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As traições de Capitu Imprimir E-mail
fotoDialogando com a historiografia e a literatura, Martin Kreuz interpreta as leituras que teóricos fizeram do romance Dom Casmurro de Machado de Assis, principalmente no tocante à traição de Capitu. Considerando a teoria da recepção, neste ensaio não importa saber se houve ou não traição por parte da personagem, mas compreender os diferentes momentos históricos, onde a condição da mulher interfere na leitura do romance, e faz com que ora se defenda a tese da traição, ora da não traição e ora da homossexualidade de Bentinho.

AS TRAIÇÕES DE CAPITU

Martin Kreuz
Graduando do curso de História / FURB

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fotoO romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, já recebeu diversos olhares e leituras diferentes, de matizes e intencionalidades as mais variadas. Dentre os estudos a ele dedicados, vicejam as discussões sobre se Capitu traiu ou não Bento Santiago. O debate inicialmente é possível pelas próprias características da obra: um narrador dúbio, que não apresenta nenhuma prova concreta de suas suspeitas ou certezas, apenas impressões relativamente vagas, o que dá margem às suspeitas – ou não – do leitor quanto às afirmações de Bento. Entretanto, uma análise mais acurada sobre as leituras realizadas da obra machadiana permite a percepção das historicidades dessas leituras, ou cada conjunto de leituras, que propomos poderem ser agrupadas em três tradições básicas: Capitu traiu, Capitu não traiu e Capitu foi traída. Ao longo do século XX, os leitores interpretaram o mesmo livro de formas diferentes, mas a partir ou em torno daqueles três postulados anteriormente elencados. Compreender essas transformações torna-se então um problema a ser deslindado, ou ao menos subsidiado, pela história. Assim, a presente sugestão é de que contextos diferentes produziram, cada um deles, uma leitura diferente da obra Dom Casmurro.

Já é de longa data que o historiador se libertou de uma visão oficiosa dos materiais a serem empregados para reinventar o passado, geralmente documentos empoeirados e esquecidos em arquivos até sua revelação por “um trapeiro à procura de achados” (FEBVRE, 1989, p. 19). À medida que a história, de crônica anedótica de reis e enumeração de batalhas, passou a ser a ciência, ou conhecimento cientificamente dirigido, dos homens, do passado humano, as fontes precisaram ser ampliadas. Para reconstruir as mentalidades, o imaginário, as instituições, as formas de se relacionar com a alteridade ou com o próprio corpo, não é mais possível consultar apenas os atos de Estado ou as cartas e diários dos homens que realmente importam, mas pinturas, músicas, peças de teatro, roupas, jóias, crônicas: todos os materiais criados ou modificados pela ação humana são e devem ser utilizados para fazer entender o objeto da história, o homem, no dizer de Lucien Febvre (1989). E dentre as fontes que podem ser usadas para essa finalidade encontra-se a literatura.

Literatura e leitura
 
Como fonte histórica, a utilização da literatura é um processo complexo, e por isso rico e diverso, e dependerá de inúmeros fatores, seja o tipo de texto literário – aquele que fala do passado, do seu presente ou futuro –, seja o propósito do historiador ao interrogar sua fonte. Para Sevcenko (2003) a literatura possibilita perceber a expectativa do vir-a-ser, os anseios de mudança e o desejo do que poderia ser a ordem das coisas; Certeau (1994, p. 260) afirma que um texto escriturístico traz em seu bojo a “pretensão dos ‘produtores’ de informar uma população, isto é, ‘dar forma’ às práticas sociais”; já Pesavento (2005, p. 82-83) escreve que:

A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário. Porque se fala disto e não daquilo em um texto? O que é recorrente em uma época, o que escandaliza, o que emociona, o que é aceito socialmente e o que é condenado ou proibido? Para além das disposições legais ou de códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que fornece os indícios para pensar como e por que as pessoas agiam desta e daquela forma.

Outro ponto que precisa ser levado em conta, pois enriquece ainda mais o uso da literatura pela história, é a tríade autor-obra-público. Ter em mente quem fala, de onde fala e com quais intenções fala é importante para historicizar o testemunho. Para uma percepção mais aprofundada é necessário levar em consideração a distinção feita por Zappone e Wielewicki (2003) entre literatura e manifestação literária, o que significa que um texto, após ser escrito por alguém, precisa chegar às mãos de outro, que o lê e o interpreta, constituindo dessa forma o fenômeno da literatura. Caso contrário, quando o texto não atinge um leitor, quando este não toma conhecimento daquele, o escrito permanece unicamente como uma manifestação literária.

