O Banquete, ou do(s) amor(es) |
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![]() O Banquete, ou do(s) amor(es) Neste ensaio o historiador Martin Kreuz apresenta-nos as reflexões a respeito do amor tecidas pelos personagens de “O Banquete”, um dos textos mais conhecidos de Platão. O Banquete, ou do(s) amor(es) Martin Kreuz Historiador (Nota: todas as citações, quando não indicadas, são originadas de PLATÃO, 1991). ![]() Nessa definição de novos caminhos, o filósofo ateniense dedica-se a questões que visavam a indagar a natureza e finalidade das ações humanas: qual a finalidade da vida, quais dos objetivos que colocamos para nossa vida que real e intrinsecamente são valiosos? (CORNFORD, 2001). Perguntas que, sintetizadas, correspondem àquelas que posteriormente Kant entenderia como as únicas necessárias à Filosofia: “o que posso conhecer?”, “o que devo fazer?”, “o que posso esperar?”. Para tal, Sócrates inaugura uma nova abordagem do fazer filosófico: Rancière (1996) a conceituará como uma “medicina das palavras”, o procedimento pelo qual se limará entendimentos díspares das palavras usadas – a doença causadora de desentendimentos entre os falantes. Os paradoxos, as aporias e as compreensões doentias presentes nas palavras são expulsos para, daí em diante, os comunicantes poderem utilizar-se dessas palavras sãs, sem o perigo de entenderem de forma distinta o que está a ser comunicado. É a operação realizada por Sócrates: quando interroga alguém sobre o que é Justiça, Beleza ou Virtude, não quer apenas demonstrar a ignorância de seu interlocutor, que crê saber algo quando não o sabe, mas principalmente retirar do âmbito comunicativo compreensões distintas, que são ignoradas como distintas pelos falantes. Quem fala Justiça, o fala com uma compreensão diferente da compreensão de Justiça de quem ouve. O procedimento socrático é a busca do entendimento a partir de palavras que não são unívocas. Dessa forma, introduz-se na filosofia o que se denominará por Conceito. Na encruzilhada entre desentendimento e compreensão, multiplicidade e unicidade da comunicação, encontra-se “O Banquete”, relato do encontro de Sócrates e grupo de amigos para comemorar a premiação de uma obra teatral de Agatão. Finda a refeição, e seguindo costume da época, um dos presentes sugere passar-se à discussão filosófica: alimentado o corpo, é necessário então alimentar o espírito. O tema, acordado por todos, que deveria ser objeto de discursos, é Eros, e o sentimento a ele correspondente, “Amor”. Nesse sentido, o título da obra, em Portugal, mostra-se mais adequado à natureza do que se desenrola nessas páginas: “O Simpósio”, segundo a publicação da Guimarães Editores. Os diversos personagens, um de cada vez, põem-se a expor sua compreensão, seu entendimento de quem é Eros, o que é o amor. Formas de compreensões muito distintas e até contraditórias, mas que por meio de sua exposição, do transformar-se de pensamento em palavra comunicativa, passam a tornar-se compreensíveis, intercambiáveis. O primeiro a discursar é Fedro. Baseando-se no argumento de que “o mais antigo é [o mais] honroso” (p. 12), argumenta que Eros é dos mais antigos deuses, conforme o narrado por Hesíodo em sua Teogonia, onde Gaia e Eros se unem para dar origem a toda a Vida. Sendo dos mais antigos, é o responsável pelos maiores bens aos seres humanos. Em sua visão, o amor inspira o ser à nobreza, à virtude: o amante se sacrifica pelo amado, se põe a serviço de, se devota a este que ama. Não nos faltam exemplos para ilustrar a visão de amor expressa por Fedro: Romeu, que se prontifica a abandonar sua família por Julieta, Mufasa que morre para salvar Simba... Pausânias, por sua vez, argumenta que Eros não é um, mas dois: Eros Popular e Eros Celestial. Eros Popular é o amor vulgar, dirigido “mais [ao] corpo que [à] alma” (p. 15). É o amor dirigido à sexualidade, apenas, à saciedade do prazer corporal. A fragilidade de sua condição reside justamente naquilo a que se dirige, o corpo – este é o elemento no qual se faz mais visível a transitoriedade, a mudança, a transformação: o corpo se torna flácido, adquire rugas, envelhece. O corpo que despertara o desejo já não se parece mais o mesmo, e logo um novo corpo, um outro corpo, se torna o objeto de um novo desejo do amante. Há