Péricles Prade: “Minha poesia é ourobórica” |
A bibliografia produzida por Péricles Prade é vasta em títulos e gêneros, entre eles poesia, conto, romance, crítica de arte, literatura jurídica, ensaística entre outros gêneros e não gêneros que, se aqui relacionados, tomariam espaço imenso. Escritor profícuo e metódico, a literatura de Péricles Prade é de difícil definição, flertando com o fantástico e, segundo o próprio autor, com o cubismo. Nesta entrevista, concedida ao Sarau Eletrônico, em seu escritório no Centro de Florianópolis, Prade fala da sua obra, do seu processo criativo, do amigo Lindolf Bell, das influências literárias e das suas atividades como intelectual envolvido com as letras. Péricles Prade: “Minha poesia é ourobórica” Um texto indomável, a ser laçado pelo leitor atento e persistente. Tentar territorializar o fazer literário de Péricles Prade, constitui-se tarefa ingrata e inócua. Surreal? Fantástico? Nonsense? Endobarroco? Cubista? A literatura produzida por este autor nascido na pequena cidade de Rio dos Cedros, e hoje radicado em Florianópolis, desafia e estranha. Afirma-se um escritor “cerebral”, metódico, mas adentrar ao universo “pradeano” é lançar mão de racionalidades outras que não a do cartesianismo. Adentrar ao universo “pradeano”, onde grotesco, irônico e erótico materializam-se em um mesmo corpo multiforme, é lançar mão do onírico e do metafísico. (Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos e transcrição: Eloisa Cristina de Souza) V.F.C. – Vamos falar um pouco da tua família. Quem foram os teus pais? P.P. – Nasci a 7 de maio de 1942, em Rio dos Cedros (conhecido no passado como “Arrozeiras”), à época em que era distrito do município de Timbó. Meus pais são Erwin Prade e Aurea Medeiros Prade. Ele nasceu em Rodeio, e ela em Florianópolis. Minha mãe era professora normalista em Rio dos Cedros, Altos Pomeranos, onde conheceu meu pai, então professor do curso primário, que, mais tarde, passou a se dedicar a negócios com arroz, como comerciante e industrial. Meu pai era um homem simples. Quando adolescente trabalhou na roça. Dizem que também foi alfaiate. Nunca conversei com ele a respeito. Para sustentar a família, antes da atividade de natureza comercial e industrial foi caixeiro-viajante de uma empresa de São Paulo, chamada Antinori. Nela, obteve um prêmio como melhor vendedor. Sendo o trabalho muito cansativo, acabou abandonando a profissão. Aos poucos foi se envolvendo na política. Elegeu-se diversas vezes vereador e exerceu o mandato de deputado estadual na condição de suplente. Foi uma grande liderança em Timbó, tanto que o seu nome foi dado a uma escola, a título de homenagem. Minha mãe é mais discreta. Lecionou por um tempo e depois, nascidos os cinco filhos (eu, primogênito, Umberto, Armando, Maria Margarida e Glacir) dedicou-se ao lar. Chegou a dirigir um cartório de imóveis. Meu pai faleceu em Rio dos Cedros, durante uma simples operação de úlcera. Parada cardíaca decorrente de problemas com a anestesia. Apesar de não ter curso superior, era preparado. Lia, todos os dias, jornais e livros. Também minha mãe lia bastante. O fato de eles serem leitores acabou me encantando. Desde criança eu leio. Meu primeiro poema escrevi aos nove anos de idade, quando mamãe aniversariou. Tenho essa ligação amorosa e literária com ambos. Do ponto de vista da influência, diria que a minha mãe me influenciou mais no campo da leitura. Já meu pai sempre me estimulou em direção da política. Minha origem genealógica conhecida vai até o Império Austro-Húngaro. Meus avós paternos, devido à guerra, saíram do sul da Áustria, rumo ao norte da Itália, fixando-se na região de Belluno. Portanto, sou brasileiro-ítalo-austríaco. Qual era o partido do teu pai àquela época? Partido Social Democrático, sempre em conflito com a União Democrática Nacional - UDN. Rio dos Cedros, naquele tempo, era muito interior. Como é que essa literatura chegava a tua residência? Tens lembranças disso? Após dois anos, morando em Rio dos Cedros, meus pais foram para Rodeio, onde ficaram pouco tempo. Depois, estabeleceram-se em Timbó. A leitura predileta, em Timbó, na adolescência, eram os gibis. Trocava-os com o Lindolf Bell. Nós nos furtávamos reciprocamente. (Risos). Fascinavam-me as aventuras de Roy Rogers, Rocky Lane e O Cavaleiro Negro. Tudo isso também influenciou, de certa maneira, o futuro da minha obra literária ligada ao fantástico. Na época – você é bem mais jovem do que eu e obviamente não se lembra – às seis horas da tarde, na Rádio Nacional, passava a novela “Jerônimo, O Herói