Salim Miguel |
Na fábula da narrativa e nos estigmas da carne Viegas Fernandes da Costa
À época havia a expectativa do lançamento de um novo romance seu, intitulado “Jornada com Rupert” – que há muito repousava inconcluso em uma gaveta e ao qual Salim resolvera dar nova chance – , cuja história ambienta-se no contexto da colonização germânica no Vale do Itajaí. De pronto acordou-se que lançaríamos o livro na Biblioteca da FURB, em Blumenau, o que de fato aconteceu em 13 de novembro daquele mesmo ano, alguns dias antes da grande tragédia socioclimática que castigou o Vale do Itajaí como nunca antes na história, e sobre a qual Salim Miguel chegou a escrever em artigo publicado no Jornal do Brasil. Já na data do lançamento, a chuva era muita e prenunciava más notícias para a região. Cogitamos, inclusive, transferir o evento, e por pouco não conseguimos buscar Salim e Eglê – sua namorada desde 1947, e sobre a qual confessou na citada entrevista: “na verdade eu não seria quem sou sem a Eglê”. O próprio Salim já duvidava que com toda aquela água que despencava das nuvens também em Florianópolis, ainda iríamos buscá-lo para o lançamento de “Jornada com Rupert”. Ao fim, entretanto, tudo correu bem, e o interesse que o autor desperta demonstrou-se na quantidade de pessoas que se fizerem presentes ao evento – antecedido por uma conversa na qual discorreu sobre sua trajetória intelectual. Digo tudo isso para me reportar aos eventos iniciais de uma proximidade física com o ser humano Salim Miguel, e não apenas com a figura pública que escreveu livros, integrou o Grupo Sul, participou da produção de “O preço da ilusão” – primeiro longa metragem de ficção catarinense – e, entre muitas outras atuações no cenário das artes e do jornalismo, foi preso pela Ditadura Militar Brasileira. Primeiramente, então, a recepção afetuosa em seu apartamento, para uma longa entrevista. Nunca antes havíamos nos visto, nunca antes conversáramos pessoalmente, senão pelas páginas dos seus escritos; ainda assim, Salim soube diluir todas as fronteiras que pudessem se interpor entre os dois jovens que o procurávamos e sua vasta experiência de quase oitenta anos intensamente vividos. Solícito, paciente, de memória prodigiosa, confiou-nos sua história e, ao mesmo tempo, em gesto de nobre humildade, colocou-se atento a tudo que pudéssemos trocar. Curioso, inquiriu por nossa biografia, pela Universidade em que trabalhávamos – e onde há alguns anos estivera, palestrando – e por Blumenau, cenário do romance que breve lançaria. Não à toa, lendo mais tarde este seu romance, “Jornada com Rupert”, em carta da personagem Ilze (auto-exilada no Rio de Janeiro, assim como o próprio Salim o fora após a experiência traumática com a ditadura) a seu pai, encontro a curiosa auto-referência que cito: “queria me mostrar a revista Sul, de Florianópolis; folheei-a e fiquei surpresa de encontrar o tal turco que vinha bisbilhotar em Blumenau.” Sim, quem mais seria este “turco” bisbilhoteiro senão Salim Miguel, o próprio? “Maktub” ("estava escrito") fiara seu reencontro com a cidade que, iconoclasticamente, descrevera por meio de Rupert, talvez afirmaria a memória de seu pai, o professor de primeiras letras que uma inflamação nos olhos impedira de rumar para os Estados Unidos e fizera embarcar no navio cujo destino era mesmo o Brasil, terra ignota para aquela família de libaneses. Sim, “Maktub” trouxera Rupert para ser lançado em Blumenau, naquela noite úmida e perigosa. “Não aceite que te chamem de turco”, era a exortação de seu pai. Entretanto, irreverente, Salim não perderia a oportunidade de brincar com suas próprias origens, com a imagem do outro sobre si, como aquela que, ainda na infância, fez-lhe uma professora primária sua que, ao perceber que ele era o