Desse modo, o eixo de análise pode deslocar-se do autor e da obra para o leitor, que para alguns teóricos é a esfinge a ser decifrada para verdadeiramente entender o fenômeno literário. Roland Barthes (1988), por exemplo, constata a morte do autor, pois para ele o sentido da mensagem não se encontra em sua origem, o autor, mas em seu destino, o leitor; a voz do texto não é percebida na escritura, mas na leitura. Para Roland, a mensagem do “Autor-Deus” não possui importância face aos significados múltiplos apreendidos pelo leitor. Com ele concorda Certeau (1994, p. 264), que afirma que o ler é uma operação de construção do texto, de produção de um sentido ao escriturístico:

O texto só tem sentido graças a seus leitores; muda com eles; ordena-e conforme códigos de percepção que lhe escapam. Torna-se texto somente na relação à exterioridade do leitor, por um jogo de implicações e de astúcias entre duas espécies de “expectativa” combinadas: a que organiza um espaço legível (uma literalidade) e a que organiza uma démarche necessária para a efetuação da obra (uma leitura).

Dentre os teóricos fundamentais para se pensar o processo de leitura de um texto está Chartier (1994), que nos faz perceber que o texto sofre alterações devido a suportes diversos empregados para materializá-lo; um texto em formato de códex não é igual ao mesmo texto em formato digital. Igual importância é dada pelo autor às práticas de leitura, pois para ele a forma de apropriação do escrito também influencia a significação do texto, o que é perceptível principalmente na poesia, onde uma leitura individual, em silêncio, produz resultados diferentes de uma declamação. Porém, há que se considerar outro aspecto, talvez o principal, para se perceber os mecanismos envolvidos na operação de significar o escriturístico: assim como a escrita se articula e sofre influências do meio social em que está sendo composta, também a leitura é de certa forma produto do contexto em que é realizada – a exterioridade da qual nos falara Certeau.

Um autor que produz belo estudo sob essa perspectiva é Peter Burke (1997), que reconstruiu as leituras feitas de O cortesão – livro onde se procura caracterizar os comportamentos de um cortesão ideal – com o objetivo de compreender as diferenças territoriais e as transformações culturais que a Europa sofreu entre os séculos XVI e XVIII. Assim Burke pôde entender porque o mesmo foi lido de formas diferentes e com intenções diversas dependendo da localidade espaço-temporal em que essa operação se dava. O postulado teórico que orienta sua investigação é explicitada pelo autor da seguinte forma:

Embora o termo “tradição” originalmente significasse “legar”, é difícil negar que frequentemente ocorrem mudanças durante a transmissão de conceitos, práticas e valores. As tradições são constantemente transformadas, reinterpretadas ou reconstruídas – seja essa reconstrução consciente ou não – para se adaptarem a seus novos ambientes espaciais ou temporais. [...] leitores, ouvintes e observadores são apropriadores e adaptadores ativos, em vez de receptores passivos. [...] Deve-se acrescentar que a apropriação que praticam não é aleatória, mas possui uma lógica própria. Essa lógica da apropriação é freqüentemente partilhada por um grupo social, que pode, portanto, ser descrito como uma “comunidade interpretativa” (BURKE, 1997, p. 13-14).

Essa forma de abordar a literatura – ou leitura, apesar de aquela ser indissociável desta – permite “contrastar o escrito – conservador, fixo, durável – e as leituras – sempre na ordem do efêmero” (CHARTIER, 1994, p. 11) para reconstruir mais acuradamente os valores, as condutas e formas de pensar daqueles leitores, e as transformações que redimensionam seu mundo e sua relação com este. É a partir dessas idéias e compreensões que aqui procura-se fazer um exercício para compreender as diversas significações dadas ao triângulo Capitu-Bentinho-Escobar, descrito originalmente no consagrado Dom Casmurro.