do Sertão”. Não havia televisão e as pessoas acompanhavam as novelas com o ouvido colado nos rádios. Creio que o título do meu primeiro livro de ficção, “Os Milagres do Cão Jerônimo”, foi inspirado naquele famoso herói do Sertão. Organizei um clube em sua homenagem. Enfim, fui influenciado pelas histórias em quadrinhos e pelas novelas de rádio, sem falar nos livros que lia em casa, geralmente pedidos pelo reembolso postal. Algum autor nessa primeira fase? Ah, sim, lembro-me de Robert Louis Stevenson, autor de “A Ilha do Tesouro”, bem como de Daniel Defoe, que escreveu “Robinson Crusoe”, ambos extraordinários livros de aventuras. Também li na época toda a coleção de Karl May, tomada por empréstimo do falecido Ingo Kegel. Em português ou em alemão? A coleção de Karl May foi muito bem traduzida para o português. Não me recordo do nome do tradutor. Quando eu era criança e adolescente, tive muita resistência para falar o alemão. Não falava, mas entendia o suficiente para não ser enrolado. Lembro-me que bati num amiguinho que se referiu de forma jocosa ao meu irmão Umberto (risos). Eu poderia ter falado alemão, mas como o meu pai falava muito bem italiano, em especial o dialeto trentino, foi essa a língua de minha predileção. Minha mãe, com a concordância do meu pai, não queria que falássemos sequer o italiano, ou seja, outra língua além do português. Uma pena. Foi um grave equívoco. Tive que estudar italiano, sozinho, muito tempo depois. Hoje leio e eu falo fluentemente. Quem falava de forma razoável o alemão era o meu irmão Umberto, já falecido, casado com Esther, protestante e de origem alemã. E era uma família que tinha prática religiosa? Todos os familiares são de origem católica apostólica romana. Meus pais iam à missa aos domingos. Por esta razão, os filhos também a frequentavam. Fui coroinha no período da infância, mas nunca tive muito jeito para o ofício. Mandaram-me, aos dez anos ou onze anos, para o Juvenato Marcelino Champagnat, dos irmãos Maristas, em Curitiba. Não entendo até hoje o real motivo. Afinal, meu pai tinha plenas condições financeiras para me colocar em qualquer colégio laico. Imagino que era para ter um padre na família. Naquela época, o parente Padre Pedro Prade era reitor de uma Faculdade em Curitiba. Um orgulho coletivo. A verdade é que eu não tinha vocação sacerdotal, tanto que fui expulso do Colégio depois de cinco/seis meses de permanência. Sob qual alegação, Péricles? Segundo o bilhete que mandaram para os meus pais, eu havia pecado contra a castidade. Minha mãe, querida, até hoje não sabe exatamente o que aconteceu. (risos) E como é que eles descobriram isso? A história, em homenagem a Onan, vai sobrar para o meu livro de memórias. (risos) Mas tu pescaste contra a castidade? (risos) Sim, mea culpa, mea maxima culpa, pequei contra a castidade. Mas ocorreram outros fatos muito interessantes na breve estada no Marcelino Champagnat. Registro algo que me dá a exata impressão de como foi a Santa Inquisição. Sucedeu o seguinte: urinei no colchão, à noite, certamente devido à tensão da viagem de Timbó até o Colégio, bebendo água no caminho para neutralizar a ansiedade. E o que os padres fizeram comigo? No dia seguinte ao da entrada, quando perceberam que eu havia urinado, tive que atravessar todo o pátio, na presença dos colegas, com o colchão mijado na cabeça. Existe bullying maior? E não se trata de bullying de uma criança contra a outra! Trata-se, sim, de um tipo de punição que bem demonstra a forma autoritária e a maneira irresponsável de os padres conduzirem a educação, vendo “pecado” em tudo, pouco importando as consequências. Agradeço profundamente a Deus por ter me iluminado a ponto de urinar no colchão, pecar contra a castidade e depois ser expulso. O resultado é que esse evento danoso de certo modo também influenciou minha criação literária. Porque em “Os Milagres do Cão Jerônimo” tem um dos contos que se passa em uma aldeia, e na tenda tem um monge... Tem um personagem, Monge Astheros, que acabou se transformando em curta metragem, dirigida por Ronaldo dos Anjos. Há neste meu primeiro livro de ficção episódios ligados a figuras insólitas, soturnas. Outro filme, de animação, teve por base um conto da mesma obra, intitulado “O Herói salva a cidade dentro de um sapato”, dirigido e desenhado por Yannet Briggiler. Aliás, antes, ela havia animado o conto “Alçapão para Gigantes”, integrante do livro com o idêntico título. Os monges têm um comportamento ora de bondade, ora de maldade. Esta dicotomia aparece em vários textos teus. Minha obra revela essa