Méri Frotscher: A história não é tão simples |
Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, Méri Frotscher pesquisa a história de Blumenau e leciona na Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Autora de diversos artigos, publicou os livros “Olhares sobre o saneamento em Blumenau”, “Viagens pela cidade” e “Identidades Móveis: práticas e discursos das elites em Blumenau (1929-1950)”, este último editado pela Edifurb. Em Blumenau por conta do lançamento deste seu último livro, Méri Frotscher concedeu esta entrevista ao Sarau Eletrônico, onde fala do seu trabalho como historiadora, e desmistifica uma série de questões a respeito da história de Blumenau, abordando temas ainda bastante polêmicos, como o Nazismo e o Integralismo, a Campanha de Nacionalização na era Vargas e a relativização das muitas identidades blumenauenses. (Entrevista: Viegas Fernandes da Costa e Carla Fernanda da Silva / Fotos: Gabriel Severo Venco Teixeira da Cunha) Por que este interesse em estudar as elites blumenauenses? Meu interesse começou quando eu tive acesso às documentações que existem no Arquivo Histórico de Blumenau. Percebi, através das cartas que foram enviadas por pessoas influentes da esfera pública de Blumenau – donos de jornais, políticos – para instituições da Alemanha, ou então cartas que eles trocavam entre si, onde eles procuravam se articular politicamente em torno de assuntos relacionados às manifestações culturais e à imprensa local. E através desta documentação de caráter privado – as correspondências – , tive a oportunidade de perceber como essas elites procuraram se articular para manter ou reproduzir poderes. Eu não tenho essa concepção de que a história só é feita pelas elites, é óbvio, mas penso que muitas questões que envolveram a repressão, a nacionalização, aconteceram com as elites envolvidas nelas. Então eu queria perceber como foi possível para as elites reascender ao poder depois, e se houve um tratamento igual, ou, como é que foram as reações delas. Então foi a partir dessa documentação que vislumbrei a possibilidade de se fazer este estudo “mais por dentro”, e de tentar perceber quem era quem. Como é que antes da guerra se configurava a cena cultural da cidade, qual era a circulação dessas elites, como é que elas procuravam fazer dos espaços culturais um espaço de visibilidade política, e como é que ficou tudo isto com a intervenção. No teu livro, e baseada na Giralda Seyferth, utilizas muito o conceito de “pátria estreita”. Poderias definir melhor este conceito? Este conceito foi muito utilizado pelo jornal Der Urwaldsbote no período que pesquisei. O que me chamou a atenção foi esta idéia de que Blumenau era algo especial, o que se divulgava muito na época. Eu penso até que é uma questão de sobrevivência este olhar para si, esta coisa meio narcísica. Naquela época este conceito foi difundido pelo jornal em um contexto de conflito político com as elites políticas do estado, por conta do desmembramento do município. Mas não somente neste período. É um conceito que significava uma unidade, apesar de Blumenau não ser uma unidade cultural, nem lingüística, nem social, nem econômica; mas se afirmava que Blumenau era uma unidade cultural, que refletia uma unidade lingüística, quando a gente sabe que as línguas aqui faladas eram muitas, embora o alemão fosse o predominante. Então este conceito significava uma pequena pátria alemã no Brasil. Através deste conceito procurava-se estruturar fronteiras culturais para o município. E é exatamente essa concepção que foi um dos motes da campanha de nacionalização, porque bateu de frente com o ideal de construção de uma nação brasileira que não permitia a construção de fronteiras culturais, lingüísticas. Foi por conta deste conceito, e de outras afirmações, que até depois da guerra houve manifestações de escritores e de pessoas que vieram a Blumenau e que afirmavam que a cidade continuava sendo uma fronteira da nação brasileira. É claro que hoje em dia não se usa esse conceito, mas essa idéia de Blumenau como uma Alemanha brasileira, de