Dom Casmurro e suas leituras

Machado de Assis produziu um romance que se tornou obrigatório não só pela qualidade intrínseca da obra mas também pelos debates e discussões acarretadas por seus leitores. Em Dom Casmurro, Machado conseguiu aliar com maestria densos retratos psicológicos e atordoante descrições de sentimentos, pincelando com presteza milimétrica sua fina ironia e seu sutil humor, para nos envolver, puxar e tragar para a realidade do romance, que vivenciamos com nossos olhos e percebemos em nossa pele, até o narrador nos lembrar de nossa condição de leitor, e portanto, espectador secundário.

A riqueza de sua escrita permitiu inúmeras leituras e interpretações, que não raro contradizem-se e excluem-se mutuamente. Nesse embate pela verdadeira compreensão de seu texto, o velho bruxo escapa a todas as tentativas de capturá-lo. Por isso, uma abordagem frutífera é justamente questionar as leituras do romance, procurar entender esses embates pela interpretação da obra - todas igualmente verdadeiras, segundo Barthes: “Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas” (1988, p. 69). Dentre essas discussões, a mais famosa é obviamente se Capitu traiu ou não Bento com Escobar. O curioso é que essa questão é um problema relativamente recente, pois quando do lançamento da obra, não havia dúvida alguma: Capitu traiu, pois Bento assim o relata.

Dom Casmurro, obra da maturidade machadiana, é classificada como pertencendo à corrente literária denominada de Realismo, que tinha, entre outros objetivos, a intenção de produzir um retrato o mais fidedigno possível do real. Por isso os autores realistas descrevem com todos os detalhes as emoções, os anseios, os pensamentos, os atos dos personagens e as características de tudo que os compõe e circunda. Em muitos casos os autores procuravam fazer a denúncia dos males sociais e injustiças, inflacionadas com o desenvolvimento industrial e o avanço do capitalismo em meados do século XIX europeu, argumentando que roubos, mortes e perversidades eram conseqüências dessas condições negativas de existência na qual se encontrava imersa a grande parcela dos trabalhadores. O autor mais emblemático desse tipo foi Émile Zola.

Mas são outros dois autores que nos importam aqui, o francês Gustave Flaubert e o luso Eça de Queiros. O primeiro escreveu em 1857 Madame Bovary, onde a personagem título casa-se com um inexpressivo médico de uma pequena cidade interiorana; para preencher o vazio de sua vida, Emma passa o tempo lendo romances sentimentais, quando conhece um jovem rapaz, bonito, alegre e ardente, com o qual se envolve, inclusive sexualmente; ao se arrepender por essa relação, ingere veneno e, entre os últimos espasmos, pede perdão a seu traído esposo. Já Eça publicou, em 1878 o romance O primo Basílio, que descreve as agruras de Luísa, que trai com seu primo Basílio o esposo Jorge. Ao ser descoberta pela empregada, Luísa faz de tudo para que esta não relate o acontecido a seu marido; a culpa a adoenta e causa sua morte.

Lançado em 1899, Dom Casmurro compôs de certa feita uma trilogia com as obras anteriormente citadas. O próprio Bento narra sua dupla experiência de descoberta, a de estar apaixonado por sua amiga de infância, Capitu, e de ter sido traído por ela, já adulta, com seu amigo de seminário, Escobar, do qual é fruto Ezequiel, o garoto que acreditava seu filho. Para evitar o escândalo público, força-a ao exílio, onde vem a falecer sem mais deitar nele os olhos “de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 1997, p. 55). Apesar de Capitu nunca ter admitido a traição, e do crime não haver nenhuma prova material, o narrador explica que isso era fruto do caráter astuto e dissimulado - pode-se ver que não o eram apenas seus olhos -, que já se manifestara em sua meninice, como quando calmamente risca a inscrição que fizera de seus nomes enquanto seu pai se aproximara dos dois, ou quando pensa soluções para evitar que Bentinho tenha de cumprir a promessa de sua mãe e tornar-se padre.

