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Raymond Chandler e seu conto Imprimir E-mail

foto“Chandler foi o principal inventor de um mundo em que abundam pistolas escondidas em coldres de ombro e piteiras presas entre os dedos de mulheres tão belas que nos forçam a suspeitar de sua gentileza”, escreve Maicon Tenfen, escritor e professor de Literatura Brasileira da Universidade Regional de Blumenau. Neste artigo, Tenfen analisa o conto de Raymond Chandler, discutindo os elementos que tornam sua obra atual e instigante.

Raymond Chandler e seus contos

Maicon Tenfen
(Escritor e Doutor em Literatura)

fotoNuma passagem de “Vou esperar”, conto que Raymond Chandler publicou na Black Mask, uma das mais famosas e cultuadas pulp magazines de todos os tempos, alguém se aproxima do protagonista para fazer uma advertência: “Há um carro preto, grande, mais adiante no quarteirão, do lado oposto aos carros de praça. Tem um cara parado ao lado dele, com o pé no estribo. Esse cara que falou comigo usa sobretudo escuro, trespassado, com gola alta levantada na altura das orelhas. O chapéu é muito baixo. Mal dá para ver o rosto”.

Impossível ler o enunciado acima sem imaginar a atmosfera fumacenta dos filmes noir. Um carro preto e grande, um indivíduo que usa gola alta — gola alta, dá pra acreditar? — e que oculta o rosto sob o chapéu. Graças à simplicidade das frases, todos os ingredientes surgem na página com uma energia visual indiscutível, de modo que a noite fria, a neblina e as sombras sequer precisam de descrição. Tudo já se encontra em algum lugar na mente do leitor, e bastam algumas palavras para que reapareçam e completem o cenário da ação.

Mas essa facilidade com que o texto nos reapresenta ao universo das histórias de detetive levanta uma questão incômoda: como deixar de imaginar os estereótipos? Ao lado de Dashiell Hammett, Chandler foi o principal inventor de um mundo em que abundam pistolas escondidas em coldres de ombro e piteiras presas entre os dedos de mulheres tão belas que nos forçam a suspeitar de sua gentileza. Delegados corruptos, esposas desaparecidas, uísque barato, armas engatilhadas no escuro... O universo chandleriano não se sustentaria sem esses elementos.

Por isso somos forçados a perguntar: meio século depois da morte do autor, período em que seus personagens foram plagiados e até mesmo ridicularizados por uma infinidade de filmes, games, HQs e comerciais de TV, ainda é possível ler os seus livros e neles identificar a essência e a originalidade de outrora? Como os seus detetives envelheceram no meio de tantas paródias, paráfrases e citações? Vislumbraremos algo além dos clichês disseminados por parasitas e admiradores?

A resposta é sim — um sonoro e indubitável sim — pelo simples motivo de que ninguém consegue escrever como Chandler. Comparações e piadinhas que pegariam mal na literatura alheia soam como música na voz do detetive Philip Marlowe, seu protagonista-narrador por excelência. “O álcool é como o amor”, diz ele. “O primeiro beijo é mágico, o segundo, sugestivo, o terceiro já é rotina. Depois disso você tira a roupa da moça”. Se o estilo é assim, afiado, não há estereótipo que estrague a diversão do leitor.

Mais até do que a obra de Hammett, a de Chandler goza de uma sobrevida no mercado editorial brasileiro. Além dos seus romances, e dos contos reunidos nos dois volumes de A simples arte de matar, disponíveis no catálogo da L&PM, acabam de chegar às livrarias, pela Record, mais duas coletâneas de contos: A porta de bronze e Chantagistas não atiram, ambas com tradução de Alves Calado.

Sem demérito para os romances, é nos contos que podemos experimentar um Chandler mais legítimo e primordial. E a vantagem das duas antologias recém-lançadas é que os nove textos selecionados contemplam toda a sua trajetória, da estreia quase anônima na Black Mask aos anos de celebridade, das últimas linhas como colaborador de pulp magazines a um conto que deixou para publicação póstuma. Ao leitor mais atento ficará claro que, mesmo escrevendo para revistas baratas, Chandler procurava se reinventar a partir de um modelo convencional de narrativa detetivesca.