mote para a repressão virou mote para o turismo comercial. É uma ironia da história, mas enfim, as coisas mudam. No teu livro mostras que na década de 1930, com a ascensão de Vargas, as elites tradicionais perderam espaço para a família Ramos, de Lages. O que motivou essa rivalidade entre as elites de Blumenau – a família Konder – e as elites de Lages? A princípio era uma rivalidade econômica. Já existem alguns trabalhos que mostram que a Revolução de 30 não provocou uma ruptura tão grande na política da região porque as elites vinculadas ao Partido Republicano Catarinense, Curt Hering, Coronel Feddersen e o grupo que circulava em torno destas pessoas, já estavam enfraquecidas antes da Revolução de 30; até porque Blumenau já não era mais uma colônia ou um município pequeno. Blumenau já tinha configurado uma situação social diferenciada, classes sociais distintas, uma classe média. E essas elites já não supriam mais as expectativas dessa população. E com a Revolução de 30 elas foram retiradas do poder. Em Blumenau o prefeito Curt Hering, que tinha governado a cidade por praticamente uma década inteira, caiu. Claro, foi um divisor de águas. Mas as elites do Vale do Itajaí pregavam um outro modelo econômico, baseado na pequena propriedade, enquanto que as elites de Lages estavam baseadas no latifúndio, na atividade pecuarista, e aqui, no Vale do Itajaí, havia um modelo de colonização diferenciado. Então era uma disputa não só política, mas uma disputa por modelos de desenvolvimento. Isso então vai acontecer neste período, muito embora a gente não possa dividir a política catarinense entre os Ramos e os Konder e Bornhausen. Até porque entre eles mesmos havia distinções. Alguns membros dessa elite industrial e comercial eram filiados ao partido dos Ramos, por exemplo. Entre os Ramos também havia divergências e outras linhas. E eles, entre si, também se casavam. Então na dá para você colocar essa linha. Existem aí muitos laços. Há uma dissertação de mestrado da Cristiane Manique Barreto, “Entre laços e nós”, que trabalha isso. Ela vai mostrar os laços entre estas famílias, e os nós também. E há a tese do Luiz Felipe Falcão, onde ele vai procurar mostrar como estas elites já estavam enfraquecidas. Quando eu falo em elites tradicionais, na verdade seriam as elites comerciais e industriais de Blumenau, que eram ligadas ao Partido Republicano Catarinense. A família Hering tinha conexões com os Konder, que eram de Itajaí, mas que tinham estudado em Blumenau, principalmente o Victor Konder, que era muito ligado ao editor do jornal Der Urwaldsbote, o Gustav Koehler. E este grupo, durante os anos 30, se via ameaçado pela oligarquia dos Ramos. Então, toda aquela conexão que havia entre Blumenau, o governo do estado e o governo federal nos anos 20, foi quebrada com a Revolução de 30. Porque nos anos 20, aqui, o Curt Hering estava no poder, o Coronel Federsen era deputado, o Marcos Konder era deputado, o Adolpho Konder era o governador do estado e o Victor Konder era o Ministro de Viação. Então havia uma conexão com Blumenau, e através dessas conexões eles conseguiam recursos, obviamente. A minha preocupação, também, foi mostrar como é que através destas conexões políticas conseguia-se a produção de poder e capital. Então toda essa explicação, que muitas vezes alguns autores davam, de que Blumenau se tornou desenvolvida por causa da tendência alemã de um povo trabalhador... Na verdade as conexões políticas e a acumulação de capital aqui foram fundamentais para que isto acontecesse. E muitas vezes eles procuraram abafar esses fatores e simplesmente imputar isso ao espírito empreendedor de alguns ou à força de trabalho, afirmando uma identidade “trabalhadeira” para a população, quando na verdade existem todos esses fatores que eu procurei mostrar no livro, principalmente na primeira parte dele, onde vou falar que a própria colonização do interior do Vale do Itajaí estava ligada aos interesses comerciais e de venda de terras. Os grandes políticos da região eram donos de hectares e hectares de terras e faturavam