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Ladrão de Cadáveres Imprimir E-mail

capaNeste breve ensaio o escritor e professor de Literatura, Maicon Tenfen, discute o livro “Ladrão de Cadáveres”, de Patrícia Melo. Classificando-o enquanto obra do gênero policial, Tenfen observa as influências de Rubem Fonseca neste livro da autora, cuja primeira edição saiu pela Editora Rocco.

Ladrão de Cadáveres

Maicon Tenfen
Doutor em Literatura, Profº Deptº de Letras da FURB

A sombra de Rubem Fonseca sobre a ficção brasileira contemporânea é tão poderosa que às vezescapa chega a ser opressiva. Claro que isso não é culpa do autor, sujeito recluso que dificilmente dá entrevistas ou aparece em público, mas de um estilo que, dada a força da sua identidade, acaba contaminando a escrita dos admiradores. Na hora de escolher os temas, conceber o enredo ou se posicionar diante do material narrado, escritores iniciantes, ou nem tão iniciantes assim, agarram-se às fórmulas consagradas pelo ídolo. Do pastiche à homenagem intertextual, do plágio escancarado ao espelhamento sutil, da paráfrase perfeita à paródia grosseira, muitas são as formas com que Fonseca se encontra numa considerável parte dos contos e romances que hoje se publicam no Brasil.

Dentre as legiões de discípulos, Patrícia Melo é uma das que possuem mais apelo e notoriedade. Em quase todos os seus livros, ela brinca de ser Rubem Fonseca. Às vezes isso acontece por vias indiretas e altamente criativas, como em Acqua Toffana, e às vezes por vias tão diretas e explícitas, como em Matador e Mundo Perdido, que acabamos surpresos por sua exatidão ao reproduzir a atmosfera, o tom e o ritmo concebidos pelo mestre. Em Elogio da Mentira, ela consegue ser mais fonsequiana que o próprio Rubem Fonseca. Se trocássemos os nomes na capa do livro, passaria sem problemas. Depois de um romance peculiar como Valsa Negra, onde se pode perceber uma voz mais autoral, o ciclo de devoção chega ao paroxismo com o fraco Jonas, o Copromanta, em que Fonseca aparece como personagem da trama.

E o novo livro de Patrícia Melo, Ladrão de Cadáveres? Mais uma vez, ipsis litteris, encontramos o receituário-Fonseca: o narrador masculino em primeira pessoa, a violência relatada com um descaso que pode nos levar tanto ao riso quanto à repulsa, figuras femininas manipuladoras que servem para impulsionar as ações do protagonista e, como não poderia deixar de ser, uma trama em ritmo de pingue-pongue, repleta de guinadas capazes de fazer os personagens pularem de um lado para outro em meio a sexo, roubos, assassinatos, falsos sequestros (no caso o de um cadáver) e outras confusões que devem se encontrar e se esclarecer nas páginas finais. Apesar disso e dos reveladores agradecimentos “ao meu eterno amigo Rubem Fonseca”, que leu os originais, Ladrão de Cadáveres possui um tom diferenciado, mais solto, mais independente, mais Patrícia Melo, por assim dizer.

Não fosse o start meio batido e o frenesi de seriado policial, seria um romance tão atraente quanto Valsa Negra. Já de saída, ao assistir à queda de um monomotor no Rio Paraguai, o anti-herói mergulha para socorrer o piloto, mas é tarde demais. Em compensação, encontra “um pacote inconfundível, desses que você vê na televisão, em reportagens sobre apreensão de drogas”. É o acaso chamando para a aventura e a reflexão (a propósito, nosso personagem é dado a tiques filosóficos que não combinam muito com os pensamentos de um ex-gerente de telemarketing): “Não sei quem disse que o homem não é honesto por muito tempo quando está sozinho, mas é a pura verdade. No mesmo ímpeto, também tirei o relógio do pulso do piloto e me mandei”.

Poucas páginas são necessárias para compreendermos a encrenca que é a vida do protagonista. Depois do suicídio de uma subordinada na central de telemarketing, ele troca São Paulo pela calorenta Corumbá, no Mato Grosso, uma cidade que desmente qualquer mito relacionado ao Bom Selvagem de Rousseau. Ali se envolve com uma jovem agente da polícia que acaba de ser transferida para o necrotério local, mas também com a mulher do primo que o acolheu em sua casa, e ainda com a rica família do rapaz que morreu no Rio Paraguai, com um bicicleteiro que venderá a droga encontrada no monomotor e, para completar o quadro do desastre, com um bando de traficantes bolivianos.

Esse caos que preenche o enredo, no entanto, não contamina a nossa percepção da trama. Uma das vantagens do romance de Patrícia Melo é que ela consegue manipular dezenas de elementos sem permitir que a leitura se torne pesada ou confusa. Acompanhamos os passos do narrador, deploramos algumas de suas escolhas, aprovamos outras, seguimos com ele por labirintos e becos sem saída, prendemos o fôlego ou suspiramos ao término de cada capítulo. Ou seja, o livro cumpre a meta de nos proporcionar um agradável sonho ficcional, a suspensão da descrença diante dos atos e das falas dos personagens, tudo que poderíamos desejar de um romance. É uma pena que as páginas finais, depois das complexas maquinações do protagonista, apresentem soluções tão fáceis e previsíveis.

Ladrão de Cadáveres não é o melhor romance de 2010, mas representa um momento importante na obra de Patrícia Melo, espécie de ponto de virada numa trajetória necessariamente relacionada à “angústia da influência”, e portanto merece nossa atenção. Tudo indica que os grandes livros da autora serão escritos nos próximos anos.

 
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