imbricação íntima entre o bem e o mal, com ou sem ambiguidade, mediante a técnica de inversão mitológica. Remeto-me, por exemplo, à serpente do bem, malgrado seja invocada com frequência como fonte do mal. Outros mitos expressam bondade, mas que no fundo representam um dos elementos do mal. Conservo a crença de que vivemos em um mundo em que o bem e o mal se entrelaçam, ora prevalecendo um sobre o outro. Dualidade presente em quase todas as religiões. Antes de entrarmos no texto, neste pouco tempo citaste duas vezes o Lindolf Bell. Sabemos que vocês eram muito amigos, eu me arriscaria dizer aqui que eram quase como irmãos. Tu foste, talvez, a última pessoa com que Bell conversou ainda em vida... Fui a última pessoa. Ele estava sendo conduzido para a mesa de operação, na maca, quando falei com ele pelo celular de seu filho Pedro. Era, sem dúvida, praticamente um irmão. Frequentava a minha casa, e eu a dele, quase todos os dias, quando éramos adolescentes. Sempre fomos muito bem recebidos pelos pais. Continuamos nos visitando, após os recíprocos casamentos, até a sua morte prematura em Blumenau. Como vocês se conheceram? Tenho leve lembrança. Havia entre nós pequena diferença de idade. Ele era três ou quatro anos mais velho. Conheci-o no Ginásio Rui Barbosa. O professor Gelindo Sebastião Buzzi, nas aulas de português e literatura brasileira, sempre nos elogiava, estimulando-nos. Quem tomou a iniciativa da aproximação foi o Bell. Disse-me: “Eu queria te conhecer, o professor Gelindo fala muito de ti”. Começamos a trocar figurinhas. Escrevia poemas, eu também. Um mostrava para o outro as primeiras criações. Nossa linha literária era totalmente distinta. O professor Gelindo tinha paixão pelos românticos Castro Alves e por Victor Hugo. O Bell ficou impactado pelo Romantismo, pelo lirismo. Eu me desprendi muito cedo dessas vertentes. Minha poesia sempre foi e continua sendo onírica, e a minha ficção propensa ao fantástico. Mas há um elemento de diálogo, que é na crítica de arte. Tanto há que eu, o Bell, a minha primeira esposa, Arminda, e Elke, esposa dele, fundamos a Galeria Açu-Açu, em Blumenau. Fiz inúmeras críticas de artes plásticas para o catálogo dos expositores. Trocávamos ideias sobre pintura, escultura, desenho e outros meios de expressão artística. No entanto, a afinidade maior era de natureza literária. Diálogos intensos. Preparei uma antologia dos melhores poemas do Bell, após o seu falecimento, para a editora paulista Global, relevando, inclusive, o vínculo que nós tínhamos com o Vale do Itajaí. Porque, apesar de nossas linguagens serem distintas, o Vale do Itajaí marcou nossas criações. Reconheço a influência do Vale na minha poesia, mormente a partir de um quase afogamento no Rio Benedito. Submergi três vezes. Quem me salvou foi um coleguinha chamado Aristides. Tinha nove ou dez anos. O episódio marcou, pois são vários os poemas que tratam dessa ocorrência, de forma subliminar ou não, alusivos ao elemento água. Há relação da água com o fogo. Contudo, a água é mais presente, no plano literário, reveladora do drama que passei incólume, não obstante tenha publicado um livro intitulado Nos Limites do Fogo. E Lindolf Bell realmente escreveu o “Anima Mundi”? O Bell, realmente, escreveu o “Anima Mundi”. Ele chegou a ler alguns poemas, integrantes do livro, tendo publicado um deles no suplemento literário “Anexo”, do jornal A Notícia, de Joinville. Quem o localizou e o publicou foi Dennis Radünz. Existe, portanto, e boa parte foi lida por ele, em minha residência, no Morro da Cruz, onde,na capital, morei por um tempo. Lamentavelmente, os originais desapareceram após a sua morte. É um grande mistério. São conflitantes as versões do desaparecimento. A única coisa que posso dizer, repetindo Gonçalves Dias, no I-Juca-Pirama, é: “meninos, eu vi”. E ouvi. Tu mesmo dizes que tu e o Bell produziam literaturas completamente diferentes, mas não só tu e o Bell. A tua literatura é um caso quase que extraordinário, dentro da literatura de Santa Catarina, seja no conteúdo, seja na estrutura dos textos. Ao lermos a fortuna crítica, percebemos a tentativa de vários críticos de classificar e entender o que o Péricles está fazendo de fato, e desde o começo há uma grande dificuldade, uma grande confusão dos críticos em tentar de certa forma classificar teus textos. Isto não só diz respeito ao conteúdo do que tu dizes, mas também ao gênero. São contos, são poemas, o que são? Prosa poética? Há quem os classifique como pertencentes ao surrealismo, classificação que em várias entrevistas contestas. Contesto. A