Influenciadas em maior ou menor grau pelos romances de Flaubert e Queiros, as leituras de Dom Casmurro são unívocas em atribuir a pecha de adúltera a Capitu. Em 1960, Helen Caldwell escrevera que “Os estudiosos de Machado de Assis que mencionaram este romance assumiram, praticamente sem exceção, a heroína como culpada” (2008, p. 13), e cita alguns desses leitores, como José Veríssimo, Afrânio Coutinho, Barreto Filho e Augusto Meyer. Afrânio Coutinho (1997) declara que o tema utilizado por Machado, o adultério, não era nada de original, mas seu brilhantismo escriturístico é responsável por a obra destacar-se na literatura. José Veríssimo, apresentando o romance, também concorda com a culpa de Capitu:

É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela môça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com sua faceirice calculada, com sua profunda ciência congênita de dissinulação, a quem êle se dera com todo ardor compatível com seu temperamento pacato. Ela o enganara o com seu melhor amigo, também um velho amigo de infância, também um dissinulado, sem que êle jamais o percebesse ou desconfiasse. Sómente o veio a descobrir quando lhe morre num desastre o amigo querido e deplorado. Um olhar lançado pela mulher ao cadáver, aquêle mesmo olhar que trazia “não sei que fluido misterioso e enérgico, uma fôrça que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca”, o mesmo olhar que outrora o arrastara e prendera a êle e que ela agora lança ao morto, lhe revela a infidelidade dos dois (VERÍSSIMO, 1969, p. 288).

Importa também não cair no erro de uma visão deveras simplista e creditar essa leitura depreciativa de Capitu como mera conseqüência de uma tradição já construída de romances que apresentam a esposa infiel no período, que precisam ser compreendidos à luz do estabelecimento de um modo burguês de vida, de coletividade e de papéis sociais. No século XIX o Brasil, até então um arquipélago de domínios rurais, presenciou o surgimento de um espaço urbano e a invenção do lugar público. A rua foi normatizada, e as pessoas disciplinadas para utilizarem-na. D’Incao (2000) argumenta que em contrapartida, a vida doméstica sofreu uma restrição, sendo forçada a se interiorizar à privacidade e intimidade da residência. A rua foi interditada para as mulheres, mas principalmente as burguesas.

De forma geral, o modelo burguês denotou o fortalecimento do núcleo familiar e do controle deste pelo marido e pai. A esposa devia obediência a seu marido, o que também significou velar pela imagem do homem: “Num certo sentido, os homens eram bastante dependentes da imagem que suas mulheres pudessem traduzir para o restante das pessoas de seu grupo de convívio” (D’Incao, 2000, p. 229). Suas ações precisavam portanto ser comedidas, com uma aparência respeitável, e seus deveres exercidos à perfeição. A mulher assume o papel de guardiã do lar e da família, aos quais precisa ser integralmente devotada. Nesse quadro, uma esposa que descumprisse suas obrigações familiares e maculasse a imagem de seu marido, era algo temerário, ofensivo e desprezível. A essa impudica só restava a morte, seja violenta e dolorosa como a de Emma ou lenta, de sofrimentos prolongados como a de Luísa. O exílio que Bento força a Capitu representa a proeminência do privado sobre o público, pois evitava que seu círculo de convívio tomasse conhecimento de ter sido presenteado com um par de cornos, e sua vergonha permanece circunscrita a sua intimidade.

Souza (2005) acrescenta outro fator que contribui para a culpabilização da personagem: “suas atitudes não condiziam com o modelo de mulher no século XIX. Por ir além dos padrões femininos de comportamento da época, Capitu torna-se uma ameaça para Bentinho, pois ela interfere e participa do território, até então, só masculino” (2005, p. 53-54). Desde a infância Bentinho era dominado por ela, inclusive ofuscado intelectualmente, pois à ameaça do seminário divagava por um milagre ou intervenção do Imperador, enquanto Capitu arquitetava a melhor forma de solicitar auxílio de José Dias; e ao contrário do costume em vigor, foi Capitu quem tomou a iniciativa da conquista ao beijar o narrador. Outro ato, o de guardar dinheiro sem o comunicar ao marido, também revela uma inadequação dela ao papel social lhe atribuído; como esposa, seus deveres orientavam-se ao cuidado da casa e do filho, enquanto que as finanças eram assunto exclusivo de Bento. Ao transgredir as normas e papéis sociais, Capitu questiona a autoridade masculina e fere o patriarcalismo vigente. Como ameaça, precisa ser censurada, reprimida, corrigida, para que a ordem se restabeleça. A voz dissonante é silenciada por meio do exílio.

