomado por histórias, ao cair mais tarde na graduação de Letras estará em casa. Ali perceberá uma mudança de paradigma: enfim, a leitura pode ser feita sem nenhum prazer e trazer alguma utilidade, pois pode trabalhar de professor. Apesar da invocação para a vida prática consumir parte do lúdico, a audiência desse gênero, que ergueu gigantes como Homero, mais a devoração de prateleiras de bibliotecas o despertaram para os potenciais da literatura. Como o de transfigurar o cotidiano pela ação da linguagem. Ferreira é um brasileiro que, como tantos, vive no interior do país, em cidades com nomes tão gozados como um dia já foi Stratford-upon-Avon. Feito muitos, ele tem episódios como leitor para lá de interessantes. Quando era aluno da escola pública Instituto de Educação, vencia os quilômetros até a sua casa na Vila Cipa lendo algum livro de aventuras. Por estranho que pareça, cruzava ruas e bairros com parágrafos aos olhos. Sorte de que vivia onde a geografia era tomada por características rurais e nenhum carro ou moto o atropelou. Ou talvez nem tivéssemos este prefácio. O máximo que lhe acontecia era tropeçar pelas calçadas. Os livros finos podiam durar menos que os quatro mil metros de percurso. Para espanto da família, lia até de madrugada, preocupação redobrada de quem pagava a conta de luz ou cuidava da saúde do jovem. Não satisfeito, apagava a eletricidade e acendia vela para diminuir as denúncias da atividade madrugueira feitas pela luz ao fresto da porta. Ele mesmo diz que era por alegria, sem rigor. Apenas em Letras foi entender o que queria dizer crítica. Antes, enfrentaria clássicos do calibre de Stendhal e Dostoiévsky, mais densos que os agitados volumes de Karl May, pois a curiosidade de rato de biblioteca era contemplada com indicações dos mais experientes. A poesia mesmo só lhe chegará como um soco no estômago aos quinze anos, a partir de uma compra familiar em um bazar beneficente à beira da rua. Naquele momento, até se chateara porque, dos dois livros, apenas um era de ficção. Com o outro, Pequena consciência, de Fernando Vasconcelos, encontra eco de seus dilemas de adolescente. Dali para diante, pouco a pouco se encontraria com figuras como Manuel Bandeira, que lê e relê. Histórias de um leitor brasileiro, tipo de craque que aprendeu o futebol com bola de meia. Nas páginas seguintes, o deslindar de versos antiacadêmicos inscrustrados no cotidiano como um galho de arruda que deseja boa sorte. Afinal, quando a universidade reaparece na trajetória do autor, foi em pesquisa sobre Luiz Vilela, que, embora erudito, não é prolixo, verborrágico. O contista mineiro, mestre da síntese e do olhar que arranca filosofia e absurdo de ocorrências corriqueiras, aparece como outra referência para entender essa galáxia de letras. Guardião de datas, mais que uma coleção de temporalidades, tem um significado de Peabiru, ou seja, um “caminho cujo percurso se iniciou”. Uma obra de estreia, o pontapé inicial. Aquele nome era dado à estrada que ligava Atlântico e Pacífico há séculos, uma via entre a costa do Sul do Brasil e os Andes. E homônimo à cidade de Miguel Sanches Neto, autor de Chove sobre minha infância, romance definitivo para Ferreira chegar a altitudes de condor porque Chove... amarra trajetórias de vida e experiências estilísticas que lhe permitiram o estalo – “minha história também pode ser contada”. O poeta, de raízes conhecidas, ganhara asas. As marcas do espaço e do tempo, aqui, apenas servem de suporte para a escrita, jamais de fim. Esta poesia pode ser lida para qualquer público do festival de Medellín, em algum parque da cidade da eterna primavera. Pode ser apreciada com concentração na mesma cadeira da Biblioteca Nacional que Carlos Drummond de Andrade sempre sentava para penetrar surdamente no mundo das palavras. Ou em Buenos Aires, num