O Romance Histórico como Referencial Histórico e Literário na Literatura Lusófona

A escritora Urda Alice Klueger palestrou no Encontro de Literatura Lusófona, realizado em Blumenau em junho de 2008. O Sarau Eletrônico apresenta a íntegra da fala desta autora blumenauense, que trata da sua experiência com a leitura de autores da Língua Portuguesa e da relação entre a Literatura e a História.

O Romance Histórico como Referencial Histórico e Literário na Literatura Lusófona

Urda Alice Klueger
Historiadora e escritora

Senhoras,
senhores,
todos os presentes:

Eu diria que o que vou falar não se refere apenas ao mundo lusófono - pois foi lendo romances-históricos sobre outros povos e terras que aprendi a gostar de História e a me interessar por muitas culturas diferentes da minha.

Pela vida afora defendi que uma grande quantidade de pessoas muito gosta de História, desde que as informações a respeito sejam dadas a elas  de maneira simples e agradável, como é o caso de boa parte dos romances-históricos - pois os há, também, de péssima qualidade de texto e muito duvidável quanto a possíveis pesquisas que o autor tenha feito para que seu romance possa ter a classificação de "histórico".

Só vim a ter um substrato  científico para tal agir e pensar quando, fazendo o Curso de História da Universidade desta cidade, como aluna da grande professora Dra. Maria Luiza Renaux, tive a grata surpresa de vê-la sugerir, como complementação ao nosso aprendizado sobre História Antiga, a leitura de diversos romances-históricos. Está claro que ela nos aconselhava a ler o que de melhor havia em matéria de credibilidade e texto.

Após este preâmbulo, acho que vale falar de como o romance vai entrar na minha vida de uma forma que vai me levar para o caminho da História, e tanto quanto me lembro, o primeiro que me deu tal sabor e prazer foi um livro chamado "O Egípcio", de um autor chamado Mika Waltari, que até hoje não sei de que nacionalidade é e nem sei se pronuncio corretamente o seu nome. Foi um importante primeiro momento de ligação Literatura/História na minha vida, e que acabou por afetá-la para sempre.

Neste encontro, no entanto, devemos falar sobre a Literatura Lusófona, e voraz leitora que fui desde a alfabetização, fica difícil, para mim, lembrar e falar da grande quantidade de autores brasileiros que devorei - quando bons - ou que detestei - quando de pouca qualidade - mas que, de uma forma ou outra, trouxeram-me tantas facetas deste meu imenso Brasil que nós, colonos de Blumenau até hoje, talvez nunca tivéssemos tido notícias, na nossa ignorância um tanto quanto feudal, se a Literatura não nos tivesse feito caminhar por seus caminhos e nos levado a aprender milhões de coisas sobre os mais diversos pontos do Brasil, nas suas mais diversas facetas.

Também Portugal foi alguém que foi entrando na minha alma de colona de poucas luzes através, principalmente, do romance, e fico a lembrar, aqui, de Júlio Dinis e "As pupilas do senhor reitor", talvez o primeiro romance português que tenha lido, ainda lá na infância. Era um mundo novo, que me trazia palavras e visões  inteiramente novas, e fico pensando que foi lá que li pela primeira vez palavras como "urze", com certeza uma vegetação de lugares onde habitam fadas e namorados, e que até hoje eu ainda não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, embora já tenha andado por aquele país.

Meu conhecimento da Literatura portuguesa vai aumentando conforme o tempo vai passando, e aumentando, com ele, o conhecimento sobre um Portugal que antes fora menos que uma nebulosa, já que me criei nesta cidade na qual, naquela altura, tinha seus olhos voltados muitíssimo mais para a Alemanha do que para o país que nos gerou. Lembro da surpresa que foi encontrar-me com Alexandre Herculano, lá na adolescência, e seu "Eurico, o Presbítero"! Era um mundo inteiramente novo no qual talvez nunca tivesse entrado se não tivesse um romance que fizesse a ponte entre eu e o quase desconhecido, ainda, Portugal!

E quanto me lembro da emoção que foi ter entrado em contato, um dia, com o inigualável Eça de Queiróz, em cujas águas naveguei como uma caravela em tempo de muito vento! Penso que, mais que todos, foi o grande mestre Eça quem trouxe Portugal para a minha vida e o meu coração - mais tarde, quando o soube embaixador, quase sempre distante da pátria, foi que pude entender a força da saudade que o movia para contar tão bem o seu país, a ponto de me levar a me sentir bastante portuguesa também. Um dia, em Lisboa, diante da casa onde ele se hospedava quando de férias na pátria, quedei-me a refletir sobre suas tantas histórias, seus tantos personagens, a lembrar-me de episódios de "A Relíquia"... Eça me dera uma nova raiz no mundo lusófono, fizera-me ultrapassar as barreiras do Brasil e a me identificar com o povo das margens do Tejo como se fosse gente minha... e quando fui a Sintra, e quando fui a tantos lugares, como me era quase vivo na boca o gosto das suas queijadinhas, e de tantas outras coisas que ele escreveu com a pena da saudade...