minha poesia está mais para o cubismo literário do que para o surrealismo. Tal sucede com a técnica dos fractais, com a composição, superposição, justaposição e conjugação dos fragmentos. Às vezes tenho recaídas surrealistas, mas não sou um típico poeta surrealista. Não sou. Os poemas são poemas. Os contos, perdão pelo truísmo, são contos, ainda que alguns sejam envolvidos pelas emanações poéticas. Como típica prosa poética, detecto-a apenas em A Lâmina (1964). Levantei outras classificações, como nonsense, realismo fantástico e, mais recentemente, endobarroco. O que pensas sobre todas estas tentativas de definição a respeito da tua obra, e como vês teus textos? Acho que a minha poesia, faço analogia com as artes plásticas, tem muito da estrutura e da concepção cubista. Volto ao ponto: corresponde, quase sempre, a uma superposição de blocos de fragmentos. No final, são poemas inteiriços, mas você pode, perfeitamente, como leitor, isolar os versos, pois têm vida própria. Então, não é necessário, para a compreensão do eventual sentido de um poema, que você tenha de lê-lo por completo, supondo que somente há autonomia se apreendido por inteiro. Mas te incomoda que as pessoas interpretem tua poesia como surreal? Não me incomodo, mas mostro que se trata de um equívoco, e por ser equívoco entendo que devo esclarecer para não ficar com o carimbo de poeta surrealista. Afinal, minha poesia é mais cerebral. O processo inconsciente atua, mas não de forma radical. A estrutura também é lógica, tem coerência interna, fruto de um grande projeto construído à luz da circularidade. Explico: meu primeiro livro de poemas chama-se Este interior de Serpentes Alegres, e o último denominei O retorno das Serpentes. Sou imantado pelo mito Ouroboros, serpente que gira sobre si mesma e tenta devorar a própria cauda. Publiquei 16 livros de poesias. Acaba de ser lançado Casa de Máscaras pela Iluminuras, de São Paulo, hoje considerada uma das melhores editoras de poesia do país. Concluí o livro Olho Gótico. Está no prelo. Escrevi, ainda, Sobre um livro mudo, criado a partir de 15 pranchas, desenhadas por um anônimo, e que são uma espécie de história em quadrinhos para explicar o processo alquímico até chegar ao ouro, à pedra filosofal. Pretendo o quanto antes publicar os livros inéditos, entre os quais também se encontra Memória Grega e outros poemas viajantes. Isso é definitivo? É definitivo. Tanto que meu último poema termina com as palavras “ponto final”. Depois vou me dedicar somente à ficção. Este poema já está escrito? Meu último poema já está escrito (risos), enquanto os anteriores aida não! (risos) Então há outros para serem escritos? É possível, mas o último está redigido. Quando publicar O Retorno das Serpentes, estarei fechando a circularidade ourobórica. Quanto à ficção, trata-se de um fantástico atípico por envolver diversos conceitos. O conceito do maravilhoso, do realismo mágico e do fantástico propriamente dito, enfim, o da esfera do estranhamento. É de Todorov o conceito clássico segundo o qual se reconhece um texto fantástico quando se está diante de uma hesitação, uma tensão entre o verdadeiro ou não, diferentemente do maravilhoso, como as histórias de fadas, em que você, quando lê, já sabe que o seu universo é inverossímil. Minha poesia e meus contos são estruturalmente distintos, é claro, mas concordo que grande parte das narrativas atraem carga poética. A respeito, a professora Maria Cristina Ferreira dos Santos publicou monografia, intitulada Alçapão, Alçapões, justificando o caráter de contos-poemas. Entendo que alguns contos têm essa sinergia poética e outros não. Alguns são lineares, legíveis, mas outros há de natureza simbólica, herméticos. Mesmo assim, constituem obra aberta. Ultimamente estou escrevendo uma série de contos mais palatáveis, com começo, meio e fim, para satisfação daqueles que preferem o menor esforço intelectual. Entretanto, estou em dúvida se é a direção correta. E as “Narrativas Mínimas”? A gente percebe que há neste livro outro Péricles Prade. No livro Correspondências - narrativas mínimas constam alguns contos de menor extensão e que têm a referida aura poética, mas em outros, de maior extensão, não há este viés. É uma linguagem muito próxima da crônica. O gênero crônica exerci de modo bissexto noutros textos esparsos, publicados no curso dos anos. E já que estamos tratando de prosa, escrevi um livro de ficção, chamado Hálito de Búfala, cujos contos compreendem crimes insólitos e imaginados. Também estou escrevendo contos de ficção científica. A obra terá o título