aluno que melhor se saía nos estudos de português, chamou a atenção da turma e disse: “vejam só, chegou ontem aqui, mal sabia algumas palavras de português misturadas com árabe e alemão; hoje fala, lê e escreve melhor que vocês! Não se envergonham diante deste turco?” Era um elogio, claro, mas a confusão quanto à identidade de suas origens ofendeu o menino de então. Confusão que perseguiu o escritor por longo tempo e que hoje dá lugar ao líbano-biguaçuense que reivindica para si, mas que não o impede de apresentar-se como o turco bisbilhoteiro em “Rupert”. Estabeleço aqui uma pausa para perceber que começo a ter dificuldades em separar, agora, personagem, pessoa e autor. À medida em que conhecemos Salim Miguel, percebemos que sua vida é mesmo sua obra; e sua obra ficcional, uma reinvenção de suas memórias – como atesta, inclusive no título, seu romance mais recente: “Reinvenção da infância”. Seja com suas experiências com o Grupo Sul, autoficcionalizadas principalmente em “A vida breve de Sezefredo das Neves, poeta”, seja sua infância em Biguaçu e sua primeira grande amizade intelectual, com o poeta-livreiro cego João Mendes (“Nur na escuridão” e “Reinvenção da infância”), ou ainda seu dilema enquanto autor que busca sua identidade narrativa (“As confissões prematuras”), o principal da obra de Salim Miguel, quando não suas impressões de leitura, trata-se justamente disso: de autoficção. Por isso, quando diz que “temas ou personagens é que me perseguem”, fico em dúvida se tais temas e personagens perseguem-no na condição de autor ou se na de sujeito histórico. Dúvida que tende a diluir-se na segunda opção, porque assim vejo Salim Miguel: personagem complexo de si mesmo, persistente e que se reinventa em cada narrativa. E ao afirmar isto posso me reportar ao parágrafo que abre este pequeno depoimento, onde digo que não seria de todo honesto se afirmasse que o conheci em 2008, quando fui entrevistá-lo. Não, meu primeiro contato com Salim Miguel personagem, autor e pessoa, foi nas páginas de “Nur na escuridão” onde, já no primeiro capítulo somos apresentados à angústia de um pai de família libanês que desembarca com toda sua família e pertences no porto do Rio de Janeiro, sem conhecer uma palavra de português ou qualquer outro idioma que não fosse o árabe, desprovido de informações sobre o Brasil e, no bolso, apenas um papel com o endereço incorreto de um parente seu. O torvelinho de pessoas, a barreira da língua e da cultura, os filhos, esposa e pertences espalhados na calçada e a indefinição de um destino, dão a idéia das dificuldades que estes personagens enfrentarão na construção de suas histórias em terras catarinenses. Dificuldades de uma história construída na fábula da narrativa e nos estigmas da carne. Sempre considerei este início de “Nur na escuridão” uma das passagens mais intensas da literatura brasileira, e disse-o a Salim, quando conversamos por telefone há algumas semanas. Ele, por sua vez, surpreende-se por ser referenciado principalmente por este romance. Autor de dezenas de obras, jornalista de vasta experiência, intelectual com contribuições diversas e intensas, Salim Miguel vê-se defrontado novamente por “Maktub”. Quando nos recebeu, lá em 2008, à porta do prédio onde reside, tateava a maçaneta. Uma retinopatia roubara-lhe boa parte da visão, e o eco do livreiro-poeta João Mendes, seu primeiro grande companheiro de leituras, ressoa hoje em sua pessoa. Ainda assim, mantém-se com a curiosidade e a vivacidade de uma criança, vivo em seu estar-no-mundo, convictamente ideológico, perseguindo suas memórias para, reinventando-as, reinventar-se. “Maktub” Salim! “Maktub”! * Depoimento escrito originalmente para a Revista Litteris, n° 8, setembro de 2011. Site: http://www.revistaliteris.com.br/ |