edifício próximo da Avenida Libertador, pelo quinto piso, em um dos seus mais de 400 pontos de leitura, para quem quiser se mover nas linhas da imaginação em vez de nas áridas apostilas preparatórias de concursos públicos. É para ser degustada dentro de uma bodega de secos e molhados em Guaragi, um distrito mais conhecido por ser ponto de passagem. Onde esta palavra alcançar, terá leitores variados. Eu tive a felicidade de acompanhar o arremate deste processo autoral. Um dos episódios de aproximação desse plano simbólico se deu em 11 de agosto de 2009, quando entrevistei longamente Hélio Ferreira na cidade de Ponta Grossa, numa casa de empadas no bairro São José (Órfãs). Depois de editado, o material foi publicado em duas partes no portal Overmundo, chamadas de “Minha leitura do êxodo – I” (14 out. 2009) e “Entrevista com o poeta Hélio Ferreira” (4 jun. 2010). Antes, eu havia sido leitor do texto completo, enfurnado em gaveta por anos. Logo depois eu o convidaria para colaborar no jornal cultural que editei a partir de 2005, o Grimpa. Várias edições vieram com seus poemas na contracapa. Complementar aos objetos líricos, uma de suas crônicas (“Minha primeira morte”), mais que elogios, conseguiu arrancar lágrimas, segundo confidenciaram alguns leitores. Falava da morte do avô, de acordo com seu tratamento ficcional, acima das circunstancialidades pessoais. Ao acompanhar de perto a entrega dos originais para a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC), chego aqui contente por saber que Gutemberg oferece um brinde de felicitações. Chega de amontoados de palavras que mancham cada página. Prepare-se para caminhar pelo charco da memória, cercado pelos gritos de pássaros dados ao alarme. Ouça esse barulho amaciado por expressões populares com ressonância poética. E um pouco mais abaixo, o som de “quebrei três potes/ quebrei três potes/ quebrei três potes” de uma saracura distante. Segue uma escrita que, brandamente, depõe sobre um egresso do êxodo, este também da infância, das paisagens mudadas e perdidas, dos narradores hábeis na oralidade (feito os griôs africanos) guardados em uma neblina de inverno sobre o planalto. Quem estuda Literatura encontrará o que falar de voz autoral, ritmo, metáfora, aliteração, sinestesia, desenho na página. Ler a poesia de Hélio Ferreira, neste primeiro momento, nos faz atravessar uma paisagem de campo. Aquela que você decidir atravessar. O quero-quero (Vallenus chilensis) aparece no passeio com sua onomatopeia, pela brincadeira de transformar os ruídos familiares em substantivos. Ele que está mais para um desejo interrompido, uma tranquilidade perdida. Um bicho que, se gente fosse, seria sacudido por algum “desconforto metafísico”. Ele transformado em alto relevo de um exílio, embora não figure grandeza. Em algum tempo foi serventia para capivaras que dormiam pesado, ao acusar a entrada de predadores. Ou quando batia boca com o resto da fauna nativa e humana. Agora está mais largado aos pátios de fábrica, por detrás de telas que sustentam avisos de monitoramento eletrônico. Ou virou um penetra na programação desportiva, quando atrapalha um jogo de futebol da rodada apenas porque defende o ninho que construiu no gramado do estádio. Ele é uma ave guerreira, apesar de não deter algum porte marcial. Ele também está desamparado, só, no saguão do mundo – como todos nós. Aos humanos pelo menos resta se encontrar na poesia. Portanto, sinta-se em casa, leitor. Você tem diante de si um belo exemplar de quem arranca do átomo do cotidiano uma raridade, um signo de nossa extinção. Essa trama textual breca o vertiginoso ritmo deste início de segunda década dos 2000, ela é uma rede menos virtual que a tecnológica. Mais concreta, na qual pode deitar e tirar seus sonhos do baú. |
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