Colônia de Sombras. Paralelamente escrevo sobre bruxas, demônios e vampiros, narrativas totalmente diversas da linha dos best-sellers atuais. Caso não mude, pretendo denominá-las Animais Noturnos. Assim que eu fechar o ciclo poético e o dos contos, terminarei o romance projetado. Já existe o início dele... Já o comecei, tem por título O Alquimista Sonolento. Está no capitulo 13. O número 13 da carta do Tarô representa a morte. Parei, ou me pararam. Estou preocupado (risos). Lendo os textos do dossiê que a revista Osíris publicou a teu respeito, tomei conhecimento da análise de Ronald Augusto, na qual pergunta: “com que leitor Prade pretende dialogar?”; e ele dá uma resposta: “para o poeta Prade, o leitor lhe parece uma entidade excessiva ou um mal necessário com qual tem que se a ver a muito contragosto, já que à revelia da sua vontade, o texto só se completa no instante da leitura”. Para quem escreves? Para falar a verdade, esqueço a existência de um provável futuro leitor. Quando estou escrevendo, conforta-me a visão prazerosa do texto, isto é, independentemente da futura publicação. É o prazer da escrita. O poeta e crítico Ronald Augusto, autor do prefácio de Casa de Máscaras, acha necessário esse link, a completude do texto no instante da leitura de minha obra. Discordo. Acho que o conto se completa quando coloco um ponto final nele. É uma entidade que tem autonomia que pode ou não ser descoberta pelo leitor. Em relação a este, minha impressão é diversa. O leitor vai iluminar e iluminar-se com a leitura. Logo, não vejo como absoluta a existência de um leitor para que o texto viva. E por quê? Porque existe a relação do escritor com o próprio texto. Neste caso, simultaneamente, o criador é o leitor. Se eu pudesse conciliar o que Ronald Augusto afirmou, diria que o texto que escrevo se completa quando, após ter sido escrito, eu o leio como se fosse um leitor exterior a mim mesmo. Em algumas outras entrevistas, como o da Revista Agulha por exemplo, falas principalmente a respeito da tua poética, dos poemas, da exigência de um leitor iniciado. Quem seria este leitor iniciado? Ainda que ao leitor, por não ser iniciado, falte uma cultura específica para a compreensão de certos temas/ideias/tramas/conteúdos, o que deve prevalecer, sempre, é a literariedade dos textos. Todavia, os textos, para serem mais expressivos, para terem força criativa maior, exigem da parte dos leitores um conhecimento prévio. Vou dar um exemplo: neste livro (mostra), intitulado Labirintos: variações sobre os arcanos maiores do Tarô, é obvio que alguém que conheça Tarô compreenderá melhor o tratamento poético das cartas. Quem leu diversos tipos de Tarô (o egípcio, o de Marselha etc) terá fruição melhor e maior dos poemas. Todavia, mesmo se o leitor nunca viu ou leu uma carta, o poema vale por si, pela sonoridade, pelas associações, pelos constitutivos elementos poéticos. Exemplifico com estes versos: “Nua / a mulher é a estrela ajoelhada / água viva / azul vestida na terra e no rio”. Pertencem aos fragmentos do poema “Uma estrela nua”, a uma das cartas arcanas do Tarô. Valem pela poesia a eles inerente. Valem pela metáfora decifrada: uma mulher ajoelhada é uma estrela ajoelhada. Quando é que você começa a estudar temas ocultistas? Passei a estudá-los após os 18 anos. Quem conhece cabala, alquimia, ocultismo, pode reconhecê-los nos poemas e na ficção. O leitor pensará: “eu já li isso aqui em algum lugar, esta passagem se refere aos ensinamentos dos alquimistas Flamel, Eckärdt ou Paracelso”. Parece óbvio, assim, que o iniciado tem uma compreensão maior do meu texto do que aquele que não o é. Escrevo sem-número de poemas que não têm vínculo algum com a alquimia ou com a cabala, e outros que são eminentemente vinculados ao ocultismo. Lembro-me de Em forma de chama – variações sobre o unicórnio, dedicado a este mito. Aliás, o escritor, poeta e crítico literário paulista Benedicto Luz e Silva acaba de escrever a obra O Unicórnio Segundo Péricles Prade, a ser lançado pela Editora do Escritor, paulista, em que justifica a umbilical ligação desse ente maravilhoso com a mitologia. No livro estão presentes o ocultismo, a cabala e a alquimia. Antes, a poeta e crítica Mirian de Carvalho já havia escrito o livro Metamorfoses na poesia de Péricles Prade, focado no mito do unicórnio, dando ênfase ao conceito do endobarroco. Há todo o aspecto lúdico do teu processo de produção do texto. Tu mesmo colocas que escreves e estás te dando prazer, estás te divertindo. Concordo. O humor e a ironia permeiam toda minha obra. Integram o