Essa culpabilização da personagem é questionada oficialmente pela primeira vez por Helen Caldwell (2008), quando põe em dúvida a infidelidade impingida a Capitu. Realizando um estudo comparativo com a tragédia shakespeariana Otelo, a autora centra-se nos aspectos intertextuais da obra de Machado para revelar os sofismas e ardis das acusações de Bento e absolver Capitu do crime que lhe fora falsamente imputado. Um a um, os argumentos de Bento são descontruídos e demonstrada a malícia, astúcia e dissimulação, não de Capitu, mas do narrador, personagem ambíguo e nada confiável, cujo testemunho precisa ser lido com cuidado e atenção. Assim como Desdêmona é incriminada por Iago através de meias palavras e sutis subterfúgios que plantam em Otelo a semente do monstro de olhos verdes, o leitor também é envolvido lentamente na teia tecida por Bento e se convence do adultério. Mas, Caldwell nos lembra, apesar de encontrar a morte pelas mãos de seu amado, Desdêmona era inocente. O lenço achado por Otelo entre as coisas de Cássio é a prova cabal da infidelidade da esposa; em Dom Casmurro o lenço é a semelhança física entre Ezequiel e Escobar, filho e pai.  Mas a exemplo do lenço plantado por Iago, as feições de ambos são similares apenas para Bento. Invertendo a peça jurídica montada pelo narrador, a autora acusa que a traição efetivamente existiu, mas da parte de Bento, que não amou sua esposa como ela o amara, e permitiu que seu ciúme a matasse e conspurcasse sua memória.

A leitura de Caldwell é, como não poderia deixar de ser, fortemente influenciada pelas transformações sociais que o mundo ocidental sofreu no segundo pós guerra no que tange às mulheres. Hobsbawm (1995) afirma que as raízes dessa segunda onda feminista que se inicia nas proximidades da década de 1960, precisam ser buscadas principalmente na absorção em massa de mulheres pelo mercado de trabalho, em especial de mulheres casadas, conseqüência principalmente da expansão do setor terciário e da economia de guerra, que empregou as mulheres a fim de liberar os homens para o combate. Segundo o autor, apesar das motivações econômicas da maior parte das casadas que necessitavam complementar a renda da família, para um importante setor de mulheres casadas da classe média romper a esfera doméstica e ingressar no mercado de trabalho assumia uma forte carga ideológica:

Se havia um incentivo para as mulheres casadas saírem de casa nesses círculos, era a demanda de liberdade e autonomia; a mulher casada ser uma pessoa por si, e não um apêndice (‘apenas esposa e mãe’). A renda entrava nisso não porque fosse necessária, mas porque era algo que a mulher podia gastar ou poupar sem pedir primeiro ao marido (1995, p. 312).

As questões suscitadas por essa transformação social, aliada a uma nova consciência de feminilidade, produziram mudanças significativas nas expectativas dos papéis sociais a que caberiam às mulheres, o que se desenvolve em direção à auto-afirmação feminina e assume contornos políticos de emancipação. Organizam-se os movimentos feministas, mais ou menos radicalizados, mas também “uma forma política e ideologicamente menos específica de consciência feminina se espalha[...] entre as massas do sexo” (HOBSBAWM, 1995, p. 306).

Não admira que Caldwell se pusesse a “reabrir o caso” (2008, p. 100) movido por Bentinho contra Capitu e questionar o veredicto, dado sem ouvir a defesa da acusada, e baseado somente na palavra do narrador, de acordo com o período do patriarcado que delegava à mulher o papel de apêndice do homem, mas não com os novos tempos que se avizinham. A pena imposta à personagem se torna mais grave na ótica da autora, pois enquanto a esposa vivia infeliz no exílio em terras desconhecidas, mas ainda devotando amor ao marido, este pouco sofreu: “sua alma, ele nos conta, não se fiou num canto como uma flor lívida e solitária; ele viveu o melhor que pôde – com prostitutas que o consolavam, bons jantares e peças de teatro” (2008, p. 102).