que se notar que essa forma de amor é associada por Pausânias à relação homem-mulher, principalmente. Entre os gregos, a sexualidade era fruída de formas distintas da que conhecemos hoje: heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, são rótulos insuficientes, e inclusive anacrônicos, para entendermos a relação estabelecida entre os gregos com a sexualidade. Utiliza-se o termo homoerótico para tipologizar essa sexualidade distintiva entre gregos, vivida geralmente entre um homem mais velho e outro mais novo. Àquele amor vulgar, carnal, Pausânias justapõe Eros Celestial, o amor bom, esse exclusivo entre os homens. No caso, o amor dirige-se à alma, à inteligência – ao contrário do corpo, de caráter constantes, o que significa que ama-se aí “para acompanhar toda a vida e viver em comum” (p. 15). Esse amor, para Pausânias mais nobre e belo, assemelha-se em grande medida a um processo pedagógico: o amante, o homem mais velho, procura ajudar no processo de formação da sabedoria e virtude do amado, o homem mais jovem: “Quando com efeito ao mesmo ponto chegam amante e amado, cada um com a sua norma, um servindo ao amado que lhe aquiesce, em tudo que for justo servir, e o outro ajudando ao que o está tornando sábio e bom, em tudo que for justo ajudar, o primeiro em condições de contribuir para a sabedoria e demais virtudes, o segundo em precisão de adquirir para a sua educação e demais competência, só então, quando ao mesmo objetivo convergem essas duas normas, só então é que coincide ser belo o aquiescer o amado ao amante e em mais nenhuma ocasião.” (p. 18). Uma relação pedagógica, que contribui na formação dos cidadãos da pólis por dar-se como um aprendizado da virtude: esse é, para Pausânias, a essência do amor positivo, Celestial. Em seguida, tomamos conhecimento do discurso de Erixímaco. Este, médico, compreende Eros – e por consequência, o amor – a partir de sua prática profissional. O paradigma médico grego, que em grande medida ainda se faz presente no saber médico ocidental, é a ideia de harmonia, equilíbrio: a doença é o excesso, a carência. A falta de ferro no organismo leva a um quadro de anemia; o excesso, hemocromatose. A ação médica de cura é restabelecer o equilíbrio ao organismo – seja pela retirada daquilo que se faz presente em demasia, seja pela adição daquilo que não é suficiente. Esses elementos são o que norteiam a interpretação de Erixímaco. O amor, ao olhar do médico, é o elemento responsável pela harmonia, concórdia – e, por isso, não exclusivo ao sentimento entre humanos: a ginástica, a música, que “no tocante à harmonia e ao ritmo, é ciência dos fenômenos amorosos.” (p. 20), a própria medicina, “a ciência dos fenômenos amorosos, próprios ao corpo” (p. 19) – todas estas, artes dirigidas por Eros, em sua compreensão. Inclusive a própria dinâmica da natureza seria comandada pelo deus, resultando daí a bonança e saúde de humanos, animais e plantas, ou em sua ausência, a intemperança e os desregulamentos climáticos. Contudo, a intencionalidade médica de Erixímaco se faz presente de outro modo: ele recupera o argumento de seu antecessor a respeito do duplo aspecto e natureza de Eros, Popular e Celestial. Mas, ao contrário de Pausânias, não considera rejeitar uma das manifestações de amor em prol do outro, mas justamente harmonizá-los, equilibrar a alma ao corpo, a atração espiritual à pulsão sexual, “a fim de que se colha o seu prazer sem que nenhuma intemperança ele suscite” (p. 21). Aristófanes, o dramaturgo, então é convidado a dar sua parte ao simpósio, o que realiza por meio de um discurso fortemente influenciado por sua arte teatral. O autor conta que o gênero humano é atualmente doente, pois não possui mais a mesma natureza dos primórdios, quando inteiriça: “quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor.” (p. 22). Em razão dos dois sexos, diz Aristófanes, eram originalmente três os gêneros: masculino, isto é, os dois sexos de macho, feminino, ou seja, os dois sexos de fêmea, e andrógino, que possuía um sexo masculino e outro feminino. Pela sua constituição física, eram “de uma força e de um vigor terríveis [...] mas voltaram-se contra os deuses” (p. 23). Zeus, com o intuito de enfraquecê-los, dividiu-os em dois – a atual aparência do gênero humano. Mas, sentindo-se