processo da criação. Talvez devido a essa característica, pretendo escrever contos preponderantemente cômicos, que comporão o livro Um elefante chamado Saramago. A literatura é um jogo, mas quais são as regras para se jogar esse jogo? Respondo tendo por parâmetro o método ou o processo de criação. Sou muito cerebral, repito. Primeiro, construo mentalmente o poema ou a narrativa. Depois, retrabalho à exaustão, cortando, aparando, aparelhando. Em suma, enxugando até o máximo concebível. Fiz isso, há pouco, ao reler o livro inédito Espelhos Gêmeos. No momento não tenho certeza se a ele dei tratamento erótico ao fantástico ou tratamento fantástico ao erótico. Muitas 7vezes acordo pela manhã com o poema e o conto elaborados, ou mais ou menos elaborados. Repasso-os em seguida para o papel. Daí a razão de o poema não aderir ao surrealismo típico, derivado do automatismo psíquico, já que os textos são trabalhados e retrabalhados. Abro a gaveta, apanho o que escrevi, vou à praia, sortido em ondas, leio, releio, corto aqui e ali. E de forma contínua interfiro na estrutura até o dia da publicação da obra. Como o Proust? Tem aquela piada sobre o Proust. Consta que ele enviou “Em Busca do Tempo Perdido” à gráfica, e, quando o gráfico forneceu as provas dos originais, resolveu reescrever o texto. Fazes isto também, Péricles? Na verdade não se trata de piada. Proust assim agiu, obcecado pela perfeição. Não tenho esse tipo de obsessão, mas, quando as provas de meus textos retornam da gráfica, faço eventuais correções. Porque a palavra é para ser lapidada. Certa no lugar certo. E não gosto de repeti-la. Talvez seja mania. Todos os escritores têm suas manias. Em muitos textos teus há sempre a presença do grotesco, de imagens do grotesco. Por exemplo, em “Alçapão para Gigantes” há duas bem especiais: o touro que urina peixes, o rato que entra pela uretra. Por que essa predileção pelo grotesco? Acho que há outros textos ainda mais grotescos. Tanto a poesia, quanto os contos, são impregnados pelo barroco, embora entenda que é atípico, diferente do barroco de outras eras. Uma forma para o escritor se distinguir, ter a sua marca, é escrever algo incomum, não aquilo que todos escrevem. O grotesco permite essa postura literária, é fruto da imaginação causadora de choque. Não escrevo com o objetivo de chocar o leitor, mas é evidente que uma imagem impactante o afeta. Você fez referência ao touro que urina peixes, cuja imagem atraiu de imediato. De certa forma sou rabelaisiano, encantado pela carnavalização. Gosto de anões e gigantes no encantado cenário da literatura. O grotesco percorre minha ficção e praticamente não existe na minha poesia. A poesia tem um caráter erótico muito forte, extremamente sensual. Somente um livro meu, que se chama Pantera em Movimento, é exclusivamente erótico. Erótico contido, que jamais chega ao obsceno ou ao pornográfico. É mais centrado na sensualidade do corpo da mulher amada. Outros poemas, porém, esparsos em várias obras, contêm erotismo evidente, como no livro Faróis Invisíveis. Representa a sabedoria, e tem energia erótica muito expressiva. Ela é símbolo insisto ao ocultismo, à alquimia e à mitologia. A serpente é dual, conjugando a natureza do mal e do bem. Não é sempre símbolo fálico, conquanto na maioria das vezes o seja. É envolvente e sedutora. Minha poesia é ourobórica. Tua literatura é extremamente contemporânea na estrutura. Vários críticos, quando vão analisar os teus textos, fazem referência aos pós-estruturalistas, aos pós-modernos para tentar entender aquilo que estás produzindo... Usou a expressão correta: literatura pós-moderna. Minha ficção recente é predominantemente pós-moderna. Mas por outro lado, quando vamos olhar não só as imagens, mas também a forma como envolves o leitor no texto, lembra um pouco a forma como se fazia certa literatura, apesar de ser uma literatura oral, na Idade Média. Minha ficção é atraída pelos cenários físicos e espirituais da Idade Média e da Renascença. Envolvo-me nessa atmosfera. Outro aspecto é o da estrutura dos poemas e dos contos. Faço a ponte entre os mundos antigos e os mundos moderno e pós-moderno. O escritor e crítico Álvaro Cardoso Gomes aprofundou, com percuciência, o tema do pós-modernismo na minha ficção, mormente ao enfocar as recentes e propositais apropriações indicadas. Óbvio que não se trata de plágio. Trata-se de apropriação consentida de recursos estilísticos, de imagens pictóricas ou fotográficas, recriados a partir de singulares abordagens visuais e não visuais. Por exemplo, invoco Alfred Jarry: há uma