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Notas sobre a literatura catarinense 10: “Zélica e outros” Imprimir E-mail
Notas sobre a literatura catarinense 10: “Zélica e outros”
 

capaO editor do Sarau Eletrônico, Viegas Fernandes Costa, comenta o segundo livro de contos do escritor catarinense Flávio José Cardozo, “Zélica e outros”, que teve sua primeira edição publicada em 1978.
Notas sobre a literatura catarinense 10:
“Zélica e outros”

Viegas Fernandes da Costa

capaNosso espírito de vira-lata muitas vezes nos impede de olhar para os milagres dos santos de casa. A literatura produzida por escritores viventes em terras catarinenses, esta filha das sombras, sem-teto, habitante de sob a ponte, não poucas vezes produz textos de grande qualidade estética e ética, geralmente abandonados ao pó das estantes ou aos estoques esquecidos de editoras há muito sepultadas. Mas como é bom reencontrá-los!
Recentemente revisitei a obra de Flávio José Cardozo, nascido em 1938 na carvoeira Lauro Müller, mas radicado no Caminho dos Açores de Santo Antônio de Lisboa. A perspectiva de entrevistá-lo devolveu-me o prazer dos seus textos. Flávio é desses escritores que, não soubéssemos suas origens, desconfiaríamos mineiro, de tão quieto que vive. A literatura não é sua missão, por certo, o que lhe garante o direito de escrever solto, de publicar o que lhe pareceu acabado. Ganhamos nós, leitores. Desde seu primeiro livro de contos, “Singradura” (1970), percebemos um autor sério, no sentido do compromisso com uma proposta estética, mas, principalmente, com o valor da fábula, do causo e da cultura popular. Sério também quando procuramos compreender as lacunas de anos entre a publicação de seus livros. Se “Singradura” é de 1970, “Zélica e Outros”, seu segundo título é de 1978. Na década de 1980 algumas antologias de crônicas suas e, em 2005, “Guatá”, em cujos contos Flávio nos revela a terra da infância, ausência que estranhávamos em suas obras anteriores. Afinal, por que o menino que cresceu deslumbrando-se com os contrafortes da Serra do Mar havia de dedicar praticamente toda sua escrita às pessoas e aos valores do mar? Memória é coisa séria, suspeitamos, e há de se amadurecer para bulir com ela. Da mesma forma, a vida precisa ser vivida para que dela possa nascer a literatura. E de vivências em vivências, Flávio foi construindo uma literatura sólida no conto e na crônica, fundamentalmente, com algumas espiadas na tradução (traduziu Jorge Luis Borges para o português tupiniquim), na literatura infantil e na memorialística. Uma literatura sólida, oferecida a conta-gotas.
Ao escrevermos sobre um autor, talvez, fosse prudente escrevermos sobre seus títulos recentes, possivelmente mais acessíveis ao leitor e passíveis de debate. Porém, neste revisitar da obra de Flávio José Cardozo, ocorreu-me dizer duas palavras sobre um dos seus livros cuja leitura provocou-me maior prazer. As duas palavras, portanto, teço sobre “Zélica e Outros” (1ª edição de 1978, pela Francisco Alves, e 2ª edição de 2001, pela FTD), obra premiada com o terceiro lugar no Prêmio Remington de Prosa (é, faz tempo!) e que reúne nove contos cujos títulos, por si só, apresentam-nos nove personagens tipo da realidade social açoriana experienciada pelo autor no transcorrer da década de 1970.
Em “Zélica e outros” o autor lança um olhar picaresco sobre o choque promovido pelo encontro (muitas vezes traumático) entre a cultura açoriana do interior de Florianópolis e o urbano prenhe de modernidades. Flertando com a oralidade e a elegância estética, e mesclando o trágico ao humor, Flávio nos apresenta um mundo em diluição, no qual o moderno traduz-se em desejo e derrocada, possibilidade e frustração. Quando lemos, por exemplo, o conto “Uliano Torres de curto porém vistoso reinado”, e conhecemos a história deste “santíssimo homem” que enamora-se de uma japona (esta palavra, ainda a usamos?) importada pelo comerciante Isaque Rebolo e posta à venda em sua loja de secos e molhados, deparamo-nos com o elemento alienígena capaz de enlouquecer àqueles que a este se entregam. O alienígena que permeia boa parte dos contos e que se apresenta como elemento desestruturante de uma “paz” local, assegurada pela tradição, ainda que esta tradição carregue consigo certa dose de violência, como é o caso do conto “Serenita Reis defendeu-se, fez muito bem”, que narra a história do casal Getúlio (bêbado e jogador contumaz) e Serenita (esposa servil). É o ingresso de uma afilhada órfã e ainda jovem no seio do casal, e a perspectiva da visita de uma irmã de Getúlio, moradora da distante Treze Tílias, que leva o protagonista do conto a relativizar seus valores morais e propor uma troca de favores sexuais entre a afilhada e um adversário de jogatina, a fim de preservar as aparências de um status social diante da irmã. Em “Simão Pedro na porta como um soldado”, por sua vez, a referência ao urbano/moderno enquanto elemento invasor e de desestruturação é muito mais direto, para não dizermos literal, quando o narrador descreve os turistas jovens que chegam em veículos motorizados perguntando por Garopaba, para por lá passarem férias e barbarizarem a honra das moças incautas do interior.
O tom picaresco dos contos, principalmente na construção dos tipos, do qual lança mão o narrador, dá ao trágico a dimensão de um ridículo comovente. Se por um lado há o reconhecimento dos valores da tradição por parte do narrador, por outro há também a percepção de seu anacronismo. Em “Zélica e outros” nos deparamos com um mundo que insiste em sobreviver ilha, quando isto já se torna impraticável. Ainda assim, simpatizamos com estes personagens de certa forma derrotados e acreditamos neles, mesmo reconhecendo a perversão dos seus atos.
Ainda que ambientandos no interior de uma vila de pescadores açorianos, e escritos há quase quatro décadas, a qualidade estética dos contos e a universalidade dos dramas vivenciados pelos personagens, aliado ao tratamento humorístico dado às fábulas, garante a atualidade de “Zélica e outros” enquanto obra que nos acessa a leitura de mundo, bem como sustenta sua qualidade literária. Para que ainda não leu, vale a pena!
 
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