com isso. Inclusive, muitas terras foram doadas ou vendidas a preço muito barato a estas pessoas na época em que Hercílio Luz, que tinha conexão com Blumenau, foi governador. E essa queda, essa “decadência” das elites mais tradicionais, ligadas ao Partido Republicano, vai dar espaço ao Integralismo, assunto que abordas no teu livro. O que vai possibilitar o surgimento justamente de um nacionalismo brasileiro, que é o Integralismo, em uma colônia que se identificava como alemã? Qual a elite que vai participar deste partido, deste movimento integralista em Blumenau? Essa questão do Integralismo não é uma novidade na minha tese. Há um enfraquecimento das elites tradicionais, das elites mais antigas, o que colaborou com ascensão do Integralismo. Mas não só isso. A ascensão de uma classe média, de um funcionalismo público, tudo isso colaborou para que se almejassem outros interesses na cidade. Muitos integrantes do Integralismo no Vale do Itajaí eram integrantes destes grupos da pequena burguesia, mas principalmente de trabalhadores e de pessoas do funcionalismo público. E existem autores que mostram que, para se angariar estas simpatias, houve uma mudança do discurso que era utilizado em nível nacional, onde se tentou ganhar a simpatia desses descendentes de imigrantes. Havia também naquele período uma simpatia muito grande pelos movimentos nacionalistas, por um lado, e também pelos movimentos de direita. Daí toda esta admiração por um governo forte, e esta foi uma semelhança com o nazismo. E como o Partido Nacional Socialista não era um partido brasileiro, o Integralismo surgiu como uma alternativa. E ele realmente foi bastante forte na cidade, fazendo grandes manifestações públicas. Blumenau foi sede de congresso integralista. E este fato foi utilizado depois, quando o governo reprimiu o Integralismo após o golpe integralista e utilizou destes argumentos para reprimir tanto o Nazismo quanto o Integralismo. Por isso às vezes se confundia um pouco o integralismo com o nazismo, mas que na verdade eram duas ideologias políticas distintas, dois partidos políticos distintos. No teu livro percebemos que o Partido Integralista muitas vezes apresentou atitudes germanófilas em Blumenau. Portanto, é possível perceber um discurso nacional e um discurso local em relação ao Partido Integralista. Chegaste a estudar como se dá esta questão depois da perseguição ao Integralismo? O que aconteceu em nível de Brasil depois da II Guerra Mundial foi o surgimento de um Partido Político, o PRP, que foi formado em grande parte por integralistas. E em Blumenau também foi fundado este partido. Tem uma tese de um colega meu que diz que o PRP é o integralismo pós-guerra. Mas em Blumenau este partido logo se aliou a outros partidos. Então houve uma série de mudanças para que ele pudesse ser aceito. No caso de Blumenau, algumas pessoas acabaram silenciando sua participação no integralismo, como foi o caso do Ferreira da Silva, que tem uma trajetória política totalmente confusa, porque primeiro foi integralista, depois foi o interventor que reprimiu o integralismo. Então houve essa repressão. Muitos integralistas foram presos em “campos de concentração”. Quando ouvimos este termo lembramos dos campos de concentração nazistas, mas na época usava-se muito este termo. Foi o caso do Alberto Stein, que foi preso em Florianópolis. E o movimento integralista foi desmantelado desta forma depois de 1938, e depois não temos mais notícias sobre a aparição deles na esfera pública senão pelo PRP. Existe uma questão muito forte no nosso imaginário local que é a questão do nazismo. E no teu livro vais tratar da presença dos nazistas e do Partido Nazista em Blumenau no final da década de 1920 e nas décadas de 1930 e 1940. Mas o que a gente percebe é que o nazismo não era uma coisa hegemônica, ou que a presença do Partido Nazista não era hegemônica entre a população alemã e de ascendência alemã em Blumenau. Como era, então, a relação entre as elites do antigo Partido Republicano com os membros deste novo partido, o Nazista, que vai se