fotografia em que ele está em cima de uma bicicleta, pedalando. Vali-me dessa bela e estranha imagem, transformando-a em obra literária. Com a criação/recriação, tudo passou a ser diferente, original. É uma forma que encontrei para tratar de temas medievais e renascentistas, mediante linguagem que não pode ser a daquela época. Quando é que conheceu as obras de Rabelais? Porque, de fato, há muita influência dele na tua obra. Gargântua e Pantagruel li cinco vezes. A primeira, quando eu tinha vinte anos. Gosto das situações grotescas, do humor escatológico e da crítica às instituições. Rabelais é um escritor que me atingiu em cheio. Estranho, porque os críticos em geral não perceberam essa influência positiva. A influência, porém, não se dá na linguagem, não decorre pura e simplesmente da temática das personagens. Os meus gigantes nada têm a ver com os gigantes dele. Além de Rabelais, devoto paixão literária pelo livro As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, em que há gigante e anões. Minha ficção também trata da figura do anão. Escrevi um conto erótico de um anão voyeur, que, em cima de uma cadeira, olha pela fechadura uma mulher se despir no quarto. E outros anões existem, se o leitor for atento. Consegues reunir centenas de anões, dos quais serão escolhidos apenas 35 para o trabalho em uma embarcação. (risos) São os marinheiros anões, depois colocados em caixotinhos na hora de dormir. Portanto, não guardam relação direta com os episódios de Rabelais e de Swift. Trata-se de linguagem distinta, repiso, ainda que derivada desse mundo rico, estranho, grotesco, irônico e lúdico. Mesmo tendo sido tocado por esse tipo de leitura, persigo a originalidade. Hoje tenho o prazer de dizer que conquistei a minha marca. Para minha alegria, tenho ouvido: “esta poesia é de Péricles Prade”. “Este conto é de Péricles Prade”. Não é vaidade. É colheita de um longo aprendizado. E Hieronymus Bosch, influenciou tua literatura? A presença desse extraordinário pintor flamengo da Idade Média é muito forte, notadamente na ficção. A atmosfera de grande parte de meus contos aproxima-se de suas concepções, atreladas à alquimia, ao ocultismo e à religião da época. Toda obra dele é sinalada pela simbologia de extração erótica, em especial no tríptico “O Jardim das Delícias”. De certo modo influenciou os meus dois primeiros livros de ficção. Depois fui envolvido por outro tipo de visões, como nos meus livros Ao Som do Realejo, Relatos de um corvo sedutor e Correspondências – narrativas mínimas, mas jamais deixei de lado a ideia da confluência do bem e do mal, uma constante nas obras dele. E o que Péricles Prade lê hoje em dia? Leio muito sobre universos paralelos, física quântica, realidades ocultas. Descobri que existem universos paralelos-paralelos. Paralelos a outros paralelos. Entretanto, não esqueci a metafísica, o mundo sobrenatural. Pretendo escrever sobre universos paralelos sobrenaturais. Quem leu toda a minha obra, percebeu que exploro a figura do duplo, como ocorreu com Edgar Allan Poe. Fui além. No livro inédito Hálito de Búfala escrevi acerca de um “triplo” (espécie do gênero duplo), descrevendo o desdobramento de uma personagem que, simultaneamente, está em três lugares ao mesmo tempo, praticando crimes diferentes. A vida não existe, a meu sentir, somente neste planeta. Os universos são distantes, mas um dia vamos coletivamente travar conhecimento com alienígenas. Alguns privilegiados já o fizeram. A pluralidade de mundos não é novidade. Giordano Bruno, bem antes de ir para a fogueira, sustentava essa formidável realidade, sem recuar, com argumentos irrepreensíveis. E crença teológica, tens alguma? Não a tenho. Divorciei-me do catolicismo há muito tempo. Não concordo com essa história de que só na igreja há salvação, mantra repetido pelo Papa emérito Ratzinger, e por outros padres menos graduados da Santa Madre. Afeiçoei-me ao espiritismo, que também alimenta minha literatura. Cheguei a escrever uma biografia de Allan Kardec. Chama-se O Retorno do Druida, devido à origem celta. Não a concluí. Espero que um dia possa terminá-la. Deves ter escrito praticamente 70 livros. Escreves, além de poesia e de prosa, críticas de artes plásticas, livros jurídicos, livros de história, biografias, enfim. De onde retiras tempo e como consegues te dedicar a esta pluralidade? Porque, além disso tudo, és advogado militante. Durmo pouco. Leio, estudo e escrevo muito. O que significa dormir pouco? Durmo à noite cinco horas no máximo, há décadas, mas faço uma sesta após o almoço, no quanto, com pijama e persianas