O tempo aqui é curto, não é possível lembrar-se de tudo, mas é impossível deixar-se de citar alguém como José Saramago, um gênio que levou Portugal para o mundo com tanta força quanto seus navegadores, e precisaríamos de algumas horas para falarmos apenas dele, mas acho que se lembrarmos o discurso que ele deu quando do recebimento do prêmio Nobel de Literatura, contando as friagens e as ternuras de um Portugal rural que não se imagina estando-se em Lisboa, e muito menos é possível imaginar-se num lugar como Estocolmo, já teremos dado uma preciosa amostra do grande Saramago, uma amostra que é como um pequeno brilhante num colar...

Meu mundo lusófono, porém, não se restringe a Brasil e Portugal, e aqui incluiria um outro nome que é português de direito, mas que é quase como que um outro mundo: as Ilhas, principalmente as dos Açores. Tenho lido muita da sua literatura, e Açores e Santa Catarina são como que mundos de mãos dadas, e torna-se impossível deixar-se de citar tal coisa.

O fato é que, ao longo da vida, tenho lido os romances de diversos lugares do mundo lusófono, como os dos países africanos, por exemplo, e também tenho feito amigos escritores de língua portuguesa que vivem nos mais inesperados lugares, como dentre as neves do Canadá, por exemplo, e sempre há mais e mais a se aprender de cada um, a cada texto - e muito através dos romances históricos, que como que contam o substrato das vidas das gentes de fala lusa por este mundo de meu Deus!

Tive a oportunidade, também, de mergulhar com muito mais profundeza na literatura de Moçambique ao ir àquele país, já que dificilmente os autores africanos de língua portuguesa adentram ao Brasil, que prefere se locupletar com lixo estadunidense e outros, evitando que seus cidadãos e cidadãs tenham um real aprendizado na leitura, coisa tão a gosto dos donos do Capital.

Tivera a oportunidade de travar amizade e conhecer textos de Mia Couto antes de ir à África, o único moçambicano, tanto quanto eu saiba, que conseguiu a proeza de atravessar o Atlântico e chegar às nossas livrarias.

Em Moçambique, no entanto, fui descobrir uma pródiga literatura que por lá fica escondida, e aqui deixo de falar do romance-histórico para me referir ao conto, à crônica, à poesia, ao romance, à literatura moçambicana em geral, que como que forma um único e grande romance-histórico que vai falar, sempre, de todos os ângulos imagináveis, da sangrenta e violenta colonização e pior descolonização que aquele país sofreu. Voltei de Moçambique com uma mala a mais, pejada de livros moçambicanos, que são como uma chaga viva no meu peito que não fazia idéia do que passara aquele país irmão. Fui ler tais livros já no Brasil, e era-me quase que impossível coaduná-los com a realidade vivida com aquela gente faceira, risonha e alegre, que emergira de uma guerra de mais de duas décadas há apenas quatro anos, quando eu lá estava. Ah! Não fossem os escritores moçambicanos e aquela mala que trouxe a mais no avião, e talvez nunca ficasse sabendo por outro meio das agruras, amarguras, angústias e dores que aquele povo passou com a colonização e a descolonização. Depois daquele meu violento contato com a literatura moçambicana, acho que me acordei para sempre da total importância que o escritor tem como testemunha da História e como responsável pelas denúncias do seu tempo. Não tivessem os escritores moçambicanos feito o seu trabalho como o fizeram, e hoje poderíamos pensar que tudo sempre fora aquela coleção de sorrisos lindos daquela gente bonita que lá vive!

Senhoras,
senhores:

Sinto-me muito gratificada por ter sido convidada para este momento e para este depoimento. Quiçá muitas outras pessoas em muitas outras vezes possam tornar a abordar as tantas significâncias que podem existir dentro da Literatura e nos levar a reflexões mais aprofundadas e importantes do que esta.

Por ora, como despedida, parodio Fernando Pessoa e fecho esta fala lhes dizendo que "a minha pátria é a língua portuguesa".

Blumenau, 13 de Junho de 2008.