instalar também aqui na região? Havia divergências? E quem é que vai estar neste Partido Nazista? Algumas elites locais eram filiadas ou até mesmo detinham cargos políticos. A maioria das elites que possuíam influências na esfera pública, na esfera política catarinense, eram filiadas ao Partido Republicano Catarinense. Este partido foi hegemônico até o final dos anos de 1930. E estas pessoas, justamente por terem interesses econômicos, filiavam-se, iam exercer cargos políticos, justamente para angariar subsídios para seus interesses econômicos e para a cidade. E quando surge o Partido Nacional-Socialista e na medida em que ele vai conseguindo legitimação pública, não sós membros do partido vão fazer parte de festividades, de atividades, mas também pessoas descendentes de alemães ou alemães que tinham, inclusive, cargos públicos, vão participar de algumas dessas atividades públicas, já que naquela época havia algumas semelhanças de sentimento, de pertencimento ao Brasil mas também à Alemanha. Algumas pessoas dessas elites vão participar de atividades organizadas pelo Partido Nazista e pelo Consulado Alemão. Algumas pessoas da elite vão, inclusive, se filiar no Partido Nazista, mas não as mais influentes politicamente. Mas a partir do momento em que o nazismo assume o poder na Alemanha, líderes do grupo local vão exigir a liderança dos espaços da esfera pública alemã: das associações culturais, esportivas e recreativas, das igrejas evangélicas, da Escola Alemã, da imprensa. E é neste momento que percebemos mais a configuração de conflitos, porque essas elites não aceitavam dividir ou entregar estes espaços culturais e também de reprodução de poderes. Entretanto, esses conflitos são conflitos de poder e não significam que algumas dessas pessoas tivessem ojeriza ao Partido Nazista ou à Alemanha nazista. Esse conflito, por exemplo, no jornal Urwaldsbote, coloca-se contra os interesses do grupo local de conseguir a hegemonia desses espaços culturais, mas continua fazendo propaganda para a Alemanha nacional-socialista; inclusive, continua fazendo propaganda de outros grupos locais do partido em outros locais do Brasil, mas deixa de noticiar as atividades do grupo local por conta destas brigas de poder e porque eles se julgavam líderes dessa pátria estreita. Eles vão, inclusive, afirmar uma identidade não alemã, ou seja, uma identidade teuto-brasileira, para se diferenciar desses alemães. Até porque a maioria dos membros do Partido Nazista eram, se não todos, cidadãos alemães. O dono do Der Urwaldsbote também nasceu na Alemanha, mas ele vai defender uma identidade teuto-brasileira para se contrapor a esses interesses políticos. Eu acho muito interessante a figura dele, porque na história política tradicional trabalha-se muito com os políticos que aparecem, e ele era uma espécie de eminência parda da política blumenauense. Ele se articulava politicamente através de cartas, ele era membro de diretorias de associações, e se articulava muito com os Reis e os Konder. Então, na verdade, ele era muito mais do que apenas um dono de jornal. Ele era quase que um intelectual orgânico, e tinha muita influência na cidade. É difícil falar quais foram todos os membros do Partido Nazista em Blumenau porque muita documentação foi destruída, pouca documentação dos grupos locais nazistas sobreviveu nos arquivos alemães, não encontrei nestes arquivos a documentação do Consulado alemão em Blumenau; mas pelas listagens que nós temos, podemos perceber que muitos integrantes eram artesãos, pequenos proprietários, ou seja, uma pequena burguesia. Mas também havia integrantes que eram industriais e havia o cônsul alemão. Mas não se pode dizer que era um partido de elite. Também não era um partido de descendentes de agricultores, por exemplo. Era um partido de pessoas da classe média. O número de filiados também foi restrito. Em comparação com o número de alemães que viviam na cidade, não se pode falar que esse grupo conseguiu a hegemonia desse espaço público, mas houve disputas de poder e houve a pretensão de disputa por essa