Que modelo é esse? Em primeiro lugar, como o próprio autor descreve no ensaio A simples arte de matar, sua ficção fala de um mundo injusto e cruel, “onde um juiz com uma adega cheia de bebida contrabandeada pode mandar um homem para a cadeia por ter meio litro de uísque no bolso (...), onde nenhum homem pode andar por uma rua escura em segurança porque a lei e a ordem pública são coisas das quais falamos mas que nos abstemos de praticar”. Nesse mundo, entretanto – e é aí que se encontra a luz – existe um herói moderno, um detetive particular que “não aceita dinheiro desonesto de ninguém e também não aceita insolência da parte de ninguém”. É um sujeito orgulhoso, franco, “com total desprezo pela mesquinhez alheia”.

Alguém procura a ajuda do detetive, que aceita o trabalho e parte em busca de uma verdade oculta. A princípio o caso parece simples, os honorários valem a pena, mas não conseguimos chegar ao final do primeiro capítulo sem que a trama dê um pinote. Dinheiro, sexo, poder, o jogo é mais sujo do que poderíamos supor. De repente percebemos que todos os personagens são perigosos e dissimulados, inclusive as vítimas. Quando começamos a entender o que se passa, o inesperado acontece na forma de mais um assassinato, mais um sequestro, mais um desconhecido que entra pela porta com uma pistola na mão. A complicação da trama se aprofunda, daí a necessidade de um ou mais momentos scooby-doo para o novelo se desenrolar.

Tal estrutura é conduzida com mão de ferro em “A dama do lago”, conto que Chandler taxava de “antropofágico” por ter gerado, anos mais tarde, um romance com o mesmo nome. Algo semelhante ocorre no clássico “Armas no Cyrano's”, que abre com uma luta de boxe arranjada, e, com mais sutileza, no supracitado “Vou esperar”. Depois de conhecermos estes textos mais tradicionais, é divertido observar como o autor subverte o seu próprio estilo e nos presenteia com o inusitado.

Isso acontece principalmente em “O rapé do professor bingo”, com toques de realismo fantástico, quase uma história de fantasmas, e em “Verão inglês”, “um romance gótico”, conforme o subtítulo, publicado apenas em 1976 e até agora inédito em língua portuguesa. Neste último, Chandler praticamente esquece a intriga policial e se concentra no desvelamento de um triângulo amoroso formado por um americano e um esnobe casal de ingleses. Despreocupado que está com a descrição do cadáver, que só surge no fim, o narrador tem mais tempo para atirar seu sarcasmo contra os súditos de Sua Majestade.

Quem conhece Chandler apenas pelos romances pode estranhar que sua criação máxima, Philip Marlowe, só apareça em dois dos contos selecionados, ambos obedientes à estrutura convencional de narrativa detetivesca. A verdade, porém, é que são textos emblemáticos e representam os primeiros e os últimos passos de sua carreira. Em “Peixinhos dourados”, de 1936, o detetive se envolve numa espécie de caça ao tesouro amaldiçoado. Já em “O lápis”, de 1958, concluído menos de um ano antes de Chandler morrer, encontramos um Marlowe cansado e descontente com as mudanças a sua volta: “Era uma rua calma em Bay City” – diz ele – “se é que havia alguma rua calma nesta geração de beatniks”.

Seja como for, pouco importa o nome e a roupa dos detetives que aparecem nos contos de Chandler. Todos são Marlowe, ainda que em gestação, pois todos ostentam os mesmos ideais de orgulho e honestidade necessários para enfrentar o mundo cão das histórias policiais. Usam chapéu e gola alta? Talvez, mas são utensílios dispensáveis para fundamentar a força e a essência de sua originalidade.

 
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