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Bartleby e a potência do não. Imprimir E-mail
Bartleby e a potência do não.
 

fotoUm dos mais instigantes contos de Herman Melville conta a história do escrivão Bartleby. No Brasil o texto já recebeu diversas edições, e uma das mais recentes foi publicada pela editora Cosac Naify, em edição conceitual, que obriga ao leitor uma postura ativa diante da obra. O Sarau Eletrônico publica a reflexão que o historiador Martin Kreuz realiza do conto e da edição da Cosac Naify sob a perspectiva da “potência do não”.
Bartleby e a potência do não

Martin Kreuz
Historiador

capaTrata-se de uma história simples. Até poder-se-ia acusá-la de pecar em sua simplicidade, se esta, a simplicidade, for considerada sinal de pouca qualidade e pobreza literária. Não há aí o encadeamento de acontecimentos, sobressaltos e reviravoltas; sua trama pode ser resumida em um parágrafo, pequeno, aliás:
Mas do que realmente trata a narrativa curta de Melville? Aparentemente, de quase nada. Um advogado de Nova York (o narrador que não se autonomeia) emprega o jovem Bartleby, mas este aos poucos decide que as tarefas de que é encarregado estão muito abaixo de sua competência e finalmente se recusa ao trabalho de escrivão e copista para o qual fora contratado. Depois de demitido pelo dono do escritório, não quer de forma alguma deixar o lugar (I would prefer not to). Perturbado com isso, o advogado finalmente se muda e Bartleby é levado à prisão (em inglês Tombs / Túmulos). Lá recebe a visita do ex-patrão, que se considera vagamente responsável pela desventura do antigo funcionário, providenciando-lhe alguns privilégios inócuos. Bartleby, que nesse meio-tempo rejeita até a comida (um artista da fome!), acaba morrendo. (p. 41).
É isto. Em 135 palavras, Modesto Carone, no posfácio à edição brasileira do livro, nos apresenta a história de Bartleby. Sua força, entretanto, não se revela no texto, na narrativa em si, mas no gesto realizado por Bartleby: a recusa, traduzida por essa pequena fórmula “Acho melhor não.”. O advogado solicita a Bartleby conferir as cópias produzidas, este responde “Acho melhor não” – e o advogado, desconcertado, não sabe como reagir. Passam-se alguns dias, o advogado solicita a realização de nova atividade, e recebe mais uma vez a resposta bartlebiana “Acho melhor não”. Em nenhum lugar Bartleby se explica ou nos informa das motivações ou objetivos para suas recusas – há somente o gesto em si.
Esse gesto de recusa, de preferir não o fazer, contém entranhado em si uma discussão filosófica sobre a potência (v. ABBAGNANO, 2007). Esta é compreendida como a possibilidade de realização de um ato – a potência da fala, nos seres humanos, por exemplo – ou de realização de uma pré-formação: a semente é, em potência, uma árvore. Em ambos os casos, a potência está baseada na realização daquele possível. Mas há outro tipo de potência, que Giorgio Agamben (cf. CASTRO, 2012, p. 165-172) denomina de potência-de-não: a potência que, podendo passar ao ato, também pode se suspender e não realizar aquele ato. No primeiro caso, o da potência-realização, predomina o determinismo, a coação, a contingência; no modal da potência-de-não, temos a liberdade. Só quem é plenamente potente pode realizar um ato e, também, não o realizar. Bartleby é a figuração dessa potência: podendo fazer algo (conferir um manuscrito, por exemplo, como já havia feito anteriormente), ele decide não o fazer.
E, por mais paradoxal ou contraditório que possa parecer, decorre daí que a potência-de-não é, centralmente, uma potência ativa: interromper o fluxo, suspender a ordem, exigem a ação. É também a ação em vista da realização do possível – mas uma realização de tipo diversa daquela citada anteriormente, pois aqui a realização do possível não é aquele dado, o que se espera, mas o possível que se dá a partir do contra-fluxo, a partir da suspensão daquilo que é posto, o possível até então desconhecido. É o procedimento operado por Bartleby: a realização daquilo que era impossível, ou inimaginável, a suspensão do fluxo instituído no escritório, a recusa a acatar a ordem a ele dada – que, na linguagem do advogado, é amenizada como “um pedido”. Não à toa, o conto de Melville pode ser lido como uma fábula a respeito da luta de classes e as greves proletárias. Uma das formas mais elementares de nós, proletários de colarinho branco ou macacão, reafirmarmos nossa liberdade, nossa potência plena e ativa, é converter essa potência ao trabalho em potência-de-não, recusarmo-nos ao trabalho.
Essa leitura se torna ainda mais forte se lembrarmos da inversão de perspectiva que nos obriga a novela de Melville a respeito de potente-impotente: aquele (Bartleby) que parece, à primeira vista, impotente, pois que não realiza o que lhe fora solicitado, é o personagem plenamente potente da relação estabelecida, pois que pode fazer e não fazer algo. Bartleby responde as ordens, pedidos e súplicas de seu empregador com aquela recusa expressa na fórmula “Acho melhor não”; o advogado, por seu lado, por mais que tente não consegue livrar-se daquele escrivão. São os trabalhadores os dependentes dos patrões – ou os patrões, dependentes daqueles que empregam?
Tal leitura é possível, sem dúvidas. Mas deixemo-la, e voltemos à dupla compreensão de potência, a que realiza o determinado, e a potência-de-não, que se impõe sobre o determinado construindo seu próprio possível. E é por demais forte simbolicamente que, para acessarmos a novela de Bartleby, lançada no Brasil pela Cosac Naify, tenhamos que enfrentar um conjunto de obstáculos produzidos pela editora. Em primeiro lugar, a capa vem costurada, o que impede a própria abertura do livro. É preciso descosturá-lo, romper o fio vermelho que lacra seu conteúdo. Aberto o livro, só enxergamos páginas escuras, simulando um muro – referência à Wall Street, a Rua do Muro onde se localiza a narrativa. Ao manusear as páginas, percebemos que estas, na verdade, não foram refiladas – tarefa que cabe, caso queira transformar-se de potencial em efetivo, ao leitor. Busque-se uma faca, um estilete, corte-se na dobradura e, só aí, revela-se o texto. Há que se contornar os empecilhos, tornar possível o que se encontra fora da possibilidade imediata, agir contra aquilo que está dado – que, em relação à edição da Cosac Naify, é a impossibilidade da leitura daquele escrito.
O que é também um fato a se lamentar. A experiência de ler Bartleby pela primeira vez, superados todos os percalços, é irrepetível – a não ser no terreno sempre pantanoso da memória. Uma vez rasgada a página para acessar o texto, haverá somente o lembrar daquilo que se ousara fazer. Como Proust e suas madeleines, que lhe convocavam seu passado, as marcas deixadas por nossa operação no livro de Melville lembrar-nos-ão novamente daquela experiência, primeira, de adentrar o mundo de Bartleby – marcas que se tornaram agora potências da memória.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bossi. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Tradução de: Dizionario di filosofia.
CASTRO, Edgard. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Tradução Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. Tradução de: Giorgio Agamben, una arqueologia de la potencia.
MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Posfácio Modesto Carone. Tradução Irine Hirsch. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 48 p. Tradução de: Bartleby, the scrivener.
 
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