hegemonia e, como em todos os lugares, havia uma recomendação da Organização para o Exterior do Partido Nacional-Socialista para que os grupos locais procurassem a hegemonia, procurassem unir os alemães e os descendentes no exterior em torno de um só ideal, afastar as divergências e os conflitos. E aqui ele foi causador de conflitos, porque já havia uma estrutura de poder assentada, e a elite ligada ao Partido Republicano Catarinense, os industriais e os comerciais, estava em uma situação muito difícil, o que fazia com que ela lutasse pela manutenção dos espaços que ainda restavam, já que eles haviam perdido os cargos políticos com a Revolução de 1930 e praticamente todos os vereadores e o prefeito eram integralistas. E naqueles espaços que eles ainda tinham influências, que eram os espaços culturais, surgiu esse problema. Mas a existência desses conflitos não nos permite dizer, como muitas pessoas poderiam interpretar, que em Blumenau não houve simpatias, ou que houve um conflito entre descendentes de alemães e alemães. Porque sabemos de alguns casos de descendentes de alemães que também fizeram parte do partido ou de organizações do partido como, por exemplo, a juventude hitlerista. É possível percebermos de uma maneira muito forte esta questão econômica de luta de classes no que tu dizes. Mas às vezes fica difícil expressar esta disputa, e então se faz uso das ideologias que estão permeando aquele momento histórico para deflagrar “brigas” que na verdade têm outras razões. Se a gente pegar o discurso de pessoas ligadas à política antes e depois da guerra, ou antes e durante a guerra, podemos perceber a existência da manipulação dos discursos de identidade por conta das situações vivenciadas naquele momento. Então, por exemplo, pessoas que, no momento de conflito com o grupo local do NSDAP (Partido Nacional-Socialista Alemão – nota do editor) falavam que eles sempre foram pela Alemanha nacional-socialista, que sempre tiveram simpatia pelas coisas que Hitler estava fazendo, depois, durante a II Guerra, quando vão tentar negociar a retirada dos seus nomes das listas que enquadravam industriais e comerciantes suspeitos ou acusados de ligações com os países do Eixo, vão negar e dizer que sempre foram pela política brasileira, lembrando que tinham exercido cargos políticos por partidos brasileiros. Ou então, outro exemplo, o jornal Der Urwaldsbote, que no início do século vai acusar o Lauro Müller de ser um renegado que não defendia os interesses da germanidade, durante o começo da Campanha de Nacionalização vai elogiá-lo como um bom brasileiro. Então essas estratégias discursivas serão feitas até como uma tentativa de sobrevivência política. E isso fica muito claro no meu trabalho e por isso coloquei esse título de “Identidades Móveis”. Porque ainda existe aqui na região essa concepção de que identidade é algo que não muda, algo que é quase que inerente ao sangue da pessoa. Afirma-se muito uma germanidade que parece que sempre foi assim, algo imutável, quando na verdade as pessoas, ao longo da vida e conforme as situações que vivem, vão reelaborando suas identidades. O fato de a pessoa ter um sobrenome em alemão não significa que ela vai assumir esta identidade. Existe alguns equívocos, inclusive em trabalhos acadêmicos, que têm uma concepção de identidade muito estanque, imóvel. E hoje em dia a gente percebe que as identidades são múltiplas, com as pessoas assumindo diferentes identidades ao mesmo tempo, e eu procurei mostrar isso dentro do campo das relações de poder. E aqui se fala muito em preservar a cultura, como se a cultura fosse algo que pudesse ser preservado, quando na verdade ela também é móvel, ela é um campo de relações sociais e de poder. E exatamente aqui em Blumenau, uma cidade tão conhecida por ser tão pujante, não só economicamente, mas também por suas atividades culturais. E esta foi uma das grandes rupturas que a guerra trouxe. A vida cultural era muito intensa, e não só no centro do município. A vida associativa era muito forte. Só de corais havia duas dezenas de grupos. E isto