A autora constata uma associação recorrente na obra entre o personagem Bento e o cristianismo, o que se torna significativo aqui, pois a religião cristã durante séculos procurou reprimir as mulheres, controlar a feminilidade e silenciar sua sexualidade. A violência dirigida contra as mulheres não se dava apenas sob forma física, por meio da morte de milhares acusadas de feitiçaria, mas sobretudo subjetiva, através de pregações e sermões que acusavam sua inferioridade natural e creditavam elas carregarem o pesa da maldição de Eva. Em outro ponto, a autora afirma que na ótica de Bento, “a morte da inocente Desdêmona foi justa, de modo que, para que a punição da ‘culpada’ Capitu seja justa, deve ser mais terrível que a de Desdêmona” (CALDWELL, 2008, p. 188): Desdêmona, inocente de adultério, mas culpada por ser mulher, sofreu morte justa. Percebemos agora a intenção de Caldwell, absolver Capitu, sim, mas também questionar a ordem das coisas que transforma em crime o ser mulher. Esse é, ao contrário, um privilégio: para a autora, o personagem Casmurro simbolizaria o amor-próprio, o egoísmo, sentimentos baixos e mesquinhos; Capitu, ao contrário, simboliza o Amor, a candura, a inocência.

O estudo de Helen Caldwell abriu as portas para que se travasse um fecundo debate sobre o romance machadiano. Muita tinta foi gasta para reafirmar a traição de Capitu ou sua inocência, vítima do ciúme doentio do marido. Mas recentemente uma nova leitura da trama foi realizada por Millôr em sua coluna na revista Veja, em tom anedótico, é verdade, mas que aqui nos interessa: a parte traída do casal foi a esposa, Capitu. Retirando uma série de fragmentos do romance e apresentando-os seguidamente, Millôr encontra material para afirmar que Bento era atraído sexualmente por Escobar, e seu ciúme não era da esposa, mas do amigo. Em suas palavras, “tirei Dom Casmurro do ‘armário’” (FERNANDES, 2005, p. 35). Corroborando a opinião de Millôr, Sérgio Paulo Rouanet, em entrevista sobre seus estudos a respeito de Machado, também declarou que “A relação de Bentinho com o Escobar é claramente homossexual” (CONVERSA, site).

Em tom cômico ou não, há uma nova percepção da obra de Machado, percepção possível em razão da homossexualidade ter sido retirada das sombras que a inominavam, e ganhando espaço nas agendas sociais. No bojo das reivindicações feministas, os grupos homossexuais se organizaram para a descriminalização de sua condição sexual, o respeito a ela e o usufruto dos direitos sociais e civis. No Brasil, a questão do homossexualismo é mais recente, e sua publicização ocorre de forma mais significativa a partir de meados dos anos 1980.

Assim como Marc Bloch (2001) escreve que o passado muda de acordo com o presente que o lê, à procura de respostas para seus problemas, também Chartier e Bourdieu (1996, p. 250) informam que “um livro muda pelo fato de que não muda enquanto o mundo muda. [...] Quando o livro permanece e o mundo em torno dele muda, o livro muda. Afinal, o espaço dos livros em que serão lidos irá mudar.” À semelhança da história, ciência viva e em constante transformação porque as sociedades, os homens que a praticam não são seres amorfos ou estátuas imóveis, a literatura igualmente sofre um processo de reinterpretação, de ressignificação a cada leitura. Retomando Peter Burke, cada apropriação é um processo de recontextualização que mantém a tradição “ao garantir que ela continue a atender às necessidades de grupos diferentes” (1997, p. 14).

Evidentemente, o exercício aqui realizado não esgota a discussão. Seria no mínimo insensatez acreditar que somente o contexto produz a leitura. Igualmente pouco crível é a apresentação dessas três correntes interpretativas da obra de Machado como uma progressiva continuidade sem rupturas ou desvios – se assim o parece aqui, é somente para fins didáticos. É claro que uma leitura não exclui as outras, ou que em um momento todos leram o romance da mesma forma. De qualquer forma, o debate continuará e, se as argumentações aqui postas estiverem corretas, enriquecido com novas leituras de Machado.

REFERÊNCIAS

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FEBVRE, Lucien Paul Victor. Combates pela história. Tradução Leonor Martinho Simões e Gisela Moniz. 3.ed. Lisboa: Presença, 1989. 262p. Tradução de: Combats pour L’ histoire.

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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2.ed. São Paulo: Cia das Letras, 2003. 420p.

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