Menu Content/Inhalt
Home
Notas sobre a literatura catarinense 07: Uma vaca em nossa literatura Imprimir E-mail

capaCom texto intenso e repleto de sutilezas, e o traço lúdico e cuidadoso do artista Nestor Jr, “A vaca minuciosa”, livro de estreia de Pochyua Andrade, representa um austo novo e esperançoso na “literatura infantil”. Capaz de dialogar com o universo infantil e refletir a respeito das particularidades do tempo presente, o livro é de leitura altamente recomendada, principalmente porque não se rende às fórmulas fáceis e principalmente porque trata com inteligência seus leitores.

Notas sobre a literatura catarinense 07: Uma vaca em nossa literatura

Viegas Fernandes da Costa*

capaHá muito que a discussão sobre a existência de um gênero literário que possamos chamar de literatura infantil se tornou inócua. Haja ou não este território, importante é perceber a existência de textos tão especiais que são capazes de dialogar tanto com um público adulto e extensamente letrado, quanto com um público que inicia suas descobertas no mundo do verbo grafado. E não é difícil reconhecermos que um livro capaz de prender a atenção de uma criança, por natureza repleta de uma saudável, irrequieta e exigente curiosidade, torna-se também leitura altamente recomendável a nós, adultos, ainda que não tão curiosos.

Neste território não delimitado da literatura infantil, grandes clássicos já foram escritos. Para ficarmos apenas com os mais conhecidos, podemos citar “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, “O menino do dedo verde”, de Maurice Druon, e “O menino maluquinho”, do nosso Ziraldo. São tantos os leitores que já se aventuraram com estes meninos da ficção, que difícil é encontrar alguém que no Ocidente não os conheça.

O Brasil, por sua vez, possui também rico e vasto acervo de autores que dedicaram suas penas à literatura cuja linguagem e universo pretendem atingir fundamentalmente nossas crianças e jovens. Além do já citado Ziraldo, nomes como o de Ana Maria Machado e do controvertido Monteiro Lobato são presença obrigatória em qualquer biblioteca infantil. Autores cujo texto respeita a inteligência dos seus leitores, não se rendendo às fórmulas fáceis de uma literatura puramente mercadológica, despreocupada com a qualidade da fábula e com as possibilidades que o “gênero” pode oferecer. E é importante que se diga isto, porque atualmente proliferam nas livrarias – e até mesmo sob semáforos – editores e autores que enxergam nos “livros para crianças e jovens” produtos de lucro fácil e rápido. Em Santa Catarina não é diferente. Na busca de autoria e alguma renda, diversos escritores vêm publicando, seja através de editoras comerciais, seja através de edições próprias ou até mesmo financiados por fundos públicos de cultura, livros de qualidade duvidosa, com textos e ilustrações pobres em originalidade, grotescos erros orgráficos e gramaticais e narrativas confusas. Aproveitam-se estes autores e editoras da boa-fé de pais convencidos pelas campanhas de fomento à leitura e do descaso de uma parcela de educadores, para despejar no mercado os refugos da nossa indústria cultural.

Neste contexto, é sempre reanimador quando nos deparamos com novos autores que tratam com respeito seus leitores e dignificam a literatura. É o caso, por exemplo, de Pochyua Andrade, que recentemente lançou seu primeiro livro, “A vaca minuciosa” (Editora Nova Letra), com ilustrações de Nestor Jr, artista cuja obra chama atenção no atual cenário catarinense das artes plásticas.

Pochyua Andrade é natural de Recife (PE), mas está radicado em Santa Catarina desde sua juventude. Cursou Música na Universidade Regional de Blumenau, cidade em que reside, e é professor na Fundação Cultural de Indaial. Como músico e compositor, lançou em 2008 seu primeiro disco, intitulado “Pochyua e Cambaçu”, fortemente influenciado por estilos nordestinos, como o frevo e o maracatu. Suas influências de origem, entretanto, não o descolam da realidade local em que fixou residência. A arte de Pochyua é dialógica, e neste sentido “A vaca minuciosa” é obra emblemática. Com sua narrativa em terceira pessoa, tão comum à literatura infantil clássica, a fábula tem os pés fincados na realidade do Vale do Itajaí, sem entretanto descuidar da universalidade.