foi muito cerceado durante a guerra, por isso acredito que a guerra foi realmente um marco muito forte neste período. Em 1934, com o governo de Aristiliano Ramos, vai acontecer o desmembramento de Blumenau. Nós sabemos que as elites da cidade vão se opor a este desmembramento e vão organizar o movimento “por Blumenau unido”. Qual foi a repercussão deste desmembramento nas regiões desmembradas? As populações e as elites destas regiões específicas aceitaram o desmembramento, a emancipação dos seus territórios? E o que realmente motivou este desmembramento? É difícil um historiador, através da suas fontes, ser tão categórico, mas na época as elites locais colocaram a divisão do território de Blumenau como uma retaliação política. Olhando algumas fontes que não foram publicadas na imprensa, como as fontes produzidas pelo próprio Consulado Alemão em Santa Catarina, em que se divulgou isto como uma retaliação inclusive em relação ao Deutschtum, como uma forma de impedir a germanidade. Eu penso que o desmembramento de Blumenau teve sim o objetivo político claro de enfraquecer essas elites que tinham no centro de Blumenau o seu espaço de maior influência. E nos anos de 1930 houve um processo de mudanças econômicas e sociais que fez com que muitos distritos se desenvolvessem economicamente, que se criassem elites também lá; e Blumenau ainda era configurada administrativamente em um modelo que tinha se iniciado em 1850. O Stadplatz, o centro de Blumenau, não era apenas um centro comercial, era também um centro administrativo e um centro simbólico dessas relações de poder. E neste sentido acho que o desmembramento atacou o cerne deste modelo administrativo que colaborava com essas elites tradicionais. Neste sentido, a retaliação do município foi não só uma retaliação política e territorial, como foi também no cerne de um capital simbólico muito caro às elites locais, que se viam como descendentes do Dr. Blumenau, embora não descentes diretos, mas no sentido simbólico, e que viam Blumenau como resultado de uma obra. Falava-se muito da “obra do Dr. Blumenau que foi destruída”. Então elas se viam quase que como donas dessa “pátria estreita”, que apesar de estreita era territorialmente enorme. Blumenau era “vinte vezes” maior do que hoje. Eu não tive muito acesso aos jornais locais desses distritos, em muitos deles não havia estas publicações, mas pude perceber que muitas elites dessas regiões viam no desmembramento um ganho econômico: novos cargos surgiriam, mais pessoas viriam para o município. Por exemplo, no Alto Vale do Itajaí, por diversas vezes houve rixas, não só políticas, mas também no campo eclesiástico, com o município de Blumenau. Então elas viam isso como uma possibilidade de quebrar esse modelo político. Mas apesar disso, conseguiu-se criar o movimento “Por Blumenau Unido”, que teve o apoio não só dos jornais alemães, mas também dos jornais em língua portuguesa, porque o governo do estado se utilizou de uma atitude muito autoritária. Havia sido prometido um plebiscito, que não só não ocorreu, como o desmembramento foi outorgado de cima para baixo, e por isso as animosidades foram crescentes. Na tua opinião, tinha razão o governo brasileiro em temer o suposto “perigo alemão” no Sul do Brasil? Temos que distinguir a questão do perigo alemão do perigo nazista. Porque o governo brasileiro tinha medo de duas coisas. Uma era a atuação de partidos que não fossem brasileiros, já que esta era uma questão que envolvia a soberania nacional, e isto o Getúlio Vargas deixou muito claro para o embaixador alemão no Brasil quando começou a repressão ao Partido Nazista. Eu tive acesso a esta documentação, e o Vargas vai deixar bem claro que ele tinha, inclusive, simpatias para com a Alemanha nazista, mas ele não poderia permitir partidos externos no Brasil porque isso seria uma intervenção, uma afronta à política brasileira. A outra questão era o perigo alemão. O governo brasileiro tinha um projeto político que não admitia uma concepção de nacionalidade que não fosse a de pertencimento sentimental ao Brasil. Neste