baixadas. Sou sistemático como operador do Direito, trabalho bastante, mas de segunda até o meio-dia de sexta-feira. Depois, esqueço-me do mundo, das ações, recursos e pareceres. No fim de semana me tranco, lendo, ouvindo música, vendo filmes e escrevendo. Escrevo tudo à mão. Poesias, narrativas, ensaios. Depois passo para a minha secretária, que digita. Não domino o computador. Quanto aos textos jurídicos, são ditados diretamente à digitadora, obedecendo a uma lógica cartesiana. Quanto à literatura, é envolvida pela lógica do delírio. Duas linguagens distintas, duas formas de me expressar. Além de todas essas atividades, és membro da Academia Catarinense de Letras. Presidente em segundo mandato. Também já presidiste a União Brasileira de Escritores. Para falarmos das academias de letras, têm escritores que querem e trabalham muito para estar dentro delas, mas há escritores, Salim Miguel, por exemplo, que fazem questão de dizer que não querem nelas ingressar. Como presidente da Academia Catarinense de Letras, como vês o lugar, o papel destas entidades na realidade atual? Respeito profundamente o ponto de vista dos escritores que têm resistência em ingressar numa academia. Suponho que a razão reside no fato das academias em geral serem fechadas. Seus integrantes consideram-se habitantes do Olimpo. Vivem numa redoma e a grande maioria quer entrar por vaidade literária. Isto é humano, mas tenho visão distinta de como deve ser uma entidade cultural desse gênero. Deve ser aberta à comunidade. Como presidente da ACL tenho lutado pela abertura, propiciando cursos, lançamentos de livros, exposições, oficinas de poesia e prosa, pesquisas na biblioteca e visitas de estudantes. Quanto ao Salim Miguel, não quer assumir outro compromisso. Não quer perder o tempo com atividade paralela à literatura. Lancei o nome dele para a Academia Brasileira de Letras no dia em que o então presidente Cícero Sandroni esteve em Florianópolis, prestando-lhe homenagem no Palácio Cruz e Souza. Não adiantou. Declinou do convite. No fundo, ele está certo. Imortal não é o acadêmico. Imortal é a obra. Nós tivemos um episódio em Blumenau onde a Academia de Letras de Blumenau, quando foi fundada, teve uma relação de imortais que depois retornaram à condição de mortais. (risos) É, aconteceu. Mas Péricles, és um dos poucos autores catarinenses que consegue ultrapassar a fronteira do Estado. Tens livros publicados por grandes editoras. O próprio “Milagres do Cão Jerônimo” foi publicado por editora nacional, a Global. São poucos os que conseguiram isto. Como vês esta dificuldade do escritor da província de conseguir que o seu texto tenha reconhecimento nacional? Há meios de burlar o obstáculo? Há meios de fazer com que a literatura de Santa Catarina tenha a sua qualidade reconhecida fora de Santa Catarina? São dois os eixos literários mais importantes: Rio de Janeiro e São Paulo. Se o livro não é publicado no Rio ou São Paulo, geralmente tem vida curta, porque é lá que as grandes mídias dão atenção à literatura. Sem falar no corporativismo, no “bairrismo”. Quem lá vive é favorecido pela proximidade, tem chance de ir até a redação dos jornais, de visitar as editoras, participar de lançamentos. A distância dificulta muito. A responsabilidade maior é do Estado, que não tem uma política cultural articulada com o Governo Federal, mas o próprio escritor tem que se mexer. Dou exemplo: estive em Porto Alegre mantendo contatos com a Editora Movimento para publicar o livro de ficção Correspondências – narrativas mínimas, bem como em São Paulo, visando à publicação, pela Editora Iluminuras, do livro de poemas Casa de Máscaras, recém lançado. Uma última pergunta: advogado bem sucedido, escritor, quase 70 livros, crítico literário e de artes plásticas, tradutor, ex-vice-prefeito aqui da capital, onde mora o menino de Rio dos Cedros? Na mente, o menino ainda mora em Rio dos Cedros. Sou e estou muito ligado à região onde nasci. Fisicamente moro em Florianópolis, antes na Avenida Antão, e, atualmente, na Avenida Beira-mar. E também resido no mundo. Viajo bastante. Vários livros escrevi nesse estado psíquico de distanciamento aparente: Ciranda Andaluz (Espanha), Tríplice viagem ao interior da bota (Itália), Olho Gótico (Sul da Alemanha), Além dos Símbolos (Portugal), Memória Grega e outros poemas viajantes (Grécia, França, México, Holanda e Turquia), estes dois últimos inéditos. Quanto mais me distancio, mais próximo estou de minha origem. (Entrevista realizada em fevereiro de 2013) |
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