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Estética popular da literatura cordelista Imprimir E-mail

Neste ensaio, a professora Cristiane Roveda Gonçalves aborda a literatura de cordel enquanto gênero literário de importância na história da literatura brasileira, reconhecendo seu valor estético e social.

Estética Popular da Literatura Cordelista

Cristiane Roveda Gonçalves
Pós-Graduanda em Estudos Literários / FURB

capas

As manifestações artísticas estão presentes nos espaços sociais e são intrínsecas ao homem, independente do nível de escolarização ou, ainda, do chamado “nível cultural”. Cada organização ou grupo social apresenta suas manifestações de caráter artístico de maneira própria ou, ainda, por assimilação da cultura daqueles que a sobrepuseram pelo poder. Fato que comprova isso é conhecido no Brasil, especificamente na região nordeste do país, como literatura de cordel. Por algum tempo tratada apenas como uma representação da oralidade das “classes menos favorecidas”, tal literatura entra no cenário acadêmico apresentando características e uma estética tão peculiar que não mais é vista como uma literatura menor ou inferior.

Refletir sobre o estudo da Estética como disciplina filosófica nos levaria a pensar os conceitos ligados a Sócrates, Platão e Aristóteles. Para os filósofos da Antiguidade Clássica a Estética estava ligada a questões como o bem, a virtude e o belo. Nesses aspectos a arte só poderia ser considerada arte se pudesse suscitar no homem algum sentimento bom; a arte deveria apresentar-se aos sentidos da visão e da audição de forma que não causasse estranheza ou incomodo, mas sim sensações prazerosas relacionadas com a moralidade dos homens de bem.

Dentre inúmeros aspectos explorados pelos filósofos a poesia tomou grande espaço em suas discussões, para Platão “a poesia, arte máxima, exercida por quem é mais do que um artífice ou artista, [...] as outras artes, não podendo escapar da servidão da matéria, limitam-se a imitar as aparências sensíveis [...] falta-lhes a dignidade própria da poesia”1. Nessa perspectiva a arte da poesia apresenta-se como a mais pura das artes e também das mais antigas,

Já na tradição medieval a poesia contada ou recitada era uma atividade de entretenimento sempre presente nas comunidades, em suas festas e celebrações. A literatura conhecida como cordelista tem suas origens na tradição oral da contação de histórias.  Na qual o narrador anônimo conta suas experiências, transmitindo um ensinamento moral. Para que não se perdessem os poemas foram criados cancioneiros e a partir disso a impressão dos textos passou a ser uma prática comum. Nos séculos XVI e XVII, em Portugal, Gil Vicente já se apropriava desta forma de distribuição para disseminar seu teatro crítico. Para divulgar seus textos, os autores precisavam, também, ter o talento de vendedor, já que declamavam trechos de suas obras, parando em momentos de grande suspense para os ouvintes expressarem seus sentimentos. Era nessa hora que iniciavam a venda.

Com a colonização do Novo Mundo por Espanha e Portugal, a literatura de tradição oral chega ao Brasil e encontra grande espaço na região nordeste, da Bahia ao Pará. Passa então a ser conhecida como literatura de cordel. Como a tipografia ainda não estava ao alcance de todos os romanceiros, a xilografia surge como a melhor de forma de se produzir os cordéis. Normalmente os autores são os responsáveis por toda a produção, divulgação e venda de seus textos. Organizam-se em feiras populares e ali começam a contar suas histórias entretendo quem por ali passa e assim divulgam e vendem suas obras.

Os cordéis possuem algumas características fundamentais de caráter estético como, por exemplo, a composição dos versos que obedecem a uma métrica. Os versos são sempre heptassílabos ou decassílabos. As estrofes também obedecem a um número de versos, podendo ser quadras, sextilhas, setilhas ou ainda décimas. As rimas normalmente são fáceis, no entanto alguns autores utilizam rimas ricas.

No prefácio dos “Contos Tradicionais do Brasil”, saliente Luís da Câmara Cascudo: “nenhuma ciência como o folclore possui maior espaço de pesquisa e de aproximação humana”2, assim percebe-se na obra dos cordelistas uma grande aproximação com o imaginário popular e todas as suas lendas e causos mais pitorescos. Há temas que se repetem, como a coragem dos cangaceiros ou os milagres do padre Cícero, contudo o que se vê é a representação escrita, através de longos poemas, da cultura popular de um povo sem grandes recursos.  Um dos prováveis criadores do cordelismo no Brasil foi Leonardo Gomes de Barros. Poeta paraibano, nascido em Pombal em 1865, faleceu em recife em 1918 deixando um legado de cerca de mil folhetos escritos. Um de seus cordéis mais famosos é “Acapas vida de Pedro Cem”, além de várias histórias folclóricas que nos remetem a algum ensinamento.

Nas palavras de Afrânio Coutinho, há um fenômeno que deve intrigar o observador dos movimentos culturais tendo como exemplo o Ceará, em que “a sua pobreza material contrastando gritantemente com a sua fecundidade de homens de qualidades moral e intelectual superior, com a vitalidade de sua vida espiritual, com a intensidade e freqüência de seus movimentos intelectuais”[...]3. Em uma região tão castigada, em que o nível de escolarização, de leitura e de desenvolvimento intelectual é baixo em relação a média nacional, encontramos autores que a partir de seus cordéis aproximam seus leitores dos hábitos ditos “intelectuais”.

A produção cordelista é tão vasta que encontramos, nos dias atuais, textos como A verdadeira história de Ismália de Gadelha do Cordel. No cordel publicado em 2005, Gadelha busca inspiração no poema Ismália de Alphonsus de Guimaraens, poeta simbolista de influências árcades e renascentistas.  Há nesta produção literária releituras de clássicos da literatura universal como Os Miseráveis, adaptado por Antônio Klévisson Viana e O Corcunda de Notre-Dame, adaptado pelo poeta João Gomes de Sá. Nesta perspectiva percebe-se o interesse dos autores de seus leitores em tomar maior contato com a boa literatura e com o texto na forma escrita.

O mérito dos autores cordelistas vai muito além da publicação de pequenos livretos que são vendidos por um valor muito baixo. O grande valor dos cordelistas está na criação poética. Está também na possibilidade de fazer literatura onde não se vê perspectiva de espaço para tal produção artística, a produção, realização e manutenção de uma literatura rica no que tange as características da estética poética. Faz-se necessário observar com maior cuidado e respeito as manifestações culturais, a exemplo do cordel nordestino, pois nelas se encontra a verdadeira essência e pureza nos processos de criação artística.


1 NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo, Ática, 1991. p.25.
2 TAVARES, Hênio, Teoria Literária. Belo Horizonte, Itatiaia, 2002, 12ª ed. p. 420.
3 COUTINHO, Afrânio. Conceito de Literatura Brasileira. Ediouro, p. 104

 
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