sentido o governo brasileiro teve muitos motivos para intervir no Vale do Itajaí porque aqui havia, entre muitas pessoas, um sentimento de pertencimento nacional à Alemanha. Neste sentido o projeto de nacionalização encontrou aqui muitos argumentos. Entretanto, o que podemos falar é que este projeto de nacionalização foi coercitivo, foi autoritário, utilizou-se de mecanismos que provocaram ressentimentos, traumas e onde muitas pessoas foram presas. Com relação ao perigo nazista, ele foi muito exacerbado, até por conta da repressão. O perigo nazista foi utilizado como argumento para a intervenção, principalmente quando se declarou guerra à Alemanha, a partir de 1942. Até então a nacionalização ainda não se tinha exacerbado tanto. Mas eu penso que, em relação a esse perigo alemão, não havia um projeto de anexação do Sul do Brasil ou algo neste sentido. Era mais um projeto de construção de um sentimento de pertencimento à nação brasileira, e que via no Vale do Itajaí uma fronteira da nação. Por isso eu procurei mostrar a vinda do Exército para Blumenau. Na época, dentro do próprio Exército brasileiro, houve uma preocupação com a proteção das fronteiras territoriais do Brasil. Muitas unidades do Exército foram mandadas para regiões limítrofes em relação a outros países da América do Sul, e para Blumenau também foi enviado. Aqui, no caso, não era fronteira territorial, mas uma fronteira cultural. Por isso muitos soldados foram enviados para cá com o objetivo não só de servir ao Exército, mas também de se misturar à população local. Inclusive, alguns ficaram, acabaram se casando por aqui. E o interessante é que nos discursos, o comandante do Exército vai dizer “Blumenau, cidade jardim e de belas mulheres”. No caso de Blumenau, o exército teve um papel muito importante, em nível de Estado mesmo, na campanha de nacionalização. Ele não veio só com objetivos militares, mas com objetivos de estimular essa miscigenação. Tens dado continuidade a esta pesquisa? Desdobramentos que não pudeste explorar na tese ou no livro? Desde que fui para o Paraná tive que mudar um pouco a minha pesquisa. Eu também tenho um pouco de preocupação com a especialização excessiva do historiador, e a minha ida ao Paraná provocou, em parte, um afastamento meu daquilo que eu tinha pesquisado até então. Depois disso eu me preocupei em discutir questões ligadas a patrimônio. Agora tenho um projeto que discute as migrações internacionais. Há muitas pessoas do Oeste do Paraná que no passado emigraram para o Paraguai e que atualmente estão voltando. Mas o meu foco de pesquisa agora é a emigração de jovens para países europeus. Mas ao mesmo tempo eu aprofundei a leitura de almanaques publicados em língua alemã no Vale do Itajaí. Um deles é o almanaque que, inclusive, foi editado por um dos líderes do grupo local do Partido Nazista, o Blumenau Kalender. Também trabalhei com outros almanaques editados em Blumenau, tentando perceber a difusão do nacional-socialismo, tentando perceber como é que estes almanaques vão ser, não só uma forma de entretenimento, mas também de propagação de ideologias políticas, e também fazendo uma análise das imagens de campo e cidade que eles mostravam. Porque eram almanaques publicados no município, que tinha uma configuração industrial e comercial no seu centro, mas que era caracterizado por áreas coloniais, e por isso entender como era essa relação campo e cidade nestes almanaques. Muitas documentações, que eu acabei pesquisando na Alemanha, ainda estão para ser aprofundadas: relatórios, contos... muito interessantes os relatórios de viagem no Vale do Itajaí e no Meio-Oeste de Santa Catarina, cartas, enfim. Documentos que ainda estão esperando. Mas pelo fato de eu ter me mudado para o Paraná, acabei não me dedicando mais a esses assuntos, porém, através do trabalho de pesquisa com os almanaques, eu procurei alguns aspectos. É o caso do nacional-socialismo, que eu não havia trabalhado, e sobre o qual publiquei um artigo agora na revista Blumenau em Cadernos. Chegaste a pesquisar alguma coisa relacionada