incompletos, anseiam e buscam sua metade complementar. E aqui há que se notar que, para Aristófanes – como também para os outros expositores do simpósio –, o amor não se reduz ou esgota no campo sexual: “Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirigem muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo.” (p. 24). Não que a pulsão sexual esteja excluída de sua abordagem, mas confunde-se com companheirismo, amizade: “Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, [...] então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno momento.” (p. 24). O desejo de confundir-se com a pessoa amada, a procura pela alma gêmea, é, para Aristófanes, o amor. Em seguida, o homenageado da noite, Agatão, é convidado a falar. Este realiza uma inversão de perspectiva em seu discurso: afirma que todos os anteriores focaram-se nos dons do amor, o sentimento; ele, por sua vez, quer expor a natureza de Amor, o deus. A seus olhos, “a única maneira correta de qualquer elogio a qualquer um é, no discurso, explicar em virtude de que natureza vem a ser a causa de tais efeitos aquele de quem se estiver falando.” (p. 27). E para tal, definir os predicados de Eros, Agatão recorre a procedimentos oriundos da retórica e lógica. Em primeiro lugar, Eros é jovem, e sempre jovem. A prova para tal afirmação Agatão acredita ser o fato de que o amor se manifesta principalmente entre os jovens (“com os jovens ele está sempre em seu convívio e ao seu lado” [p. 27]), e com o aproximar-se da velhice, minimizariam as pulsões amorosas (“em fuga foge da velhice” [p. 27]). Para tal, o simposista recorre a um ditado: “o semelhante sempre do semelhante se aproxima” (p. 27); se a amor se realiza entre jovens, Eros é jovem. O deus, e portanto o sentimento a ele associado, também é delicado: se de Ate, Homero pudera escrever que “seus pés são delicados; pois não sobre o solo / se move, mas sobre as cabeças dos homens ela anda”, Agatão afirmará igualmente que Eros, por habitar aquilo que há de mais delicado nos seres, a alma, é ainda mais delicado que os pés da deusa. Através de tais fórmulas, Agatão prosseguirá caracterizando Eros como belo (“entre deformidade e amor sempre de parte a parte há guerra” [p. 28]), justo (“à força, com efeito, nem ele cede [...] nem, quando age, age, pois todo homem de bom grado serve em tudo ao Amor” [p. 28]), corajoso (“a Amor não pega Ares, mas Amor a Ares [...] e é mais forte o que pega do que é pegado: dominando assim o mais corajoso de todos, seria então ele o mais corajoso” [p. 28] – Ares teria se apaixonado por Afrodite), sábio (“também a outro ele o faz; [...] o que não se tem ou o que não se sabe, também a outro não se poderia dar ou ensinar.” [p. 29]), entre outros atributos. Se de Aristófanes herdamos a ideia de alma gêmea, tão comumente invocada entre os amantes, Agatão parece produzir nossa visão de Cupido, aquela figura angelical, delicada e jovem que encontramos em animações e ilustrações. E, então, Sócrates, o personagem principal da filosofia antiga. O mais sábio dos atenienses, pois tinha ciência que não sabia nada, e devotou sua vida a buscar fazer seus compatriotas perceberem sua própria ignorância, a falsidade de suas opiniões – ou, ao menos, o equívoco destas. É este o ponto de partida de Sócrates, a identificação do que percebe contraditório no discurso de Agatão. Este afirmara o amor belo, e desejoso de beleza. Mas Sócrates questiona seu predecessor se o desejo é dirigido àquilo que se tem ou àquilo que se é carente, ao qual Agatão é forçado a admitir que o desejo se dirige à carência, àquilo que não se possui. A conclusão estabelecida por Sócrates é que o amor, sendo amor à beleza, é carente de beleza. E, levando essa conclusão ainda mais longe, afirmará então que, “Se portanto o Amor é carente do que é belo, e o que é bom é belo, também do que é bom seria ele carente.” (p. 33). Estabelecida a aporia, Sócrates invocará então um personagem, a sacerdotisa Diotima de Mantinéia, argumentando que em diálogo com ela chegara ao mesmo impasse. A saída é dada pela sacerdotisa, que coloca não existirem apenas dois polos absolutos e opostos: “Amor, [...] que não é belo nem bom, nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia ela, entre esses dois extremos.” (p. 34). Para a interlocutora, Eros não