Ao contar a história de uma vaca cheia de personalidade e ideias improváveis e sua proprietária, a  menina  Josefina, Pochyua trata também de temas universais como o belo, o sentimento de pertencimento, a alteridade, a perda e a morte. Estes temas, entretanto, estão inseridos na fábula com leveza e naturalidade tais, que de forma alguma a narrativa lembra o panfletarismo ou o moralismo de muitos textos infantis que circulam por aí. Podemos ilustrar o que afirmamos com um trecho da obra, momento em que Minuciosa – a vaca - reflete sobre as mudanças provocadas na paisagem por uma grande enchente (e aqui o autor se vale de um dos principais símbolos do imaginário coletivo da região: as cheias do rio Itajaí-Açu), e nas pessoas, quando da morte do pai de Josefina: “A chuva sem fim mudou a montanha, o tempo sem fim mudou a montanha e a viagem do pai de Josefina para o céu mudou a montanha também. O mundo de cada um, que parece não mudar nunca, de repente muda e vira outro mundo. A gente deve estar sempre preparado para o outro mundo.” Interessante é observar que, na perspicácia sistêmica de Minuciosa, a morte de uma pessoa interfere também na paisagem. Afinal, nós humanos somos também parte da paisagem, integramos uma ecologia, mas não somos, entretanto, os únicos a transformar o mundo. Um mundo que não se constitui exclusivamente de racionalidades, mas também de acasos e sensibilidades. E é com grande sensibilidade que Pochyua aborda tema tão complexo, e muitas vezes interdito, como é o caso do tema da morte que, segundo a fala do tio de Josefina, “nos dá a vida que os nossos olhos escondem...” Sensível também a maneira como o Minuciosa reflete a respeito das transformações sofridas pela montanha depois das intensas chuvas e cheias: “a beleza da montanha já era outra beleza”. Onde, se não na arte, é possível tratar de evento tão traumático quanto o das tragédias socioclimáticas – e que o Vale do Itajaí conhece tão bem – como possibilidade de construção do novo?  Pois o que Minuciosa nos ensina é isso, que o fim de uma beleza é a possibilidade de outra.

Para além do que já dissemos, Minuciosa é uma vaca curiosa e dada a filosofias – como toda criança. Filosofias que na versão do narrador ficam sendo chamadas de pensamentos improváveis (mas não impossíveis). Eis alguns exemplos: “A semana precisa somente de dois dias – pensava a vaca – um para saber que dia é hoje e outro para saber que dia foi ontem e que dia será amanhã. A vaca batizou os seus dois dias de ‘dia sim’ e ‘dia não’.” Ou ainda: “A montanha é o mundo de todas as coisas vivas que moram lá.

Os pensamentos de Minuciosa nos ensinam, por exemplo, que novas descobertas indicam novos caminhos. Talvez por isso pise “devagar no lugar novo, para conhecê-lo devagarzinho, que é como devemos conhecer as coisas novas, sem pressa”. E, ao descobrir um pedacinho do paraíso (talvez algum recanto real da Nova Rússia, localidade no sul de Blumenau onde Pochyua concebeu os primeiros mugidos de sua vaca), soube que sempre poderia voltar, “pois sempre podemos voltar para os lugares em que nos sentimos em casa”.

Com seu texto intenso e repleto de sutilezas, e o traço lúdico e cuidadoso de Nestor Jr (ilustrações que mereceriam um texto à parte, tão especiais que são), “A vaca minuciosa” representa um hausto novo e esperançoso para nossa “literatura infantil”. Capaz de dialogar com o universo infantil e refletir a respeito das particularidades do tempo presente, este livro de estreia de Pochyua Andrade é de leitura altamente recomendada, principalmente porque não se rende às fórmulas fáceis e porque trata com inteligência seus leitores.

* Viegas Fernandes da Costa é escritor e historiador. Trabalha na Biblioteca Universitária da FURB, onde edita o site de literatura Sarau Eletrônico.

 
< Anterior   Próximo >

Artigos já publicados

O Detetive de Florianópolis

Há 25 anos, surgia nas páginas do jornal “O Estado” uma figura que se tornaria lendária entre leitores assíduos de literatura de suspense. Hoje, se vê que O Detetive de Florianópolis, do escritor catarinense Jair Francisco Hamms, ia muito além de pregar o leitor em suas páginas. Neste texto, o escritor Marcelo Labes comenta este livro, um clássico da crônica catarinense.

Leia mais...