ao José Ferreira da Silva, principalmente a respeito dessa mudança dele, de integralista para interventor? Na verdade eu deixei de usar como fonte confiável muitas das coisas escritas por ele. No livro sobre a história da imprensa em Blumenau, por exemplo, ele faz muitas descrições de periódicos que são errôneas ou em que há problemas. Ele elogia a publicação do almanaque editado pelos nazistas, e ele foi interventor na época em que houve a repressão ao Partido Nazista. Ele procurava evitar falar de muitas coisas que prejudicassem a sua trajetória política. Enfim, há de se tomar cuidado com muitas das coisas que foram escritas por ele. Eu o vejo como uma figura muito sui generis, porque ao mesmo tempo em que ele foi integralista, ele foi presidente da Câmara de Vereadores, procurou criar o museu Fritz Müller, procurou fundar o Instituto Cultural e Histórico, que realmente foi fundado, com a integração e articulação, inclusive, de membros do PRC. E logo depois, quando irrompe o Estado Novo, ele não só larga o integralismo, como é nomeado interventor. Tanto é que, quando ele é candidato a prefeito de Blumenau, depois da guerra, é acusado por muitas pessoas por conta disso. E depois ele nunca mais teve uma aparição política forte. Enfim, parece que a figura dele “navegou na onda”. Na época dele não havia a idéia de que a história não reflete uma verdade. O livro dele, “História de Blumenau”, é um livro que pretende ser a HISTÓRIA de Blumenau; mas se você for ver, muitas coisas foram silenciadas. É óbvio, todo historiador faz as suas escolhas a partir do presente, e todas as obras devem ser lidas nesta perspectiva. No capítulo que ele escreve sobre a história de Blumenau, no livro do centenário, ficou muito claro isso: a história de Blumenau, para ele, era só a colônia. Ele não está interessado em falar da história recente, principalmente por conta da trajetória política dele, mas também por conta de todos os ressentimentos, rixas e mágoas. Então na sua História de Blumenau, boa parte do que ele escreveu foi sobre a história da colônia. O que eu acho interessante é perceber, durante a campanha de nacionalização, como é que os próprios escritores da história de Blumenau e região vão divergir entre si. Então não adianta vir com um discurso único. O Theobaldo Jamundá tem um discurso muito distinto do José Ferreira da Silva, agressivo, que vai incriminar os alemães e seus descendentes de alienígenas. Ele vai se utilizar de muitos termos usados na época pelos nacionalizadores. Vai inclusive incriminar os modos de habitar do Vale do Itajaí, dizendo que as casas tinham janelas muito pequenas e eram muito insalubres. É interessante observar que na campanha de nacionalização até os modos de vestir e de viver vão ser desqualificados. E o Ferreira da Silva vai ter um discurso menos agressivo porque ele já estava inserido aqui há mais tempo. Já o Theobaldo Jamundá veio com o exército, fixou raízes aqui e começou sua carreira como escritor e historiador com o apoio da imprensa oficial do governo do estado, que publicou algumas coisas dele. E, inclusive, o Theobaldo da Costa Jamundá vai criticar o José Ferreira da Silva publicamente em uma das suas obras que trabalhei na minha tese, dizendo que o Ferreira da Silva “teria renegado a própria raça”, que era um luso-brasileiro do litoral que teria se vendido ao arianismo. Então é interessante a gente perceber que existem divergências e conflitos entre os próprios “alemães”, e também entre os próprios integrantes, diretos ou indiretos, da campanha de nacionalização. E eu acho que o historiador precisa ter cuidado com isso. Porque muitas vezes se polariza a coisa, e a história não é tão simples. Acho que o senso comum atrapalha muito o historiador, porque você tem que trabalhar muito para quebrá-lo com a pesquisa, enquanto ele é veiculado pela imprensa em reportagens que reproduzem idéias e imagens sobre essa época muitas vezes construídas pelos próprios nacionalizadores. Entrevista realizada em março de 2008. |
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