é um deus, mas um gênio, um ente entre mortal e imortal, que conecta os homens aos deuses e os deuses aos homens. Sua natureza advém de sua concepção, ocorrida no natalício de Afrodite, quando sua mãe, Pobreza, deitou-se com um embriagado Recurso. De sua mãe, herdou a pobreza e carência, e do pai, o desejo e apreço pelo que é belo, bom e sábio. Eros é desprovido de, por conta de sua mãe; mas, em virtude de seu pai, sente desejo por. Estabelecida a condição de Eros, Sócrates conta então ter indagado Diotima do proveito que os amantes tiram do amor: “Vamos, Sócrates, ama o amante o que é bom; que é que ele ama? – Tê-lo consigo – respondi-lhe. – E que terá aquele que ficar com o que é bom? – Isso eu posso – disse-lhe – mais facilmente responder: ele será feliz. – É com efeito pela aquisição do que é bom, disse ela, que os felizes são felizes, e não mais é preciso ainda perguntar: E para que quer ser feliz aquele que o quer? Ao contrário, completa parece a resposta. – É verdade o que dizes – tornei-lhe.” (p. 37). Diotima continua, e argumenta que, aquilo que o amante ama, aquilo que lhe parece bom e belo – e por isso ama – deseja ter consigo, e sempre ter consigo. Decorreria daí que, por sermos mortais e termos ciência dessa condição, almejamos a imortalidade. Mas esta só é possível por meio da geração: é só a partir da criação, do dar origem a algo, que um mortal alcança a imortalidade. Se o amor é desejo de ter sempre consigo aquilo que ama, é por meio da geração, da “parturição no belo” (p. 38) que se pode realizar esse desejo, e atingir a imortalidade. O amor, assim, é apresentado como uma pulsão criadora, inventiva, que nos mobiliza em direção à criação daquilo que amamos, que cremos belo. Aqueles que “estão fecundados em seu corpo” (p. 40), realizam-se por meio da procriação; aqueles que “concebem na alma mais do que no corpo” (p. 40), concebem por meio do pensamento, da poíesis. A forma superior da atividade amorosa seria o dedicar-se aos negócios da cidade, à justiça, ou seja, contribuir para o fortalecimento da comunidade. Se Sócrates – Sócrates, pois apesar de relatar a lição que aprendera de Diotima, há fortes dúvidas da autenticidade dessa personagem – é o clímax do simpósio, visto que foi deixado para proferir seu discurso por último, o que se segue então é o anticlímax: um já embriagado Alcibíades invade o encontro, obriga os outros a beberem também e, ao ser inteirado do programa daquele simpósio, põe-se a falar também, não sobre Eros ou o amor, mas a respeito de Sócrates. Seu discurso oscila entre o louvor ao filósofo e suas virtudes, e o desancá-lo por ter sido rejeitado como amante por ele. Alcibíades busca desmistificar Sócrates aos olhos de Agatão, visto que este era o novo amante daquele. Enquanto todo o encontro intentou louvar os benefícios e virtudes do sentimento amoroso, Alcibíades aparece como uma lembrança incômoda de que este também leva ao sofrer, ao ciúme, quando o amor que se devota não é igual ao amor que se recebe. Alcibíades é o exemplo do amor vulgar descrito por Pausânias – ou, então, tomado pela desmedida de Eros, conforme um hipotético diagnóstico de Erixímaco. A chegada de Alcibíades interrompe o curso do evento. Talvez os convivas, diante desse quadro complexo de exposições desenhadas por todos a respeito de Eros, construíssem um entendimento comum do amor. Ou, então, essa seja mesmo a intencionalidade de Platão, fazer-nos ver a impossibilidade de reduzir a um o que é visto e vivido como múltiplo. Ou, talvez, devamos dar ouvidos àquele guardador de rebanhos, que não guardava rebanhos e sim pensamentos, mas pensamentos que não eram pensamentos e sim sensações, e ousara afirmar que “[...] pensar é não compreender”. REFERÊNCIAS CORNFORD, Francis Macdonald. Antes e depois de Sócrates. Tradução Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 99 p. Tradução de: Before and after Socrates. PLATÃO. O banquete. In: ______. Diálogos. Tradução José Cavalcante de Souza. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 7-53. (Os pensadores). RANCIÈRE, Jacques . O desentendimento – política e filosofia. Tradução Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996. 144 p. Tradução de: La mésentente – politique et philosophie. |
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